segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

JORGE E BRUHMA


Jorge conheceu Bruhma em uma cidadezinha do Interior, por acaso. Ele andava por lá visitando uns parentes e a viu, de relance, passando no outro lado da rua. Acompanhou-a com os olhos até onde deu. Foi embora, lamentando não a ter visto mais de perto. Depois, por coincidência, Jorge a encontra na igreja, por ocasião de uma cerimônia de batizado. Os dois saem ao mesmo tempo e se encontram na calçada. Param, olham-se, sorriem e se vão para destinos diferentes. Mais uma vez, Jorge lamenta, naquela ocasião estava com a esposa, e Bruhma, também, acompanhada.
Depois de algum tempo, encontram-se na Capital e, por conta deste encontro, em lugar tão distante dos primeiros, iniciam uma conversa. Resolvem almoçar juntos e descobrem que são casados, que têm filhos e, que naquele momento, vivem uma crise conjugal. Ela alega que o marido a sufoca, não permite que tenha independência, que se manifeste livremente. Ele diz que a esposa tem umas manias, certos pensamentos fixos, não esclarece nada, mas acaba dizendo que isto vem atrapalhando o casamento.
Desde então, passam a se encontrar com mais constância, e cada um dos encontros é marcado com hora e lugar determinado. Percebem que se aproximam um do outro, mas não põem dificuldade. Pelo contrário, abreviam os intervalos cada vez mais. Depois de algum tempo, resolvem romper com o casamento para ficarem juntos. Mas ficar juntos não significa viverem sob o mesmo teto. Vão planejando e, ao mesmo tempo, conhecendo-se melhor.
A vida de Jorge e Bruhma transforma-se numa espécie de romance em que tudo é feliz. Passeios, aventuras, brincadeiras e muito amor. Juras e promessas de futuro encantador. Amam-se de modo intenso. A cada dia descobrem mais afinidades e a necessidade que sentem, mutuamente, um do outro. Têm certeza de que nasceram um para o outro e não entendem por que estiveram tanto tempo casados com pessoas tão diferentes. De repente, uma novidade: aqui e acolá um dos filhos obriga que um encontro seja desmarcado. Eles se aborrecem, mas compreendem a situação.
Depois surgem outras novidades ainda mais desagradáveis: Jorge descobre que sua namorada anda saindo com o ex-marido. Não gosta, mas não pede explicações. Diz que entende que os dois têm filho e que não há motivo para se preocupar. Depois é Bruhma quem descobre que Jorge, a pretexto de realizar negócios e de ver o filho, de vez em quando viaja para a cidade em que mora sua ex-mulher.
A situação vai ficando complicada e cada vez fica mais difícil explicar o retorno ao passado. Cada um entende que a sua situação é perfeitamente compreensível, mas nega ao outro a mesma facilidade de compreensão. O certo é que as coisas se encaminham para o impasse e, num dado momento, se torna insustentável. Ocorre, então, o rompimento. Apesar de várias tentativas de conciliação e de reconstrução da história de amor, a relação vai se esgarçando e, finalmente, decidem que cada um deve seguir seu caminho. Tristeza profunda, choro e ranger de dentes.
Ainda muito machucados vão se abrigar no conforto do passado. Ela volta a considerar a corte e os agrados do ex-marido e ele volta a ser gentil e agradável com a ex-esposa. Alegam que há, na decisão pessoal, o desejo de reagrupar a família e atender aos desejos do filho que sempre sofreu com a separação. O ex-esposo revela-se um homem apaixonado e disposto a não repetir os erros do passado. Jorge garante a ex-esposa que tudo será diferente doravante. As famílias se reconstituem e parecem experimentar novos tempos de felicidade.
Bruhma gasta seu tempo entre o trabalho e a internet, quando está em casa. É sempre a última a ir para a cama. Mas diz viver uma felicidade nunca experimentada. Some do círculo de amizade e das noitadas com as amigas, mas garante que nunca foi tão feliz na vida.
Jorge entrega-se ao trabalho mais do que antes, para pensar o mínimo possível na situação, e investe seriamente na sua “nova” condição: marido e pai de família, embora cheio de dúvidas sobre o que sente por sua esposa.
Bruhma conhece Marcos na Internet, na sua timeline do twitter.

