A
mandioca arrancada no braço, uma a uma quebrada e atirada nos caçoas
escanchados no lombo dos jumentos. O tangedor desvia o olhar para a terra e
enfileira-se atrás das cargas que seguem em procissão pela picada. À porteira,
posta-se um responsável pela abertura quando o comboio se aproxima.
A
carga é arriada e refeito o monte que já parecia findar. Mulheres raspam a
mandioca, sentadas ao redor do amontoado. Algumas raspam a metade (capotes) e
repassam para outras que completam a raspagem. Olham-se e cantam e contam
histórias horas a fio por todo o dia e à noite, enquanto houver mandioca para
raspar.
Na
bolandeira, tange-se o burro que, paciente, caminha o mesmo caminho em círculo,
acossado pelo som do chiqueirador e, vez ou outra, pelo ardor de seu contato
com a pele, seguido de um gemido longo de advertência. Encolhe-se, agita a
calda e segue na mesma batida. A correia de tração da bolandeira move a tarisca
dentada que tritura a mandioca raspada transformando-a numa massa grossa, úmida
e branca.
Da
massa prensada se extrai a manipueira, um líquido denso que depois de secar
será transformado em goma. Uma parte que permanece úmida, a carimã ou puba, é
utilizada para fazer bolo. Outra parte da massa é levada ao forno e mexida até
que seque e alcance a consistência de farinha. A crueira, fragmentos que não
foram completamente triturados, é utilizada para ração animal.
A
casa de farinha é um lugar de rituais sertanejos. Desde a apanha da mandioca no
roçado até a sua transformação em vários produtos que se destinam ao consumo
dos donos da farinhada e a comercialização, encenam-se muitos ritos da
convivência humana.
A
conversa dá lugar a observações de detalhes sobre tarefas distintas,
solicitações diversas e a comentários de toda sorte. Anima-se e/ou
questiona-se. Afaga-se ou repele-se conforme o momento e o lugar. Vez por
outra, canta-se ou resmunga-se cantigas como desalento. Em geral, uma farinhada
vira dias e noites. O contato permanente, principalmente, entre jovens,
estimula a paqueras e namoros que ajudam a passar o tempo de modo mais animado.
Luiz
Gonzaga, em uma de suas músicas (composição de Zé Dantas) fala de um destes
momentos. Diz a cantiga: “Eu tava na peneira, eu tava peneirando / eu tava no
namoro, eu tava namorando. Na farinhada, lá da Serra do Teixeira / Namorei uma
cabôca, nunca vi tão feiticeira / A mininada descascava macaxeira / Zé Migué no
caititú e eu e ela na peneira...”
Ruídos
diversos atravessam o espaço, a voz gemida do tangedor que alerta o burro na
bolandeira, a tarisca que soa mais forte ou mais leve, conforme o contato com a
mandioca que se desfaz em massa, o rodo que espalha a farinha no forno em
vai-e-vem nervoso, o alarido das raspadeiras de mandioca em conversas íntimas e
gargalhadas que estalam como fruto de mamona, sem que se saiba os motivos.
Nesse ritmo passam-se dias inteiros.
Não
há idade definida para os freqüentadores das farinhadas. Como se diz, é igual
ao jogo de São Severino: joga homem, mulher, menino e os velhos viciados. À
noite alta, poucos ficam na lida. Além dos torradores de farinha e prenseiros,
casais de jovens que, a pretexto do trabalho, arquitetam paixões.
Tempo
de farinhada é tempo de fartura de tudo. Beijus de massa, tapiocas, bolos de
goma, farinha e gente que não acaba. A comunidade inteira se mobiliza e se
encontra no mesmo lugar, empenhada em participar dos ritos de produção de
derivados de mandioca. Em torno da raiz da maniva, a planta que produz a
mandioca, os agricultores fazem suas farinhadas, plenas de todos os sentidos
que as relações de produção propiciam.
Conta
uma lenda indígena que uma indiazinha muito diferente, diferente das demais,
nascida em uma aldeia, recebe o nome de Mani. Pequenina, frágil e branca, Mani
um dia vem a falecer. No local em que ela é enterrada nasce uma planta que
passou a ser conhecida como Mani-Oca, ou seja, casa de Mani. De acordo com esta
lenda é que surge o nome mandioca.
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