Lavar e passar, dia após dia.
Horas a fio na beira do rio, batendo roupa, literalmente, até que os braços não
mais deem conta. Enquanto a roupa é batida, o sol açoita os corpos desnutridos
e resseca a pele tal qual faz com o leito seco dos lagos: queima que racha. Um
dia os panos são reclamados por uma família, noutros, por outras. Mas a rotina
repete os gestos, repete as roupas e até mesmo os pensamentos que consomem o
tempo.
À beira do rio, só as cantigas
mal cantadas, os benditos murmurados desfiam o silêncio. Afora isto, o ruído
das águas ou a algazarra dos pirralhos que se banham um pouco mais além, na
água turva. A roupa batida contra a pedra solta um repique seco e ritmado e
ecoa nos arredores como um fazer de costume, sem surpresa alguma.
A blusa que antes foi nova,
recebeu recomendações para secar à sombra, agora, desbotada, parece ter perdido
o seu sentido na espuma do sabão e no enxágue das tantas vezes que mergulhou
nas águas do rio e de outras tantas que foi torcida até que pingasse a última
gota, antes de ir-se ao varal para a secagem. O sol se entranha no tecido e
sorve tudo o que é líquido. E o vento transpassa as malhas esmaecendo as cores
e a resistência dos fios.
A roupa limpa e passada desfilará pelos dias, pelas ruas, pelas paragens inimagináveis ou, até mesmo, inconfessáveis. Vai adquirindo cheiros ou fedores dos perfumes e dos suores. Vai adquirindo estampas de coisas escorridas em ocasiões diversas: alimentos, bebidas, batons e outras intimidades. Depois retornará ao rio para o lavado e novas recomposições. No e vir se faz o seu desgaste e, ao mesmo tempo, desgasta o tempo e a vida no esforço repetido e nas horas somadas em que ficará estendida.
Por vezes surge um cerzido reunindo
no pano puído as margens do que rompeu no uso e na batida contra a pedra. Por
outras vezes, por descuido, um puxãozinho, o tecido preso à farpa do arame se
esgarça. Quando não, o ferro mais aquecido, ou esquecido sobre a roupa, queima enrugando
ou ou rompendo em pequenos furos. De qualquer modo, embora tudo isto faça parte
deste rito, também faz parte ouvir queixas, lamentos e ameaças, cobranças: “era
a minha melhor roupa”. Parece coisa feita, é sempre esta que se rasga.
Na hora da paga, os caraminguás,
como bem se diz, mínguam. O bem calcular, cada batida na pedra vale pouco mais que a fração mínima. Mas também isto já está ajustado, não há novidade
alguma. Como que por determinação da sequência, ou melhor, da consequência,
aquelas poucas cédulas e as moedas adjunto vão se transformar em alimento,
sustento para que no dia seguinte se possa lavar a roupa que está ajustada de
muito antes com a família daquele dia.
O sono da noite vira sonho que
gira em torno das águas do rio: uma roupa vestida sem consentimento e o
flagrante da dona que reage aborrecida. Tudo o que foi desejo não realizado no
decorrer do dia inventa de acontecer como experiência enquanto o corpo
adormece, no instante da noite dormida. As festas, as brincadeiras, as cores
estampadas nas melhores roupas. Até mesmo a companhia desejada. É no tempo dos
sonhos que se materializam.
As
mães passam o ofício de lavar e passar para as filhas numa história
interminável, como um destino sem apelação. Uma ou outra menina foge deste
determinismo, quando migra para outras paragens ou quando lhe falta mesmo a vontade
e se dedica a fazer outras coisas. Por vezes, coisas tão repetitivas quanto,
mas dá-se a buscar outros destinos para si.
As
lavadeiras nem se dão conta de que os destinos das peças de roupa repetem de
certa maneira os seus próprios destinos. Se por um lado, as roupas vão e voltam
às suas mãos enquanto perdem a cor e se diluem no tempo, a vida de cada uma das
mulheres que batem a roupa contra a pedra também vai-se desgastando no trabalho
repetido, no esforço dos dias, dos anos, até que tenha que repassar às gerações
mais novas a tarefa de lavar e passar.
As
roupas em seus ritos de ir e vir, de bater contra a pedra e de consumir a força
e a vida enquanto se consomem, desenham o destino das lavadeiras e das famílias
a que servem, no mesmo diapasão.
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