
Seu
Coió todo dia, pela manhã, põe sua cadeira à sombra do pé de Oiti e lá fica até
o meio-dia, contemplando a paisagem. Avista, sincronicamente, os fiéis
retirando-se da igreja após a missa, as vizinhas que chegam em seguida e o
cumprimentam. De um e de outro, as mesmas palavras, os mesmos sorrisos, os
mesmos gestos. Daqui a pouco, a pelada no pátio em frente à igreja: garotos
desnudos disputam uma bola de meia numa partida de futebol, em geral, com
placar elástico.
Do
outro lado da rua, o casario multicolorido, com casas baixinhas, empareda a
visada para mais adiante. Janelinhas escuras por onde, de instante em instante,
alguém pousa para conferir seu Coió sentado à sombra do Oiti. Na mercearia da
esquina, D. Nadir varre a calçada há horas. Entre um rosário e outro de casas,
um beco donde se entra e sai em desassossego.
Mesmo
quando o peso da idade e os males que daí derivam levam seu Coió a cochilar, as
cenas se repetem como que ensaiadas à exaustão, na recorrência dos dias
vividos, observadas desde o início da aposentadoria. O tempo marcado do fim da
missa ao momento em que o sacristão vem fechar as portas da igreja; o instante
em que Lourdes, a filha mais velha de Vicência, sai de casa para o trabalho,
atravessa a rua, e passa por ali espalhando um perfume embriagador. Cheiro que
impregna as narinas de seu Coió até muito depois de dormir à noite. Por vezes,
levanta no meio da noite sentindo aquele cheiro dentro de casa. No início,
ficava a se perguntar por qual razão isto ocorreria. Com o tempo, mesmo sem uma
explicação evidente, deixou de se incomodar e até gosta de ficar revendo a beleza
de Lourdes pelo seu cheiro noturno.
Hora
do almoço, seu Coió pega a cadeira e retorna a sua casa, cabisbaixo. Depois, a
sesta. Já é tardinha, quando retoma a vida, a televisão oferece muitas outras
paisagens para ver. Diante da TV, prostra-se até a hora de jantar e, depois,
dormir. Uma conversinha com um ou outro neto que o visita, como beija-flor:
bica, bibica e desaparece em seguida. Uma olhada no quintal, de passagem pela
cozinha. Algumas palavras trocadas com a filha no almoço e no jantar, nada mais.
Dia
destes, seu Coió sente uma vontade nova, ir à bodega, do outro lado da rua e
conhecê-la por dentro. Deixara de beber muito novo, não se dava bem com a
bebida. Virava valente, não reconhecia os amigos nem os parentes. Esquecia de
tudo no dia seguinte. De tanto lhe contarem as suas façanhas, seu Coió parou de
beber, por via das dúvidas.
Conhece
bem o moço da bodega, o Toinho da Zica. Zica, a mãe de Toinho, até tivera um
namoro com ela quando jovens. Chega ao pé do Balcão, Toinho vem recebê-lo, com
ar de espanto. Pergunta-lhe em que pode servir, sorri e manifesta sua surpresa
na pronúncia alongada do seu nome: Coióóóo! — com entonação marcada, neste
sentido. Como quem diz, “o senhor aqui, há quanto tempo!”. Seu Coió não fala
nada, olha tudo com admiração: a mercadoria arrumada nas prateleiras, o
alumínio pendurado ao lado de salsichas, linguiças e carnes de sol. O colorido
dos maços de fósforos, das embalagens de maisena, dos biscoitos. O balcão
convida-o a encostar os cotovelos. Embasbacado, olha para o outro lado da rua e
vê o pé de Oiti, frondoso, sombra negra e larga sobre a areia branca e uma
cadeira vazia.
Assim,
ainda sob o efeito da novidade, pede mecanicamente que lhe ponha uma
branquinha, daquela que matou o guarda, diz, lembrando-se de um tempo muito
distante, mas sem qualquer nível de consciência do que dissera. Toinho redobra
sua cara de surpresa e, sob a mesma ordem, apanha a garrafa de cachaça, um copo
e despeja uma dose bem medida. Seu Coió cheira a bebida longamente, pigarreia,
faz careta e a engole devagarzinho, como quem mata uma saudade de séculos.
Toinho
recusa o dinheiro, diz que é por conta da casa. Não há dinheiro que pague
aquela visita. Seu Coió agradece, e sai dali num vagar ainda mais puxado. Há
tanto tempo não via daquele ângulo o outro lado da rua que não o reconhece
mais: o pé de Oiti, frondoso, sombra negra e larga sobre a areia branca e uma
cadeira vazia.