sábado, 20 de março de 2010

AS OUTRAS COISAS



Regina lê Paulo Leminski neste sábado de primavera. Demora-se na apresentação de “Metaformose”, escrita por Alice Ruiz. Lê o trecho “Por isto não confundir com Ovídio, não é metamorfose, é metaformose, a outra forma transformada por uma leitura”. Retorna à leitura da frase “não é metamorfose, é metafor...” Toca o telefone. Resiste um pouco antes de decidir atender.
Reconhece pela voz um amigo um tanto distante com quem estivera numa roda de conversa, na noite anterior, num barzinho na Urca. Era aniversário de uma amiga comum e a comemoração fora naquele barzinho, com muito papo e muita risada. Antes que o amigo se apresente, ela o interpela: — Otávio, tudo bem? Ele, como se surpreendido, faz silêncio e em seguida confirma: — tudo bem.
Otávio pergunta o que ela fará à noite, ao que Regina responde, automaticamente, não ter nada programado. Diz que está lendo um livro, gosta de ler literatura, principalmente, nos finais de semana, mesmo quando tem muitas outras tarefas a cumprir. Sabendo que Regina não tem nada agendado para a noite, Otávio toma coragem e pergunta se ela não gostaria de comer uma pizza.
Quase ainda sem pensar direito, Regina toma a decisão de não aceitar o convite. Não gosta de sair de casa à noite. Pensa que isto dá margem a uma maior exposição às possibilidades de tornar-se vítima da violência urbana. Desde que chegou ao Rio, pouquíssimas vezes saiu para jantar fora ou para algum outro compromisso noturno. Explica, então, que está querendo continuar sua leitura, que outro dia poderá aceitar o convite. Diante da recusa, o amigo não insiste. Ela agradece, despedem-se.
Regina não mais consegue retomar a leitura com o gosto de antes. Passa os olhos pelo texto e não consegue absorver. Lê duas, três vezes o mesmo parágrafo sem compreender nada. Resolve parar, e refletir sobre os últimos acontecimentos. Esbarra nas palavras finais do convite: “comer uma pizza”.
E, sem qualquer malícia, se pergunta: o que Otávio estaria mesmo querendo dizer com isto? É certo que são duas pessoas maiores, livres e desimpedidas, poderiam sair sem problema para conversar, bater um papo e jantar qualquer coisa, até mesmo uma pizza. Regina estranha porque considera despropositado o convite para comer uma pizza, visto que não há entre os dois nenhuma aproximação mais estreita. O que poderia haver de errado nesta história? De repente começa a se dar conta que os motivos alegados para não aceitar o convite não eram, de fato, os reais motivos.
Comer uma pizza, dito daquele modo poderia ser, simplesmente, um motivo para que se entabulasse ali uma conversa. Ela poderia dizer que sairia com ele para conversar, mas que não estava a fim de comer pizza ou que poderia aceitar comer outra coisa. Poderia, inclusive, convidá-lo a vir ao seu apartamento e lhe prepararia algo enquanto conversassem.
Num dado momento, veio uma pergunta incômoda, será que Otávio estaria interessado nela, seria aquele convite uma cantada? Procurou vasculhar a memória da noite anterior, dos papos, dos olhares à mesa e não encontrou nada que pudesse concluir alguma coisa neste sentido. Pensou em retornar a ligação e esclarecer tudo, mas desconsiderou, não era uma boa decisão, poderia parecer oferecida. Enquanto fechava o livro e o depositava sobre a mesa de centro bateu os olhos no título: “Metaformose”.
Não deixou de passar por sua imaginação a associação do título com os sentidos possíveis daquele convite, “comer uma pizza”. Imaginou o quanto esta forma poderia ser alterada em seu sentido, numa conversa em que buscasse argumentar com alguém sobre o que se poderia dizer com isto. Antes de desligar as luzes da sala, concluiu que ela própria não poderia tirar outras conclusões, senão que um amigo não muito próximo ligou convidando-a para comer uma pizza.