Um
risco, um talhe na pele do olho. Um cisco em lâmina, argueiro que vaza o humor
vermelho e inunda o globo. Um corte esguio de bisturi. Um ver que ostenta
insatisfação com o mundo e suas coisas à vista. O sangue ferve na veia e
destempera o ritmo do coração. É assim, dizem: é o que há para ser visto.
O
humor verde amarelado amarga a língua, espasmos de vômito em profusão. A pele
eriça em calafrios, o sabor amaro da paisagem incômoda incomoda profundamente.
Assim, do modo como as fraturas são expostas e a indiferença naturaliza o mau
gosto, resta a esta anciã conhecer algo mais antigo; a novidade é a mesmice,
sempre.
Há,
de verdade, um humor físico, uma fleuma, pituíta que escorre em avalanche numa
espécie de defluxo e não anima ninguém, arranca a alma do corpo e o deixa
extasiado, inanimado diante do ver por ver coisas sem sentido. As palavras
ganham formas visíveis, sem novidade. As imagens transitam apáticas e sem
nenhuma atração.
Aos
poucos e depois de séculos, resta-nos uma irascibilidade que se derrama sobre a
pele de cada coisa e daí para o nada entre todas. É como se um certo humor
irascível predominasse nos interstícios de tudo e se impusesse como padrão de
visão sob a luz do meio-dia. O humor da bílis negra, a sensação de fim de tudo
cheio de cólera.
O
humor liquefeito das entrecoisas, das
entrelinhas que percorrem os corpos e a eles mantêm com vida convida a uma
percepção menos concreta da imagem, mas diluída nos veios, nas veias, nos
leitos. O sangue circula nas artérias como um humor viscoso, prestes a se jogar
pelos poros, a arrebentar o peito em emoções fortes ou a coagular na apatia e
no marasmo do que a vista alcança.
A
bílis emulsifica, absorve as gorduras e atua no estado de humor dos que veem
diante de si as imagens carcomidas do cansaço da visão. Cada recorte põe em
evidência humores diferentes, destes que regam a vida e envidam aceitamentos,
aceites, convidam a desconfiar do visto.
Humor
como estado de espírito, como permanência e mutação da vista. A paisagem
repousa adiante e o melhor ângulo de observação desequilibra a sua
possibilidade de contato ótico, de rejeição plena ao que a imaginação oferece.
Água umidifica as lajes, o lajedo, e se entranha nos corpos como humor sob
diversas formas. A água rega e limpa ao mesmo tempo, vai se solidificando com
os detritos que agrega no seu percurso. A água contamina-se do mesmo modo que a
visão vai se incrustando da sujeira das coisas vulgares que se ofertam de novidade.
A
alma, com seus humores, paira sobre o mundo entorpecida. O sangue circula no
corpo assim como os outros humores, a mistura é inevitável e letal. A diferença
se impõe a cada um no lugar mesmo em que atua. Só uma eventualidade há de romper seus
destinos. Só uma grande emoção ou um prazer desmedido, destes que parecem
perder a probabilidade de ocorrência numa rapidez vertiginosa.
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