domingo, 12 de dezembro de 2010

JOÃO, REGINA E O PÉ DE FEIJÃO


Regina chega ao seu apartamento naquele dia com certo brilho nos olhos, mais adaptada à cidade, descobriu uma livraria em seu caminho, e, passando por lá, teve a ideia de comprar um livro que pudesse ler, na companhia de Hermano, antes de dormir. Trouxe o livro de um autor desconhecido, chamado Raimundo Santana Lemos. Trata-se de uma recriação da história João e o Pé de Feijão.
Tudo pronto, Regina começa ler a história para Hermano.
João descobriu em meio à vegetação rasteira de uma capoeira em suas terras um enxu, uma espécie de abelha que produz mel em colmeia no subsolo. A quantidade de mel era tal que João teve que utilizar uma burra para transportá-lo em barris. E de tanto trabalho, utilizando cangalhas com cargas pesadas de mel, criou-se uma peladura no lombo da mula. Ensinaram para João que pó de feijão torrado ajuda a cicatrizar e evita varejeiras. João colocou o pó de feijão na bicheira e soltou a mula, lamentando não ter concluído o transporte do mel. Tanto ainda que ficou por engarrafar que o lugar tornou-se uma imensa lagoa de mel de enxu.
Passado o período chuvoso, João põe-se a procurar a burra no capoeiral. Soube, em sua busca, que um fenômeno vinha chamando a atenção de moradores da região em uma de suas capoeiras, um pé de feijão crescera tanto que ninguém conseguia ver o seu final, nem olhando de longe, porque o tal pé de feijão entrava nuvem adentro. João esqueceu, por momentos, sua busca e foi verificar a procedência de tal história.
Chegando ao lugar, viu que era verdade, e, de tanta admiração, foi logo entrando na moita. Surpreso, percebeu que aquele enorme pé de feijão crescera no lombo de sua burra. A coitada mantinha-se quieta, deitada, porque não conseguia levantar-se. João, então, foi à sua casa e trouxe alguns amigos para ajudá-lo a derrubar aquele pé de feijão e recuperar seu animal de carga. Retornando, deu de garra do machado e juntou a contar as ramas do pé de feijão, junto com seus auxiliares.
Foi derrubando vagens e subindo na ramagem. Percebe que começa a juntar gente com animais com cambitos e caçuás que enchiam de feijão, transformando-se numa enorme romaria, com filas imensas indo e voltando. Mas João não deu trela, estava preocupado em livrar sua burra de tamanha dificuldade e levá-la para casa, outros serviços dependiam dela.
Quando João deu por si estava em um lugar muito estranho, parecia fumaça ou nuvem. João deixou o pé de feijão e começou a caminhar sobre aquela superfície, fascinado. Era tão estranha a sensação esquisita sob seus pés. E, ao se afastar, não percebeu que seus amigos haviam conseguido, finalmente, derrubar pé de feijão. João ficou sem poder descer. Danou-se a caminhar, quando avistou uma casinha simples, de quintal, com cerca de pau-a-pique onde havia roupas de frades estendidas. João não contou pipoca, pegou os cordões que servem de cinto aos frades, amarrou uns aos outros, pendurou uma extremidade na cerca e deixou descer a outra.
Segurando-se devagarzinho, foi descendo com todo cuidado. Mas, ao chegar ao final, viu que ainda faltava muito para alcançar o chão. Com muito esforço, retornou a casa e ficou pensando no que fazer. Logo, apareceu São Francisco, o dono da casa que lamentou não poder fazer muito por João a não ser ceder seus cordões novamente já que João os havia retirado sem permissão. Enquanto pensava, João viu subir até ele uma coluna de fumaça com forte cheiro. Por este cheiro, João identificou tratar-se da fumaça do cachimbo que sua avó fumava sempre à tardinha. João teve, então, a ideia de trançar esta fumaça e emendar a trança com o cordão e descer novamente.
Ao final, João chegou a uns dois a três metros de distância do chão. Entendeu que não conseguiria subir outra vez, e decidiu pular, mesmo arriscando machucar-se seriamente. A sorte é que João caiu justo na parte rasa da lagoa de mel de enxu que se formara. Mas, por trama do destino, atolou-se, não conseguia sair do lugar. Gritou que ficou rouco, por alguém que o viesse puxar dali. Não vindo ninguém, João tomou uma decisão: foi a sua casa, trouxe uma enxada e desatolou-se.

