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Tenho
que viajar amanhã cedinho e, apesar das altas horas da madrugada, ainda estou
aqui revisando um discurso que acabei de redigir. Os olhos parecem trocados e,
vez em quando, fico um pouco confuso, as letras mexendo-se no teclado do
computador. Na verdade, não é amanhã cedinho que eu devo viajar, é daqui a
pouco, às 6:30h da manhã.
O
dia desfaz a noite e eu tento imprimir o discurso enquanto a impressora
encrenca. Não imagino por qual motivo. Começa a me bater certo sentimento de
que talvez não consiga imprimir o texto e depois tomar banho, tomar café,
trocar de roupa e depois de tudo, chegar a tempo de tomar o avião para a Bahia.
Acho que eu esqueci de por nesta ordem de tarefas a mala que ainda tenho de
fazer. Isto se a impressora resolver colaborar. Ah, finalmente. O texto
impresso, sem problema.
O
que é mesmo agora que eu tenho que fazer? Volto ao parágrafo anterior, bom,
tenho que tomar banho. Ligo o chuveiro e deixo a água ir esfriando o cérebro
(ou quase isto). A sensação do banho me reanima e as coisas parecem menos
problemáticas. Confira a lista acima e veja as outras coisas que eu vou
fazendo. Claro, ponha antes de tudo a mala.
Desço arrastando a mala
pelas escadas porque não tenho tempo para ficar esperando o elevador que, por
desconto de pecado, acaba de passar reto no andar que estou agora, não
atendendo ao meu chamado. Chego, finalmente, à portaria, comigo, os passageiros
do elevador que ignorou o meu chamado, que chegam junto.
Tomo
o táxi e comunico ao motorista para baixar o pé, sem dó. Ele me olha desafiador
e segue em marcha lenta. Peço para ele parar, quero apanhar um táxi que
respeite a minha pressa. Resmunga algumas coisas indecifráveis e vai adiante.
Protesto, mando que pare, ele não escuta. Acelera um pouco mais e vai adiante,
calado. Percebo que me observa pelo retrovisor, com cara de poucos amigos.
Xingo, comigo, ele e várias gerações dele.
No aeroporto, nenhum aviso
de atraso de vôo. Pelo menos isto me alivia. Em pouco tempo, estou acomodado
olhando, sem escutar, o discurso cheio de gestos que uma comissária de bordo
faz diante de mim. Depois disto, a aeronave já está pousando no aeroporto de
Salvador. Dormi pesadamente, concluo.
Vou
para o Centro de Convenções e lá encontro o grupo de recepcionistas que estavam
me aguardando. Falam dos procedimentos, me comunicam que a minha participação é
a primeira. Entre eles, uma jovem que me convida para sentar num quiosque
enquanto não inicia. Sentamos numa mesa afastada, ela pede uma cerveja.
Conversamos amenidades, não quero retirar a surpresa da fala que está no meu
discurso depois de ter atravessado a noite em claro pensando e escrevendo cada
palavra, caprichosamente.
Retiro
os óculos para limpar a lente e, como que por hábito, guardo no envelope que
está sobre a mesa, junto com o texto do improviso. Bate uma chuva repentina e
nos retiramos da mesa às pressas. A garota tem um papo interessante e a cerveja
a deixa cada vez mais atraente. Ou seria a carência? Discutir isto agora não
faz o menor sentido. O que é certo é estamos nos dando muito bem. Vejo que nos
chamam, é um dos caras que me recebeu quando cheguei ao Centro de Convenções.
Avisa que temos que ir para o Auditório, serão iniciadas as atividades do
evento e eu serei o primeiro a falar.
Chamam-me para a mesa e a
garota senta-se ao meu lado. Sinceramente, não ouvi ninguém anunciando seu
nome, mas também não vou polemizar, não me cabe. Até gosto que ela esteja ali, ao
meu lado. O presidente da mesa me anuncia e me passa a palavra. Acho estranho
que eu não consiga distinguir com clareza as pessoas á minha frente, sentadas
naquele auditório. Param de aplaudir, procuro o envelope que deve estar comigo
e que tem o texto do discurso. E os meus óculos, também. Entendo porque tenho
dificuldades para distinguir as pessoas. Não encontro o tal envelope.
Resmungo
uns impropérios, enquanto um silêncio pesado cai sobre o tempo. Sem o discurso
e sem os óculos, agradeço o convite, a presença de todos, cumprimento os
ocupantes da mesa e fico sem saber mais o que dizer. Passa pela minha cabeça
uma solução estapafúrdia e, sem que eu mesmo me controle, passo a palavra à
jovem ao meu lado alegando que ela é baiana e que, certamente, tem mais o que
dizer do que eu. Para o meu espanto, a garota se levanta, toma o microfone e
dana-se a falar asneiras, coisas sem sentido. Surge um ensaio de vaia, mas não
prospera. Não sei o que faço aqui, sem meu discurso e sem meus óculos.