Toca a campainha com insistência. Ergo-me cambaleante ante o sono pesado. Ziguezagueando, entramelo as pernas finas por entre cadeiras, sofás, cantos de parede no corredor. Chego à porta e, ao abrir, cerro os olhos, por causa do sol que invade a casa, àquela hora da manhã. O carteiro, diante de mim, estende um envelope em minha direção e pede para eu assinar um papel. Rabisco qualquer coisa e fecho a porta quase raspando a mão do carteiro.
O carteiro finda ali. O sol tenta entrar pela janela. Jogo o envelope sobre uma mesa, fecho as cortinas e volto a deitar-me. O sono que me incomodava a ponto de deixar-me trôpego parece que desistiu de mim. Rolo para um lado, rolo para o outro, nada. Levanto-me e vou dar com aquilo que me tira o sono, o tal do envelope. Nem olhei direito sobre o que ele trata. Como hoje em dia me correspondo por e-mail, não levei em conta a possibilidade de se tratar de uma carta. Ainda mais, quem me enviaria uma carta a esta altura das coisas? Penso mais tratar-se de uma destas malas diretas de cartão de crédito. Conta não deve ser, não é data para isto.
Pego o envelope e, sem abri-lo, abro as cortinas e as janelas, deixo que entre o sol e tome conta da casa. É uma carta com envelope aéreo e tudo. Tem destinatário, mas não tem remetente. Neste momento, lembro de uns versos de uma canção, que dizem “Quanta verdade tristonha ou mentira risonha uma carta nos traz (composição de Aldo Cabral e Cícero Nunes e interpretada por Isaura Garcia, Vanusa e Maria Bethânia, entre outras).” De repente me bate uma dúvida: eu devo abrir ou não aquela carta? O que poderia eu precisar saber que tivesse de ser através de uma carta anônima?
Mas a curiosidade bate mais forte e decido abrir o tal envelope. Começo observando que tem um estilo formal, com todas as marcações de uma carta pessoal: nome da cidade de origem e a data de sua escritura. Interpelação respeitosa ao destinatário e leitor. Inclusive, o início do texto, “Espero que quando esta chegue às suas mãos o encontre gozando de perfeita saúde, juntamente com os seus...”
Concluo a leitura da carta e fico um tempão tomado pelo que acabo de ler. Aquele modo antigo de escritura revela um autor (ou seria uma autora?), com boa experiência de vida. Talvez, por isto mesmo, tenha preferido me escrever uma carta ao invés de me enviar um e-mail, como seria mais adequado aos dias atuais. Bom, pode ser também que quem a escreveu receie a característica que um e-mail tem de se espalhar em rede, independentemente do cuidado que se tenha ao remetê-lo a apenas um destinatário. Informações tão sérias e graves não interessam, mesmo que se espalhem irresponsavelmente pela rede. Mais do que isto, informações de caráter tão íntimo e pessoal. Corre-me pela espinha um calafrio.
Aquela carta, definitivamente, me desperta para a vida naquela manhã ensolarada. Ainda zonzo, preparo o meu banho e lavo a cabeça como se quisesse limpá-la dos pensamentos que me azucrinam. É impensável que alguém se dê ao trabalho de escrever uma carta com tantas minúcias, dirija-se a uma agência dos correios e ainda pague pela remissão de uma carta que sabe poderá mudar completamente a vida de uma pessoa, gratuitamente.
O desejo de entender os motivos do remetente, ou da remetente, mistura-se com o peso das informações que a carta traz. Parece que quanto mais eu me lavo, mais me sinto contaminado com a sujeira que as palavras, as letras, o texto da carta impregna. Não sei por que, mas à medida que lia o texto, vinha a minha mente uma pessoa, de cuja boca aquelas palavras pareciam estar sendo pronunciadas, de modo bastante apropriado.
Não sei por que aquele estilo circunspeto e incisivo me parece masculino.
Agora quem tá inquieta de curiosidade sou eu, que nao sabe o que tinha naquela carta... =D
ResponderExcluirNanda, fico feliz que vc esteja inquieta para conhecer o teor da carta. Quem sabe mais adiante a tal carta não seja publicada aqui mesmo. Continue lendo os textos e, claro, comentando. Eu só posso agradecer por vc destinar uma fração do seu valioso tempo para se ocupar de ler os meus textos.
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