sábado, 4 de dezembro de 2010

ITINERÁRIO DAS ÁGUAS


Foto do autor

Teresina acolhe por confiança os náufragos. Extenuados, sob a luz que encandeia solitários andarilhos, abrigam-se resguardados em marquises mais urgentes, em telhados ociosos, em latadas providenciais. A rigor não conduzem mais nada além da alma aflita ou do coração à espreita. E com vagar aguardam o tempo de seguir em frente. Aos poucos, penetram os rios e as amizades. Fincam pé e alguns fincam a vida no chão batido e petrificado do corpo árido da cidade.
O encanto das pessoas seduz e pretexta o ficar-se, como quem se justifica sem convencimento. O calor lá fora explica o desejo da sombra. As noites não contam como razão de ir-se porque, porque, bem... à noite correm-se riscos. Melhor não ocorrer.
A amizade, a vizinhança, um emprego à vista. As raízes vão penetrando a terra e os laços embaraçando-se num permanecer sem paradeiro. Difícil desalinhar.
Melhor pensar nos filhos a criar e na cerveja gelada em que se fartam os desejos e as conversas providas em mesa de bar. A música que flui de todos os lados e a alegria desmedida dos que estão à volta, por qualquer motivo. Melhor ficar por algum tempo. Partir é uma promessa no horizonte que se afasta à aproximação.
Aos poucos se perdem as diferenças, e os estranhamentos se confundem com sentimentos próprios. Eles se transmutam em nós. Não mais há fronteiras possíveis. Já quando tem que enunciar, a origem gagueja, duvida, mostra incertezas. Os traços físicos são a única pista que denuncia uma história longa e complicada de buscas. É o espelho que produz a adversidade, a alteridade.
As margens se fundem e os traços de contorno transformam-se em traços de união. As palavras se apropriam e os gestos mimetizam o ser e a paisagem. As passagens são pontes que conduzem ao ir e vir. Mas as possibilidades de retorno prometem, ou melhor, ameaçam ruir o tempo de outros lugares. Carece sejam arrancadas e retiradas as raízes com dor estúpida.
Teresina recicla os migrantes e seus anseios. Apaziguados, à luz que ilumina a vida, cada um é parte dos que habitam a cidade e sorvem seus sonhos. As ruas e as avenidas têm destino conhecido, nomes familiares e até são cenários de histórias pessoais. Os bairros são lembranças dos endereços e das comunidades de que se fez parte. Quem, por acaso, puxar um fio determinado da história da cidade terá, certamente, de mencionar nomes, pessoas que partilham há muito as experiências de vivenciar a cidade. É de alguém que se conhece de que se fala. É de um lugar comum a que se refere nas conversas do cotidiano. Pessoas que se perdem e se lamentam, outras que nascem e passam a conviver, dividindo tempo e espaço enquanto se fiam pavios nos interstícios dos nomes que povoam o círculo de amizades.
Endereço fixo, com Código de Endereçamento Postal e tudo. Colégio dos filhos, trabalho diário, entretenimento e consumo dos bens que a cidade oferta: cinema, supermercado, teatro, transporte etc. Teresina é um lugar para o qual se retorna sempre, mesmo que em viagens mais demoradas. A referência onde ancora destinos, necessariamente.
Convites e compromissos nos finais de semana. Presença certa em solenidades e testemunho de fatos inesquecíveis na vida de outras pessoas. Lembranças dos traços que a cidade já não apresenta e deslumbramento nos novos modos de se apresentar ao mundo. Divisão de planos para as vias prometidas e que devem conduzir todos ao futuro com mais conforto e segurança. Expectativa de comemorar as datas da família, da cidade, do país no decorrer do ano. Ano após ano. Atravessar as missões com o cuidado de quem preserva a promessa de retribuir à cidade o bem do acolhimento, em momento de dúvida e desejos insustentáveis.

