domingo, 16 de janeiro de 2011

MEIO TERNO E MEIO


A dona da casa anda de um lado para o outro como a querer descobrir algo para fazer. Aproxima-se a hora de o esposo chegar do hospital; internado, após vários dias fora de casa, vítima de um aneurisma cerebral. Não é tão grave, mas suficientemente forte para deixá-lo com o lado direito da face meio insensível.
As filhas, os netos, todos estão empenhados em arrumar a casa para receber aquele que, apesar de ser um tanto ranzinza, é o dono da casa e tem um senso de humor muito refinado. Esperam um telefonema do hospital, comunicando a alta médica para irem buscá-lo. Enquanto isto, lavam e enceram o piso da casa inteira, trocam os panos e arrumam a cama em que há de se acomodar. Mudam um jarro, uma planta de lugar.
Todo mundo está voltado para as tarefas da arrumação, à espera do retorno.
A dona da casa acha por bem, na falta de outra coisa, passar a roupa do marido para diminuir a sua ânsia e o seu nervosismo. Esteve com ele todos os momentos durante sua estada no hospital, acompanhou de perto sua melhora e ficou muita angustiada nos piores momentos, mas naquele dia quis vir antes para arrumar tudo para recebê-lo.
À busca de qual roupa passar, vai separando em cima da cama, aquelas que mais carecem de um ferro quente. Cada peça de roupa com que se depara vai ativando a memória, como se aquele exercício tivesse a ver com alguém já ausente. A Memória involuntária provocada pelas peças conecta momentos de sua companhia e a afeta como uma saudade profunda. Percebendo isto, questiona-se se não estará atraindo para si coisas que não deseja. Tomada por este sentimento, pega as roupas já separadas e sai do quarto buscando pensar noutra coisa. A sensação é de medo e de angústia.
Arruma a tábua de passar, liga o ferro e a TV para tentar desviar a atenção daquele sentimento triste. Procura uma explicação consigo: a única coisa que lhe vem à mente é uma leve sensação de culpa, porque naquela noite de sábado, em que o marido teve o desmaio motivado pelo aneurisma, os dois haviam discutido. Mas, até agora, não havia sentido tal culpa. Neste momento, toca o telefone. Para de engomar e escuta a filha que confirma estar saindo para ir buscar o pai no hospital.
Volta à sua tarefa, de olho na televisão. Outra parte da família fica conferindo se está tudo conforme o planejado, se cada coisa está no lugar devido para a recepção. As faixas de rua desejando boas vindas, saúde, declarando amor eterno etc.
Já há vizinhos chegando e se oferecendo para ajudar na arrumação.
Pouco depois, o carro estaciona na calçada de casa e ele desce amparado pelos filhos. Palmas, vivas, sorrisos. Ele faz de conta que não é com ele. Está sisudo, com cara de poucos amigos. Ao entrar em casa, a esposa vem recebê-lo e o ajuda a sentar-se no sofá. Diz que não quer ir deitar-se porque esteve todo o tempo deitado em uma cama de hospital. Quer ficar ali, junto com a família. A esposa retorna ao seu serviço de engomar a roupa. No instante em que ele se senta, avista aquele trabalho dela, mas não comenta nada.
Aos poucos a casa vai se esvaziando de curiosos e logo só estão ele e a esposa na sala. Ela engoma o paletó dele. Ele pede a ela que lhe pegue um copo com água. Ela larga o que está fazendo e vai à geladeira para pegar a água. Quando retorna, e vai continuar a engomar o terno, percebe que a calça tem as duas pernas cortadas, um pouco acima da dobra do joelho. Ela fica boquiaberta, quem poderia ter feito aquilo em tão pouco tempo, pergunta-se. Aí, ela o escuta dizer, resmungando, com a boca meio torta: “se você estava pensando em me enterrar com este paletó, enganou-se. Ele agora não presta mais para nada”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário