
Um
cheiro de tarde entra pela janela aberta, um vento frio agita as cortinas e
esfria o tempo no interior da sala. Levanto-me com o intuito de fechar a
janela, antes estico o olhar por sobre a grama amarelecida que o vento
despenteia e que contorna a casa, antes que a vista alcance a areia da praia.
Adiante, o mar encrespa-se. Penso que pode haver ressaca esta noite. Fico um
bom tempo observando o agito da brisa e um pedaço de papel de jornal me chama a
atenção: vem rolando sobre a grama, como se brincasse, ao sabor do vento frio.
Para próximo à parede da casa, detido por um ramo seco fincado na areia.
De
imediato, me dou conta dos movimentos diversos ali expressos: tudo o que move
os procedimentos de fabricação do papel, os processamentos industriais de
produção da notícia impressa nos jornais e, contrariamente, o tempo atuando
sobre o papel até deixá-lo com aquele aspecto envelhecido; a primeira condição
daquela página numerada, como parte de um caderno, até sua nova condição de
fragmento solto e entregue ao vento; a origem, o seu lugar de partida (jornal O
Povo, Fortaleza, Ceará, edição de 18 de abril de 2002), e sua trajetória até
ali, sendo deslocado como se vida própria tivesse; o objetivo de tornar-se
notícia, como novidade e atualidade, e o seu estágio atual de lixo urbano em
decomposição. Neste aspecto, amanhã já não estará mais ali, o lixeiro há de
catá-lo junto com as folhas e outros detritos.
Num
arquivo do proprio jornal, de uma biblioteca ou de um museu seria memória,
seria história, material para pesquisa para o interesse de vários cientistas:
historiadores, sociólogos, comunicólogos, professores etc. Uma narrativa acerca
da realidade de um lugar, num tempo determinado, com registro do tipo de fazer
e pensar de alguém, de uma comunidade, de uma época. Problemas humanos
observados sob diversos pontos de vista.
Por
pura curiosidade, busco ver que notícias aquela quase folha de jornal traz.
Deve ser pouco mais de meia página, rasgada irregularmente na parte anterior. O
título de uma das matérias anuncia seguinte: “Placa com nome errado de avenida
está exposta há 2 anos”. O texto fala sobre uma placa indicativa numa Rua de
Fortaleza chamada 31 de abril. Nem me fixo muito em qual calendário a
Prefeitura de Fortaleza pode ter encontrado o mês de abril com 31 dias ou mesmo
no disparate que é uma placa de rua homenagear uma data que não existe. Que
fato poderia ter ocorrido nesta data? Sim porque uma data não tem nenhum valor
se não marca um acontecimento importante. De imediato, penso em quantas pessoas
devem se orientar pelas placas das ruas sem ao menos refletir sobre do que
tratam: datas ou nomes de homenageados.
Todos
os dias passamos por placas nas esquinas das ruas e não nos perguntamos sobre a
pertinência do nome da rua, da justeza da homenagem e nem sobre se estão
corretos ou não os dados ali postos a nos servirem de orientação. Por que
alguém agora se deu conta que há dois anos uma placa de uma Rua no Bairro
Aeroporto, em Fortaleza, se chama 31 de abril? E por qual motivo este pedaço de
jornal veio parar nesta praia, tão distante do Ceará?
Deixo
em paz a página de jornal e estico a vista para mais adiante onde uma canoa
balança, movida pelas ondas do mar. Não tem ninguém sobre si, fica-se a
resvalar nas ondas e agitar-se mais ou menos a depender do tamanho de cada onda
que lhe impacta. A pouca luz que ainda resiste à tarde mostra suas tábuas
escurecidas e restos de cores vermelhas e azuis em faixas paralelas que lhe
devem ter sido pintadas quando antes mais nova. Seu estado fala do tempo gasto
ao longo de chegar até sua condição atual. Fala, talvez, do descuido do seu
dono que não lhe renova as cores. Ou, quem sabe, da precariedade dos recursos
que possui que não lhes permitem pinta-la novamente.
Fala
de suas idas e vindas ao alto mar em busca do peixe para a venda e para a mesa
do pescador: o atrito com a água deve ter-lhe esmaecido as cores. Não há
dúvidas de que se trata de um pescador, nesta região não existem pescadoras que
utilizem canoas para arriscar-se em mar aberto. Uma vez ou outra, vemos alguma
mulher pescando à tardinha, mas de anzol, á beira do mar. Usam o caniço longo e
arremessam o anzol distante, ficam-se ali até que algum peixe miúdo belisque,
donde vão enrolando a linha até ter o peixinho à mão. É só um espécie de prazer
que têm, o de fisgar peixinhos miúdos ao final das tardes com os pés fincados
na pouca água que as ondas arremessam mansamente.
Agora,
olhando para dentro de casa, a escuridão me diz para acender uma luz. A pele
resfriada pede para eu fechar a janela e ir-me requentar no interior da casa ou
na sopa quente que me espera à mesa.
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