
O jogo de
cartas adormece a atenção ao tempo. De susto percebe-se que a noite avança pela
madrugada. Um cuidado alfineta os sentidos e a lembrança de casa finaliza a
última mão do relancinho.
A lua cheia
reluz no caminho estreito de areia branca, madrugada alta. O passo largo avança
rápido roçando o embainhado da calça nas ramagens de salsa que estreita a
picada. Ruído marcado da respiração ofegante e do atrito da roupa no mato. A
lua baixa alonga a sombra para trás.
Erguendo a
cabeça com o olhar à frente percebe alguém que caminha adiante, pouco mais de
duzentos metros. Acelera o passo, imaginando tratar-se de alguém conhecido.
Chapéu de aba e roupa branca repercute o luar. No entanto, ao alcançar o cume
do alto, a pessoa desvia-se e penetra a mata alta, à esquerda. Nenhuma
suposição. Ignora o fato motivado pela preocupação com o avançado da noite.
Pouco mais
adiante, ouve o ruído de algo que se projeta no ar indo, em seguida, chocar-se
contra o chão, jogando poeira às margens do caminho. É um pedaço de galho de
gameleira, de uns setenta centímetros, cortado em bico de gaita nas
extremidades, num golpe só por vez. O comum é que houvesse escutado o barulho,
mas nada foi ouvido. O estranho é que não há sentido aparente para o
acontecimento.
Não há muito
o que pensar. É continuar seguindo e apressar ainda mais a marcha.
Aos poucos
começa a ouvir um choro angustiado e inteiriço. Vem a lembrança da esposa que
está só em casa. Encontra-se grávida do primeiro filho e pode estar sentindo
dores. Andar apressado, agora, já não basta. É necessário correr, pode ser que
esteja precisando de ajuda. Marinheiro de primeira viagem, não consegue
imaginar o que possa fazer ou, antes, o que possa estar havendo.
De relance,
sente um remorso por estar jogando baralho enquanto a mulher, gestante, ficara
só em casa. Em seguida, imagina que não há de ser nada, conforma-se. O choro
vai ficando mais alto à medida que se aproxima de casa.
A roupa
encharcada de suor parece limitar os movimentos. De vez em quando é necessário
parar para respirar. O percurso parece que se espicha. Ao chegar, o choro para
e o silêncio incomoda até mais. Salta a cerca do quintal e busca a porta da
cozinha num movimento automático. Ela sempre está só, encostada, à sua espera.
Entra em casa e com alívio percebe que a esposa dorme serenamente.
Suado e
cansado, senta-se e se deixa ficar por bom tempo com os braços estendidos, o
corpo recostado na cadeira. Recomeça o choro, mas desta vez parece distante.
Pela manhã,
acorda com a voz de alguém que chama seu nome. Levanta-se, sente o cheiro do
café novinho. A esposa, em sua atividade diária, parece desconhecer qualquer
coisa a respeito do que aconteceu à noite passada, e, como se acostumada, nem
pergunta mais onde esteve. Não parece aborrecida. Prepara a mesa do café no
ritmo do esperado.
Continuam a
chamar seu nome para além do cercado. Abre a porta e manda que se aproximem
três pessoas, após identificá-las: são vizinhos que ficaram de acertar trabalho
na roça.
Na mesa de
café, ele conta o ocorrido e ninguém dá notícia de ter ouvido qualquer coisa
estranha na noite anterior, muito menos choro. Mas um dos vizinhos relata que
outras pessoas por ali já se referiram a algo parecido. Diz que se trata de
recém-nascido, falecido e enterrado na porteira do curral, sem o devido
batismo. Alguém tem que desenterrar e batizar para que o caso não volte a
acontecer.