segunda-feira, 4 de outubro de 2010

CORPOS SEM FACE


O que se apresenta através de nós como uma materialidade atemporal não tem face definida, mas tem corpo, o corpo humano. O caráter transitório de cada um amplia o existir da experiência deste corpo, mas não goza do tempo de sua vitória, não participa do seu futuro. O equívoco de se constituir como singularidade sustenta a farsa da festa e alimenta os conflitos em torno de algo que não existe a não ser como miragem.
Todos os dias o noticiário estampa as imagens de corpos abatidos na selvageria dos crimes pela posse e distribuição das drogas, pelo desejo de ter algum bem destes que a televisão anuncia, pelo sufoco que o estômago vazio impõe, pela pura falta de compaixão ou piedade consigo e/ou com os outros etc. etc.
São todos corpos sem vida desde há muito. São corpos sem origem, sem nome, sem alguém que os reclame. Simplesmente existem na imagem repetida cotidianamente dos jornais expostos nas bancas, sob os olhares acostumados dos leitores e das autoridades iletradas.
São corpos sem lei, obedientes ao comando de posar assim, sem camisa, estendido e inerte num matagal nos arredores da cidade. Dispostos como a anunciar sua presença, finalmente. Uma imagem de alguém que não se sabe quem, um corpo a mais na vala comum da mídia policial.
Um dia, estão de calças jeans, noutro, de bermudas, noutros ainda, só de cuecas. As pernas cruzadas, afastadas, amarradas, sem uma perna, sem as duas pernas e sem braços...
Em geral, a pele escura reluz ao marrom predominante do capinzal que lhe abriga. Retalhos de um tecido vermelho indiciam que vestiam camisas ou que o sangue coalhado sobre pinta as cores da cena do alvorecer como a repetir a morte do leiteiro que Carlos conta em poesia.
São guris de meia idade, de papo pro ar, estampados em manchete, com vendas nos olhos, com legendas e em decúbito dorsais. A cada dia os mesmos pontos de desova amanhecem abastecidos num ritual macabro dos dias atuais. Não há marcas na camisa, os tênis não existem mais, não há etiquetas nas calças e nem os sonhos ou os delírios sutis.
São corpos de uma guerra que não nos pertence. São restos mortais de soldados abatidos na luta cotidiana, sob a desorientação dos verbos, dos objetos, dos predicados verbais. Não existem documentos, não resistem as testemunhas, não procedem as investigações e não prosperam os laudos periciais.
Resultam de tramas e ardis que impuseram a si mesmos. São corpos ofertados a esmo como troféus, crimes sem álibis, são produtos anunciados nos intervalos comerciais. A audiência diante da TV almoça indiferente à carne que consome. Os olhos ardentes desejam o colt 45 de última geração.
A indústria de armas abate em treinamento os boçais e os imbecis. E o esgoto decanta pela enésima vez a água que será engarrafada e distribuída aos que tem sede de justiça, aos que se arvoram de verdes ainda que amarelecidos. Os projéteis que destroçam corpos e os ofertam em série todos os dias são oferecidos para o sacrifício de novas unidades de exemplares advindos de gerações ainda mais jovens.
Os Institutos de Medicina Legal recebem os corpos sem face ante o contrato de guardarem sigilo dos seus destinos; de remunerarem as funerárias e os distribuírem, sob amparo da indigência, aos estudos médicos dos cursos de medicina donde serão subtraídas as vísceras e devidamente dissecados para o progresso da balística.

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