domingo, 21 de novembro de 2010

IMERSO NUMA SAUDADE IMENSA


O tempo é curto. No entanto, se gasta o tempo contra si. Lembra-se de ontem? A urgência era aproveitar bem enquanto estávamos juntos. A gente não esperava que as palavras amadurecessem no calor das pronúncias, colhíamos diretamente da boca um do outro. Talvez, até, as tocássemos ainda no coração. Éramos de tal modo feito pressa que sequer notávamos a ciranda dos ponteiros do relógio sobreposto contra nós. Num momento, como por impulso, hora de nos separamos. Cada um em sua casa, repetias. Mesmo assim, ainda eternizávamos um beijo de despedida, de até loguinho. Até já. O sol haveria de ser breve, e a noite nos uniria novamente.
O que foi feito de nós, que o tempo inteiro agora ainda não se basta? E nos olhamos em torno e não nos vemos. O que foi feito das palavras sob este silêncio rochoso que não conseguimos mover? O que foi feito do ardor que nos cobria a pele ou, melhor, nos ardia a carne exposta. O que foi feito do futuro que nos prometemos tanto? Que boca é esta que nos engole e não nos deixa escapar neste espaço imensurável, nesse nada, tão largo e renitente?
Cada um seguiu sua vida. Este é o equivoco. Minha vida não há onde não é a tua. Tua vida não existe onde não existe de mim coisa alguma. Cada um é neste instante uma promessa para o outro, mas fora de propósito em outros tempos. Certo que foram poucos dias, um mês e meio ou um pouco mais. Mas o que é que há em explicação a esta saudade secular? Não se explica, simplesmente. É tudo falta. É tudo vazio. É tudo negação e incômodo. Sequer há o que seguir. Estamos, estou num ontem eterno. Hoje para quê? Amanhã para quê? Liames evanesceram e já não existem passagens de um a outro tempo ou lugar.
Trago a delicadeza da primeira vez de teu rosto em minhas mãos como uma marca forjada a ferro em brasa. O alvor de tua pele como uma luz que desfaz a noite para sempre. O teu cheiro, o aroma de teus beijos como uma lembrança que não se realiza nem some por completo. O teu sorriso é o refúgio com que me escudo e atravesso os desertos da insônia feroz. É sob os teus cabelos que eu escondo meus medos e a solidão.
Uma colagem de frases remonta a cenários e cenas altamente enredadas em emoções pessoais. Sussurros que me pedem para ter paciência, para acreditar em algo que não se esclarece. Escuto meu nome pronunciado como uma confissão de amor, um êxtase cheio de desejo e temores. Há pedidos repetidos, insistentemente, para que eu entenda, para que eu pare, como uma negação vacilante. Ao mesmo tempo, há um tom de súplica que me pede para insistir. Ou seria só a minha vontade de prosseguir que me faz ouvi-la suplicar de tal modo? A lua derrama-se em ti e seu néctar rola abundante sobre o teu corpo, feito mel. O sol crepuscular espalha em teus seios pétalas de rosas vermelhas. O céu inflama-se e sugamos o sumo sagrado de nossas vísceras que nos sacia corpo e alma.
Neste momento, porém, trago o vazio de tua ausência entre os meus braços e as mãos cheias de saudade de um breve tempo de intensos e singelos fulgores. E já absorto em meus caminhos e pensamentos desperto para uma flor que me diz seu nome. Aliás, tudo em minha volta fala de ti, mesmo o silêncio abissal.
Mas, ao mesmo tempo, falta-me chão sob os pés, ao ímpeto de rios que me impulsionam sem direção, arrebatam e arrebentam as cordas que prendem ao cais, lanço-me só em precipícios de corredeiras e quedas d’água mais e mais. Enchem-me os olhos miragens de cores que trançam as paisagens e deformam-se em correria, desfiando-se ao longo das margens. Por instante, lembro o poeta moço de outras paragens cuja poesia precipita-se em barco bêbado descendo rios impassíveis.
O tempo é pouco. E, no entanto, gasta-se o tempo contra si.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

FIM DA LINHA



Há tempo espero um ônibus que me conduza ao trabalho. Cheguei à parada às 7 horas em ponto. Todos os que me servem passam lotados e nem param. Vejo que se aproxima um ônibus que posso apanhar, mas que me deixa a três quadras do local em que trabalho. Vem com muita gente já em pé, mas não está lotado. Dou sinal, ele vai parar mais à frente. Corro e subo, topando nas pessoas que se alojaram nos degraus da porta de entrada. Reclamam. Eu também. O trocador está com a cabeça deitada sobre os braços, escorado na gaveta, parece que dorme. Toco-lhe os braços e digo que vou passar. Forço a roleta, mas as pernas do trocador emperram, não me deixam ir em frente.
Alguns passageiros observam a cena com ar de riso. Toco a cabeça do trocador com insistência. Ele se ergue, e me olha com indiferença, os olhos ainda apertados de sono. Para pagar uma passagem de um real e trinta e cinco centavos, entrego-lhe uma cédula de cinco reais. Ele me passa o troco de três reais e sessenta centavos. Digo que está errado, ele, sem olhar para mim, mete a mão na gaveta e entrega os cinco centavos que faltavam.
Vou adiante, topando nas pernas de outros passageiros. Alguém resmunga alguma coisa que não entendo, mas não paro: se eu não passar agora para a porta de saída, quando chegar onde vou descer não conseguirei. A tendência é o ônibus encher mais até lá.
Nas curvas vai todo mundo para o mesmo lado, apertando-se uns contra os outros. Um passageiro que cantava uma música desconhecida reclama com o motorista que este está correndo muito. Passa poste, passa pasto, passa boi, passa boiada... as coisas todas passam, velozes. Uma curva para o lado contrário, lá vamos nós, juntos. Uma senhora com criança nos braços reclama, porque um jovem que acaba de lhe espremer contra o banco não lhe cede o assento. Mal educado, grosseiro, xinga.
O jovem finge dormir, denuncia-lhe um sorriso mal disfarçado.
Uma moça apressa-se para descer e vai machucando quem estiver pela frente. Pede, aos berros, que o motorista pare no ponto seguinte. Ameaça denunciá-lo à empresa, se ele deixá-la passar de onde deseja descer.
Passa com os cotovelos abrindo caminho por entre corpos inermes. Respira ofegante como se tivesse corrido quilômetros. Raspa-me os ouvidos com sua angústia e aflição. Um senhor de chapéu de palha não dá notícia: dorme. A boca aberta resseca-se com o ar que se desloca da janela aberta. Fitos na paisagem acinzentada, pares de olhos apontam lados opostos com a mesma expressão: anestesiados pelo tempo em que esperam as referências no deslocamento do ônibus veloz. Acostumados estão com os fios dormentes, os meninos fardados que passam para a escola, os ciclistas que andam para trás, os postes ligeiros, as casas sem ninguém. Alheamento agudo, acostumado.
Desprego os olhos donde fitava o mundo e percebo que se aproxima o meu ponto de parada. Puxo o sinalizador e vou-me aproximando da porta de saída. O ônibus para bruscamente, arremessa-me para frente; sinto-me pressionado por outras pessoas que mal se seguram, dependurado no suporte de mão acima de suas cabeças. Xingam o motorista, avisam que não transporta gado, exigem que tenha cuidado. O motorista limpa as mãos na flanela ao mesmo tempo em que também limpa a direção com ela. Engata a marcha e arranca forte, jogando os passageiros que vão em pé para trás. O percurso ainda é longo e muitas outras paradas há até o ponto final.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

