
Regina
lê Paulo Leminski neste sábado de primavera. Demora-se na apresentação de
“Metaformose”, escrita por Alice Ruiz. Lê o trecho “Por isto não confundir com
Ovídio, não é metamorfose, é metaformose, a outra forma transformada por uma
leitura”. Retorna à leitura da frase “não é metamorfose, é metafor...” Toca o
telefone. Resiste um pouco antes de decidir atender.
Reconhece
pela voz um amigo um tanto distante com quem estivera numa roda de conversa, na
noite anterior, num barzinho na Urca. Era aniversário de uma amiga comum e a
comemoração fora naquele barzinho, com muito papo e muita risada. Antes que o
amigo se apresente, ela o interpela: — Otávio, tudo bem? Ele, como se
surpreendido, faz silêncio e em seguida confirma: — tudo bem.
Otávio
pergunta o que ela fará à noite, ao que Regina responde, automaticamente, não
ter nada programado. Diz que está lendo um livro, gosta de ler literatura,
principalmente, nos finais de semana, mesmo quando tem muitas outras tarefas a
cumprir. Sabendo que Regina não tem nada agendado para a noite, Otávio toma
coragem e pergunta se ela não gostaria de comer uma pizza.
Quase
ainda sem pensar direito, Regina toma a decisão de não aceitar o convite. Não
gosta de sair de casa à noite. Pensa que isto dá margem a uma maior exposição
às possibilidades de tornar-se vítima da violência urbana. Desde que chegou ao
Rio, pouquíssimas vezes saiu para jantar fora ou para algum outro compromisso
noturno. Explica, então, que está querendo continuar sua leitura, que outro dia
poderá aceitar o convite. Diante da recusa, o amigo não insiste. Ela agradece,
despedem-se.
Regina
não mais consegue retomar a leitura com o gosto de antes. Passa os olhos pelo
texto e não consegue absorver. Lê duas, três vezes o mesmo parágrafo sem
compreender nada. Resolve parar, e refletir sobre os últimos acontecimentos.
Esbarra nas palavras finais do convite: “comer uma pizza”.
E,
sem qualquer malícia, se pergunta: o que Otávio estaria mesmo querendo dizer
com isto? É certo que são duas pessoas maiores, livres e desimpedidas, poderiam
sair sem problema para conversar, bater um papo e jantar qualquer coisa, até
mesmo uma pizza. Regina estranha porque considera despropositado o convite para
comer uma pizza, visto que não há entre os dois nenhuma aproximação mais
estreita. O que poderia haver de errado nesta história? De repente começa a se
dar conta que os motivos alegados para não aceitar o convite não eram, de fato,
os reais motivos.
Comer
uma pizza, dito daquele modo poderia ser, simplesmente, um motivo para que se
entabulasse ali uma conversa. Ela poderia dizer que sairia com ele para
conversar, mas que não estava a fim de comer pizza ou que poderia aceitar comer
outra coisa. Poderia, inclusive, convidá-lo a vir ao seu apartamento e lhe
prepararia algo enquanto conversassem.
Num
dado momento, veio uma pergunta incômoda, será que Otávio estaria interessado
nela, seria aquele convite uma cantada? Procurou vasculhar a memória da noite
anterior, dos papos, dos olhares à mesa e não encontrou nada que pudesse
concluir alguma coisa neste sentido. Pensou em retornar a ligação e esclarecer
tudo, mas desconsiderou, não era uma boa decisão, poderia parecer oferecida.
Enquanto fechava o livro e o depositava sobre a mesa de centro bateu os olhos
no título: “Metaformose”.
Não
deixou de passar por sua imaginação a associação do título com os sentidos
possíveis daquele convite, “comer uma pizza”. Imaginou o quanto esta forma
poderia ser alterada em seu sentido, numa conversa em que buscasse argumentar
com alguém sobre o que se poderia dizer com isto. Antes de desligar as luzes da
sala, concluiu que ela própria não poderia tirar outras conclusões, senão que
um amigo não muito próximo ligou convidando-a para comer uma pizza.