
Apenas
gotas pingam na superfície da poça d’água em intervalos de silêncios marcados.
Repetem o mesmo som ao tocar a superfície. Depois, o som se visualiza nas ondas
que repercutem e se expandem às margens, circularmente. Sobre o silêncio
ressoam aqueles sons, decalcam aquelas imagens. A poesia exaure o ritmo do
tempo, recostada no vazio silencioso do poeta. Doem-lhe os dias passados na
memória. E a poça à vista é água incômoda, é a imprevisão do teto fendido. É o
incômodo do ruído repetido sobre a insistência da poesia indócil e a pele
nervosa da água empoçada.
A
respiração audível angustia-se em fundos suspiros. Ao redor, o silêncio
reconforta-se no escuro, mostra-se no dégradé de luz frágil que emana de uma
janela com cortinas transparentes. Divisórias põem limites ao espaço de
intimidade que resguarda o trabalhador em seu ofício de esquadrinhar versos.
As
dores da alma e as alegrias do corpo distendem-se para ocupar o espaço com o
que há de vingar na superfície do papel esparramado, nu, sobre a mesa. A
esferográfica debate-se entre os dedos até que a ansiedade ganhe forma em
caligráficas animações. A rasura é o rasto de uma dúvida, uma insatisfação,
algumas inseguranças.
Os
versos desenham ritmos e sentidos. Uns se ajustam ao exato desejo do escritor,
outros escapam completamente e negam-se a ajustes de qualquer ordem. Riscam-se,
borram-se, vão-se, mas não aceitam imposições, sob nenhum pretexto. Um verso ao
lado de outro, um verso contra outros. Põem-se, repõem-se, alteram-se,
alternam-se indiferentes ao sofrimento do poeta.
Um
pingo após outro, em intervalos de tempo constante, pinga na poça e seus sons
parecem idênticos, diluem-se no silêncio com um ruído chocho. Sem nenhum
propósito, cada ocorrência chama a atenção e fazem-se ver as ondas que
repercutem na superfície, empurradas para a margem da poça. A memória resgata
lembranças de filmes sobre torturas em que o torturado é obrigado a suportar
durante dias, preso em uma cela, a constante repetição de gotas d’água que lhe
caem sobre a cabeça com insistência.
Difícil
não prender o olhar naquela poça e observar durante longo tempo o seu
estremecimento ante as gotas que lhe caem uma a uma. Impossível não admirar que
não transborde. Está sempre no limite das margens. O som das gotas, a própria
gota, tudo tão semelhante e, no entanto, acontecimentos diferentes em tempos
diferentes. A gota na poça perde-se em sua condição de gota e adquire outra: a
pele da poça em frêmito.
A
telha fendida, o percurso da gota do teto ao chão, o atravessamento da luz sem
atrito aparente. A repetição, mais uma vez uma vez mais. O silêncio
importunado, o papel pacientemente pousado sobre a mesa, a esferográfica entre
os dedos, a luz branda que se projeta da janela e as cortinas transparentes
levemente tocadas por rajadas de vento: tudo suspira profundamente, com um
soluço que parece findar uma busca de séculos.
Cada
detalhe tem o seu silêncio. A poça espera a gota d’água, o poeta espera o
próximo verso enquanto observa a queda do som sobre tempo, as coisas todas
esperam em silêncio o poema que há de riscar o papel. O silêncio resulta do
repouso das palavras no lugar donde haverão de pronunciar-se.
Um
soneto singular reponta entre todos os potenciais poemas, como a permitir que
desponte a cada instante, ante as condições prevalentes no cenário, um poema
novo. A palavra simples, estável, regular, e simétrica se porá como limite para
continuidade paralisante das gotas projetadas em suspenso, donde se observa o
seu trajeto — parada em cada instante do percurso — e o restabelecimento da
instabilidade do silêncio contínuo. Goteja na memória o final de um poema, como
a latejar o que aqui ainda não esteja: “o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma”.