ESPIRAL DOS AMANTES


Estamos de algum modo conectados uns aos outros por um tecido que se articula nos interstícios de nossos corpos, uma teia invisível que não permite que nos isolemos. E, se nos ajustamos a esta condição, o espaço tensionado relaxa e não se deixa perceber. Porém, se prevalece a sensação de que algo não se ajusta ou, por outro lado, se ajusta, mas de modo incorreto ou a situações que não são adequadas, o tecido tende a ser distendido e tenso. Os fios vibram num frêmito indômito e reverberam ondas de tensão que alcançam cada um dos pontos que pontuam a malha de conexões.
O incômodo do desajuste aciona sentimentos de instabilidade e desequilibra as relações de troca amistosas, sobrepondo-se como dobra que se estende sobre si e interdita os acordos. Aí se instala a instabilidade. Percebamos que os desarranjos, como os tratados harmônicos, se efetivam no espaço exterior e repercutem no interior de cada um dos que se relacionam por meio de uma teia comum.
Podemos imaginar que tanto temos a condição de produzir ocorrências  com capacidade de mobilizar os outros, seja quem for que esteja vinculado aos fios que se conectam aos pontos visados, e, a partir destes pontos, colher respostas  quanto podemos repercutir questões e ações deslanchadas no exterior, advindas deste espaço intersticial.
Há entre os corpos um vazio que oculta e deslinda os atos polarizados, a partir dos acordos de sentido que se efetivam nas trocas, como resultado do que as singularidades, as individualidades ofertam: objetos de partilha, artifícios de sedução. Apresentam-se como aquilo que interpreta o desejo comum, território, ao mesmo tempo, de produção e consumo do corpo plural. Ou seja, um e outro simulam dar-se ao outro por um movimento de colher o efeito desejado.
Os movimentos ensaiam promessas e experimentam surpresas na direção da dádiva. Gestos desenham toques, numa dança, que ostenta a nudez e uma economia de oralidade. Os sentidos aguçam e aguardam interpretar de parte a parte o retorno de seus atos como consequência de investimentos aparentemente irracionais, emotivos, impensados.
Neste instante, o que circula no espaço dos interstícios são impressões de que as interioridades se manifestam regidas pela harmonia demarcada pelos movimentos exteriorizados do outro. O falseamento se inscreve onde o interior transparece como um misto do que é fonte de produção de intenções e lugar de consumo do que o exterior oferece como possibilidade de co-respondência. Os fios conectam pontos na rede de relações e transpõem os corpos, entrelaçando-se, num tecido de permanência que quase que se pode dizer que impõem comportamentos automatizados e irrefletidos, carregados de manhas, para além do tempo, a outros atores.
O cenário vislumbra corpos encurvados, encaixados em movimentos sincronizados. Encostam-se, adentram-se e deslizam: um sobre outro, um após o outro, ladeados um a um. Desde o princípio encenam coreografias marcadas no ritmo da volúpia naturalizada, apreendida nos rituais milenares das relações intimas. A originalidade e a novidade constituem valores neste tipo de trocas de afeto. Pesados, cansados, exaustos, mesmo, esgotam-se na impressão de darem-se.
Embora a superfície da pele vibrátil, no contato brusco e repetido, tensione as distâncias, confunda a quem observa, sob a impressão de corpos fusionados, resta o tempo e as diferenças do que cada um é em si, marcados na pragmática do desejo de cada um. O outro é apenas parte do exterior. É a denegação. É, enfim, a impossibilidade de realização do que é apenas simulação, quando muito. Senão mesmo, dissimulação nos jogos de constituição do ser.

