
O
sol de concreto arde à pele da terra. Uma concha de azul desbotado, emborcada
sobre o cinza da paisagem incinerada, delineia o horizonte distante. Uma
estrada de piçarra que vai do sertão ao litoral, riscando a monotonia da
caatinga, estremece a extremidade distante. O vento quente redemoinha a poeira
do meio dia. Pendurada à estrada, uma casa de taipa refugia-se à sombra rala de
um cajueiro. No interior da casa esgueiram-se os moradores.
No
cenário de sol saturado, alguém se desloca na piçarra aproximando-se lentamente
mais e mais. Chega à casa e, emoldurado em contra-luz, à meia porta, bate
palmas. Uma mulher vem atender e refuga os traços. Os traços, trapos do homem
esmolambado que pede água, assustam.
Em
tempos secos circulam estórias de pessoas que, a pretexto de pedir água,
invadem as casas para saquear. O terror se interpõe. Mas, sob a proteção da luz
do dia, a mulher retorna à cozinha para apanhar a água. Entrega-lhe o copo de
alumínio, machucado, ao pedinte. Ele estende a mão direita para apanhar o copo
e, ao mesmo tempo, estende a esquerda como se tentasse pegar o braço da mulher.
De supetão, ela empurra o copo e recolhe o braço. O homem toma a água e guarda
num saco sujo o copo, sob os protestos da mulher. Ele se vira e, com a mesma
lentidão com que chegou, se afasta e retoma a estrada.
O
sol declina e a tarde esvai-se à boca da noite.
Por
essas épocas é comum que apareçam seres estranhos que tentam escapar à escassez
da seca ou, simplesmente, perambulam sem rumo pelas estradas. Transitam como
cometas que só retornam sob as mesmas condições. Mas também surgem outras
estórias, as mais diversas. Abordam enredos em que estas pessoas que esmolam
são representadas como personagens envolvidas em violência e mistério.
A
noite avança e o movimento da casa vai se encaminhando para a dormência após o
jantar minguado. Luzes de lamparina estremecem sob a brisa suave ao som dos
grilos e, vez em quando, o canto de uma coruja. Enquanto armam as redes nos
lugares marcados, ouvem que batem à porta. A mulher achega-se receosa e olha
pela fresta, vê que se trata do mesmo homem em trapos que passara
anteriormente, a pretexto de pedir água para beber, e levou consigo o copo. Ele
está em pé, diante da porta, aguardando que o atendam. Visto que naquele dia
apenas ela e as crianças estão em casa, resolve não abrir. O marido saíra para
trabalhar numa frente de serviço do governo e só retorna no final da semana.
Sem abrir a porta, ela pergunta o que ele deseja. O homem não responde e como
se não a ouvisse volta a bater na porta.
Tomada
de medo a mulher decide não alarmar para não assustar as crianças, pede que ele
vá embora e que não abrirá a porta àquela hora da noite. Informa que adiante há
uma mercearia com grande alpendre onde, geralmente, se arrancham caminheiros.
O
homem insiste nas batidas, elas vão encurtando ficando mais insistentes e em
intervalos cada vez menores. Ela, percebendo que as crianças se aproximam,
resolve acalma-las, mas sem sucesso. Choramingam e pedem que ela não abra.
A
mulher sabe da fragilidade da porta, no momento que quiser aquele homem entrará
na casa. Ele pára de bater a porta. Ela sente um breve alívio e milhares de
pressentimentos lhes vêm. Pode estar-se preparando para novas investidas. Pode
estar tramando outras ações... Enquanto medita vai juntando ao pé da porta o
que pode empurrar para dificultar que o homem entre. Olhando pela fresta
observa que ele caminha à frente da casa de um lado para o outro, lentamente.
Vez ou outra ele volta a bater forte a porta. Cada toque é um susto.
De
tão distante a casa está de outras casas que não adianta pedir por socorro.
Naquela estrada, àquela hora, ninguém caminha. Só raramente. Sem alternativas,
resolve trancar-se no quarto com as crianças e deitar-se com elas numa mesma
rede. Ali, juntinhos, adormecem.
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