Zé Cabelão é um sujeito esquisito, é malvisto no bairro: esconde a cara sob a barba espessa e o cabelo desgrenhado. Mora na Rua do Fogo, a rua que fica por trás da minha. Dizem que a rua tem este nome porque vez por outra os vizinhos aprontam barracos. Sempre há umas intrigas, uns diz-que-diz-que. Como falavam os mais antigos: “uma verdadeira indústria de tecer fuxicos”.
Zé Cabelão tem tudo a ver com a Rua do Fogo, não que ele ande brigando ou discutindo. Não, é caladão. Ninguém, que eu saiba, ouviu sua voz até hoje. Entra em casa e se tranca. Ninguém dá notícia dele por longos dias. Mas falam que ele é esquentado, não leva desaforo para casa, que não dá carne a gato, dá sebo quente. Por conta deste seu comportamento fora dos padrões, muitas histórias são contadas sobre suas esquisitices. Dizem que ele só sai de casa à noite, de quinta para sexta-feira. Que tem unhas grandes, e faz ruídos estranhos. Estas coisas que costumam contar sobre quem vive sozinho e não permite que invadam seus espaços.
Dizem também que um sobrinho dele veio certa vez passar férias em sua casa, teve uma crise de sonambulismo, levantou da rede numa noite destas e deu a chutar a rede do tio, o Zé Cabelão, mandando que ele levantasse e fosse fazer alguma coisa. Dizem que Zé Cabelão não disse e nem fez nada. Mas o tal sobrinho, depois deste dia, nunca mais apareceu na Rua do Fogo. Também não sei como esta história apareceu no bairro, como estas coisas vazam. Só sei que contam.
Dias há em que a gente fica batendo bola, num campinho de terra, no final da rua e ele passa, sempre à tardinha, vem de dentro do terreno baldio, ao lado do campinho. Surge do nada. Não se sabe o que faz dentro daquele matagal. Quando ele aparece, a gente para o jogo e fica desviando o olhar como se não o percebesse, embora ele deva saber que o jogo para por sua causa. Atravessa o campo sem dizer coisa alguma, sem olhar para os lados, sem expressar qualquer reação. Passa, simplesmente.
Pode até ser que nenhuma das histórias que contam seja verdade, mas que ele é esquisito é, muito. Roupas escuras, sem cor definida, sem desenho certo. Não são sujas, não fedem, pelo menos à distância que mantemos dele. Mas não estão de acordo com o que as pessoas do bairro vestem. São muito sinistras.
Enquanto atravessa o campinho, ficamos como que virando as costas para ele, porque dizem que não é seguro ver os seus olhos. Dizem que ele tem mau-olhado. E que as pessoas que viram seus olhos morreram tísicas. Pior, poucos dias depois. Sabe aquela história do olhar que seca pimenteira? Pois é, dizem que é assim. Seca gente também.
Contam que ele ficou assim por causa de uma decepção amorosa. Pelo que dizem, ele morava em outro lugar, distante daqui. Parece que estava noivo, tinha preparado tudo para o casamento e, na véspera, a noiva fugiu com o padre da cidade. O cara era rico e tudo. Pegou um dinheirinho e com a roupa do corpo passou a perambular pelo mundo em busca da mulher. Não se sabe se ele a encontrou. O certo é que chegou por aqui há algum tempo e comprou a casa em que mora. Há até quem especule que a tal mulher mora no bairro, mas ninguém sabe quem é. Só ele.
Mas, também, ninguém sabe qual é a tal cidade de onde ele veio e nem se esta história é verdadeira, porque ele mesmo não deve tê-la contado para ninguém. Nunca soube de onde surgiu tal história. Só sei que contam. De todas as ameaças que dizem vir dele, a que mais o povo do bairro teme é a de ver os seus olhos. E as pessoas que experimentaram ver os seus olhos nunca souberam contar direito o que viram. O que se sabe é que tais pessoas definharam da noite para o dia e morreram tísicas. Zé Cabelão é malvisto, provoca mau-olhado.
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