domingo, 31 de outubro de 2010

FARINHADA




A mandioca arrancada no braço, uma a uma quebrada e atirada nos caçoas escanchados no lombo dos jumentos. O tangedor desvia o olhar para a terra e enfileira-se atrás das cargas que seguem em procissão pela picada. À porteira, posta-se um responsável pela abertura quando o comboio se aproxima.
A carga é arriada e refeito o monte que já parecia findar. Mulheres raspam a mandioca, sentadas ao redor do amontoado. Algumas raspam a metade (capotes) e repassam para outras que completam a raspagem. Olham-se e cantam e contam histórias horas a fio por todo o dia e à noite, enquanto houver mandioca para raspar.
Na bolandeira, tange-se o burro que, paciente, caminha o mesmo caminho em círculo, acossado pelo som do chiqueirador e, vez ou outra, pelo ardor de seu contato com a pele, seguido de um gemido longo de advertência. Encolhe-se, agita a calda e segue na mesma batida. A correia de tração da bolandeira move a tarisca dentada que tritura a mandioca raspada transformando-a numa massa grossa, úmida e branca.
Da massa prensada se extrai a manipueira, um líquido denso que depois de secar será transformado em goma. Uma parte que permanece úmida, a carimã ou puba, é utilizada para fazer bolo. Outra parte da massa é levada ao forno e mexida até que seque e alcance a consistência de farinha. A crueira, fragmentos que não foram completamente triturados, é utilizada para ração animal.
A casa de farinha é um lugar de rituais sertanejos. Desde a apanha da mandioca no roçado até a sua transformação em vários produtos que se destinam ao consumo dos donos da farinhada e a comercialização, encenam-se muitos ritos da convivência humana.
A conversa dá lugar a observações de detalhes sobre tarefas distintas, solicitações diversas e a comentários de toda sorte. Anima-se e/ou questiona-se. Afaga-se ou repele-se conforme o momento e o lugar. Vez por outra, canta-se ou resmunga-se cantigas como desalento. Em geral, uma farinhada vira dias e noites. O contato permanente, principalmente, entre jovens, estimula a paqueras e namoros que ajudam a passar o tempo de modo mais animado.
Luiz Gonzaga, em uma de suas músicas (composição de Zé Dantas) fala de um destes momentos. Diz a cantiga: “Eu tava na peneira, eu tava peneirando / eu tava no namoro, eu tava namorando. Na farinhada, lá da Serra do Teixeira / Namorei uma cabôca, nunca vi tão feiticeira / A mininada descascava macaxeira / Zé Migué no caititú e eu e ela na peneira...”
Ruídos diversos atravessam o espaço, a voz gemida do tangedor que alerta o burro na bolandeira, a tarisca que soa mais forte ou mais leve, conforme o contato com a mandioca que se desfaz em massa, o rodo que espalha a farinha no forno em vai-e-vem nervoso, o alarido das raspadeiras de mandioca em conversas íntimas e gargalhadas que estalam como fruto de mamona, sem que se saiba os motivos. Nesse ritmo passam-se dias inteiros.
Não há idade definida para os freqüentadores das farinhadas. Como se diz, é igual ao jogo de São Severino: joga homem, mulher, menino e os velhos viciados. À noite alta, poucos ficam na lida. Além dos torradores de farinha e prenseiros, casais de jovens que, a pretexto do trabalho, arquitetam paixões.
Tempo de farinhada é tempo de fartura de tudo. Beijus de massa, tapiocas, bolos de goma, farinha e gente que não acaba. A comunidade inteira se mobiliza e se encontra no mesmo lugar, empenhada em participar dos ritos de produção de derivados de mandioca. Em torno da raiz da maniva, a planta que produz a mandioca, os agricultores fazem suas farinhadas, plenas de todos os sentidos que as relações de produção propiciam.
Conta uma lenda indígena que uma indiazinha muito diferente, diferente das demais, nascida em uma aldeia, recebe o nome de Mani. Pequenina, frágil e branca, Mani um dia vem a falecer. No local em que ela é enterrada nasce uma planta que passou a ser conhecida como Mani-Oca, ou seja, casa de Mani. De acordo com esta lenda é que surge o nome mandioca.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A RAZÃO E O VAZIO


