
O
cenário em que me movo matiza-se dos meus gestos, das cores que gasto neste
roçar cotidiano. E tudo toma feições de um personagem em que me reconheço. E me
assusta verificar que o desgaste que se produz na vida estampa-se nos mínimos
detalhes em tudo o que me rodeia. A experiência deixa fragmentos e se formam
crostas invisíveis na superfície dos rostos à minha volta, no limbo dos dentes
à mostra em risos cúmplices, nas vestes que vestem os corpos que circulam ao
meu redor.
O
tempo tem unhas e cardos que arranham e sulcam a minha pele marcando o rascunho
dos dias repisados. Há gente que experimenta as minhas dores e sofre por coisas
que não lhe pertencem como se fossem suas. Gente que me vela o sono sem que
revele quaisquer intenções ou motivos. E no rosto e na alma de cada uma destas
pessoas estampam-se resquícios de mim que resultam deste pegar-se, deste
abraçar-se com unhas e dentes, na labuta. Ou, por outro lado, pela simples
condição dos afagos e piscar de olhos que trocamos em nossas encenações
diárias.
A
camisa verde-musgo estendida no varal desbota-se ao sol verde-musgo que
impregna a roupa dos meus. O muro esverdeado circunda a casa e, frio, resguarda
a cor que, afinal, mimetiza. A grama prossegue esverdeando a camisa estendida
no varal. Beija-flores estampam cores outras e dissimulam, simulam um verde
gasto que contrasta com o vermelho vivo da Amapola recém beijada.
‘Enquanto
se faz, o silêncio embaralha sons do seu fazer-se. Este é o meu silêncio aquele
que silencio por mim e que se confunde comigo quando calo. Ou, quando falo, nos
interstícios das palavras, no vazio da dúvida antes de pronunciar-me. Também
este silêncio carrega sotaques em que me reconheço.
No
mais, as ruas, as casas, o bairro perfazem o meu universo. Os monumentos
erguidos em praça pública têm traços meus e sofrem o desgaste do tempo como eu.
A sombra em que me deito quando cansado, quando busco os lastros amplos que
devem amparar o meu corpo, ou a roda de amigos ao final da tarde, em conversas
sobre amenidades, são a glória de minha história.
As
calçadas guardam meus rastros no mais profundo de suas camadas, para além da
superfície em cimento duro, por puro repetir-se. Os meus passos em trajeto de
idas e vindas, no trançado das esquinas me conduzem a destinos diversos,
cotidianamente. Cada fenda, cada falha, toda folha caída, os becos sem saída,
tudo me tem na pele e nos sustos, sem muito custo. São espelhos em que, de
tanto mirar-me, guardam imagens minhas sobrepostas e ofertam as opções em que
devo escolher sobre como desejo me ver em cada um dos momentos.
O
clima das estações que se vão e vêm, o início e o final dos dias: seus cheiros
e cores. As datas comemorativas ou promocionais lembram-se de mim. O perfume
que, mesmo depois de tanto tempo de esgotado o frasco, ainda anuncia minha
presença. As narinas estão impregnadas destes odores e a boca, dos paladares
que são meus.
A
noite tem a minha cara caso atormente-se com o escuro e a solidão. Se a chuva
encharca a noite e acarinha os lençóis, se o tempo frio pede alguém por perto.
Se à mesa da sala de jantar põem um prato raso e sirvam peixe cozido. Se os
jornais e as novelas da TV chamam atenção sobre si e exigem silêncio, atenção.
Se, tarde ainda, se ouvir um riso que chama à vida que se apresente com bom
humor. Traços que refaço como uma picada por onde transito a minha rotina, uma
vereda longa, estreita e conhecida logamente.
Os
livros carregam meu nome como marca de posse. Porém, mais do que isto, carregam
minhas digitais, suas páginas embebem suores, lágrimas como mata-borrões de
tempos vividos. Não são apenas meus, são eu. As mesas e cadeiras, além de
cúmplices, conformam usos que outros não suportariam, apenas a mim se ajustam
tão bem. As cenas que se apresentam neste cenário reconstituem o roteiro de uma
experiência muito particular, cada vez se propondo nova. Apesar dos gestos
gastos em se refazer, em guardar de mim o menor traço, de modo tão ostensivo e
delineie comigo o percurso que faço, cada linha sua é minha em traço.