sábado, 19 de dezembro de 2009

SONS DO POEMA QUANDO SILÊNCIO




Apenas gotas pingam na superfície da poça d’água em intervalos de silêncios marcados. Repetem o mesmo som ao tocar a superfície. Depois, o som se visualiza nas ondas que repercutem e se expandem às margens, circularmente. Sobre o silêncio ressoam aqueles sons, decalcam aquelas imagens. A poesia exaure o ritmo do tempo, recostada no vazio silencioso do poeta. Doem-lhe os dias passados na memória. E a poça à vista é água incômoda, é a imprevisão do teto fendido. É o incômodo do ruído repetido sobre a insistência da poesia indócil e a pele nervosa da água empoçada.
A respiração audível angustia-se em fundos suspiros. Ao redor, o silêncio reconforta-se no escuro, mostra-se no dégradé de luz frágil que emana de uma janela com cortinas transparentes. Divisórias põem limites ao espaço de intimidade que resguarda o trabalhador em seu ofício de esquadrinhar versos.
As dores da alma e as alegrias do corpo distendem-se para ocupar o espaço com o que há de vingar na superfície do papel esparramado, nu, sobre a mesa. A esferográfica debate-se entre os dedos até que a ansiedade ganhe forma em caligráficas animações. A rasura é o rasto de uma dúvida, uma insatisfação, algumas inseguranças.
Os versos desenham ritmos e sentidos. Uns se ajustam ao exato desejo do escritor, outros escapam completamente e negam-se a ajustes de qualquer ordem. Riscam-se, borram-se, vão-se, mas não aceitam imposições, sob nenhum pretexto. Um verso ao lado de outro, um verso contra outros. Põem-se, repõem-se, alteram-se, alternam-se indiferentes ao sofrimento do poeta.
Um pingo após outro, em intervalos de tempo constante, pinga na poça e seus sons parecem idênticos, diluem-se no silêncio com um ruído chocho. Sem nenhum propósito, cada ocorrência chama a atenção e fazem-se ver as ondas que repercutem na superfície, empurradas para a margem da poça. A memória resgata lembranças de filmes sobre torturas em que o torturado é obrigado a suportar durante dias, preso em uma cela, a constante repetição de gotas d’água que lhe caem sobre a cabeça com insistência.
Difícil não prender o olhar naquela poça e observar durante longo tempo o seu estremecimento ante as gotas que lhe caem uma a uma. Impossível não admirar que não transborde. Está sempre no limite das margens. O som das gotas, a própria gota, tudo tão semelhante e, no entanto, acontecimentos diferentes em tempos diferentes. A gota na poça perde-se em sua condição de gota e adquire outra: a pele da poça em frêmito.
A telha fendida, o percurso da gota do teto ao chão, o atravessamento da luz sem atrito aparente. A repetição, mais uma vez uma vez mais. O silêncio importunado, o papel pacientemente pousado sobre a mesa, a esferográfica entre os dedos, a luz branda que se projeta da janela e as cortinas transparentes levemente tocadas por rajadas de vento: tudo suspira profundamente, com um soluço que parece findar uma busca de séculos.
Cada detalhe tem o seu silêncio. A poça espera a gota d’água, o poeta espera o próximo verso enquanto observa a queda do som sobre tempo, as coisas todas esperam em silêncio o poema que há de riscar o papel. O silêncio resulta do repouso das palavras no lugar donde haverão de pronunciar-se.
Um soneto singular reponta entre todos os potenciais poemas, como a permitir que desponte a cada instante, ante as condições prevalentes no cenário, um poema novo. A palavra simples, estável, regular, e simétrica se porá como limite para continuidade paralisante das gotas projetadas em suspenso, donde se observa o seu trajeto — parada em cada instante do percurso — e o restabelecimento da instabilidade do silêncio contínuo. Goteja na memória o final de um poema, como a latejar o que aqui ainda não esteja: “o vivo e puro amor de que sou feito, como matéria simples busca a forma”.