Regina estremece quando Armando pergunta-lhe se pode recompor o laço da sua manga da blusa. Ela olhou para o braço direito, na direção em que ele indica com o olhar e percebe que o laço está desfeito. Sorri, com timidez, e consente.
Desde sua chegada ao Rio de Janeiro, Regina não se interessara por namorar ninguém, ainda tem certo receio, mas Armando foi se aproximando devagarzinho, conquistou sua confiança e despertou sentimentos que Regina resguardava. Começaram a sair e àquela noite parecia que o namoro começaria a se firmar.
O gesto de pedir para recompor o laço da manga da blusa adquire para ela o sentido de firmar laços de amor. Parece bobagem, afinal, refazer um laço não tem nada demais, porém, é assim que Regina entende aquela pergunta. Várias vezes pensara contar a Armando da existência de Hermano, o boneco de pano que lhe faz companhia e para quem confia suas confidências. É bem verdade que Regina também não tivera coragem de confidenciar a Hermano os sentimentos que despertavam por conta dos repetidos encontros que vinha mantendo com Armando, mas aquela noite será decisiva, mas antes de aceitar o namoro precisa conversar primeiro com Hermano, não quer deixá-lo ressentido, conclui consigo.
Regina conhecera Armando pela Internet. Achava estranho que com tantos cuidados para não correr riscos com estranhos, tenha justo se aproximado de uma pessoa que conheccera no Twitter. Aparecera em sua timeline alguém com o perfil “ArmandoB” solicitando que fosse seguido, ela aceitou segui-lo e foi-lhe despertando a atenção o bom humor de Armando. Vez ou outra ela comentava ou correspondia a algum ponto de vista. Depois de alguns meses, Regina recebe uma Mensagem Direta (DM) de Armando informando seu e-mail pessoal e pedindo-lhe que informasse o e-mail dela. Ela, de imediato, respondeu por seu e-mail. Desde então, ficaram se falando também via MSN. Foram, um e outro, adicionando-se em Orkut, Facebook etc. e conhecendo-se melhor. Só recente marcaram para se encontrar, visto terem descoberto que moram na zona sul do Rio de Janeiro: ele em Botafogo e ela em Copacabana.
No início, Regina marcou num ponto do calçadão de Copacabana, no posto 3, próximo de sua casa. Ficou pouco tempo e, alegando ter que trabalhar cedinho, não demorou a retornar para casa. Aos poucos, os encontros foram–se sucedendo e ela já fica com ele até mais tarde. Ele vai deixá-la até o portão do prédio onde ela mora, mas nunca sobe. Regina não o convida para subir.
Além de viver em permanente estado de vigília por conta de morar sozinha, no Rio de Janeiro, Regina tem conhecimento dos casos freqüentes de pessoas que são vítimas de outras, conhecidas em redes sociais. Quer primeiro conhecer a família de Armando, tirar qualquer desconfiança e só, então, assumir o namoro firme.
Depois que ele recompôs o laço, ficam os dois olhando-se ternamente por alguns minutos. Daí, o inevitável, uma série de beijos e carinhos, mas sob a atenção de Regina que, vez ou outra, se afasta como a sinalizar seus limites. Armando manifesta, então, o desejo de que Regina vá com ele a sua casa e conheça os pais dele. Regina contrapõe outra possibilidade: organiza um almoço no final de semana e ele traz ao apartamento dela os pais para que ela os conheça. E ficam longamente argumentando e contra argumentando em meio a sorrisos e beijos.
Mas, aos poucos, armando demonstra descontentamento. Regina o envolve com carinho e pede compreensão. Em vão. A discussão ganha ares de rispidez. E, saem dali em direção ao apartamento de Regina. No portão, já meio desestimulados para prosseguir a discussão, Armando despede-se e, num gesto último, puxa as pontas do cordel e desfaz o laço que havia recomposto.

domingo, 10 de outubro de 2010

SOBRE VIVER, O JOGO DA VIDA


Na roda de amigos o assunto que predomina é o jogo que está sendo a mania do momento. Chama-se “Sobre Viver”, assim, separado. Diz-se que isto significa uma reflexão a respeito da vida, ou melhor, do viver. Não é uma destas teorias orientais e nem tem nada a ver com nenhuma delas. Ninguém sabe de onde veio e nem qual a corrente filosófica que o sustenta, o que se sabe é que diz respeito ao estímulo para que se responda de modo diferente às questões que o viver apresenta em cada situação do cotidiano. Ficam de fora as respostas fisiológicas como saciar a fome ou a sede que não teriam a ver com estados de consciência, num primeiro momento. Sim, porque, conforme o nível de compreensão de cada indivíduo até tais questões podem suscitar respostas inteligentes. Assim, a escolha de um caminho, as divergências políticas, religiosas etc., e as transações comerciais, de imediato, podem ser respondidas de diferentes modos. Não há indicação estável para nenhuma situação.
Quanto mais conhecimento o indivíduo detém, mais possibilidades ele pode oferecer para a mesma questão. Mas uma das grandes sensações do jogo é que as respostas não são apresentadas de pronto, mas cada um busca sua resposta através de pistas que um certo jogador vai ofertando a cada participante. Ou seja, o jogo é conduzido por uma espécie de jogador hábil que deixa seus enigmas e cobra de cada participante que os decifre, a moda do coringa, das histórias de Batman. O jogo não oferece prêmios e nem todas as regras estão definidas, joga-se pelo prazer de jogar e as recomendações mais particulares vão se implantando à medida em que se joga.
Outra coisa interessante é que uma vez entrando no jogo, não há um lugar determinado para se jogar, joga-se no viver cotidianamente. Em todas as situações da vida em sociedade. Isto faz com que algumas pessoas nem se dêem conta de que estão participando do jogo. Os jogadores vão formulando suas repostas e seus interlocutores, embora estranhe algumas vezes, certas situações de imprecisão nas situações, sentem-se estimulados a decifrarem os enigmas e já ingressam na condição de jogadores.
A principal indicação é de que as respostas prontas não satisfazem, tem-se que buscar repostas diferentes para as situações mais comuns. Uma situação como, por exemplo, a necessidade de lavar roupas pode ter como enigma trocar a sua roupa suja com alguém que tem roupa limpa propondo para esta pessoa questões que ela deve responder e se não conseguir chegar a tais respostas em tempo determinado e situações pré-estabelecidas, é obrigada realizar a troca. Não pode reclamar ou desistir porque isto não permitido pelas regras básicas do jogo.
O jogo estimula relações mais inteligentes e reações mais racionais diante das diversas situações do cotidiano, estabelecendo entre os jogadores estados de consciência e prazer nas relações e no cumprimento de tarefas mais simples que, em geral, se tornam rotinas enfadonhas e oferecem desgaste na sua realização. Porém, como todas as situações em que há exagero na busca de uma resposta mais inteligente, surgem certos níveis de estresse e até de frustração o que pode gerar desconforto. Nestes casos, é chamado o jogador que conduz o eixo do jogo e este propõe enigmas de recuperação do estado de tranqüilidade a profissionais da área de saúde que deverão dar respostas ao paciente dentro de certa exigüidade de tempo. É uma situação que pode conduzir a uma corrente de situações indesejáveis visto que os próprios profissionais de saúde também podem responder a isto produzindo para si condições estressantes o que vai requerer que sejam também observadas as suas respostas por outros profissionais e assim por diante.
A regra número um deste jogo é que ele não limita o número de seus participantes e ele pode ser recriado a cada necessidade de uma nova resposta, sempre estimulando a capacidade inteligente de seus jogadores, tomando como princípio fundamental cada possa viver melhor.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

CORPOS SEM FACE


O que se apresenta através de nós como uma materialidade atemporal não tem face definida, mas tem corpo, o corpo humano. O caráter transitório de cada um amplia o existir da experiência deste corpo, mas não goza do tempo de sua vitória, não participa do seu futuro. O equívoco de se constituir como singularidade sustenta a farsa da festa e alimenta os conflitos em torno de algo que não existe a não ser como miragem.
Todos os dias o noticiário estampa as imagens de corpos abatidos na selvageria dos crimes pela posse e distribuição das drogas, pelo desejo de ter algum bem destes que a televisão anuncia, pelo sufoco que o estômago vazio impõe, pela pura falta de compaixão ou piedade consigo e/ou com os outros etc. etc.
São todos corpos sem vida desde há muito. São corpos sem origem, sem nome, sem alguém que os reclame. Simplesmente existem na imagem repetida cotidianamente dos jornais expostos nas bancas, sob os olhares acostumados dos leitores e das autoridades iletradas.
São corpos sem lei, obedientes ao comando de posar assim, sem camisa, estendido e inerte num matagal nos arredores da cidade. Dispostos como a anunciar sua presença, finalmente. Uma imagem de alguém que não se sabe quem, um corpo a mais na vala comum da mídia policial.
Um dia, estão de calças jeans, noutro, de bermudas, noutros ainda, só de cuecas. As pernas cruzadas, afastadas, amarradas, sem uma perna, sem as duas pernas e sem braços...
Em geral, a pele escura reluz ao marrom predominante do capinzal que lhe abriga. Retalhos de um tecido vermelho indiciam que vestiam camisas ou que o sangue coalhado sobre pinta as cores da cena do alvorecer como a repetir a morte do leiteiro que Carlos conta em poesia.
São guris de meia idade, de papo pro ar, estampados em manchete, com vendas nos olhos, com legendas e em decúbito dorsais. A cada dia os mesmos pontos de desova amanhecem abastecidos num ritual macabro dos dias atuais. Não há marcas na camisa, os tênis não existem mais, não há etiquetas nas calças e nem os sonhos ou os delírios sutis.
São corpos de uma guerra que não nos pertence. São restos mortais de soldados abatidos na luta cotidiana, sob a desorientação dos verbos, dos objetos, dos predicados verbais. Não existem documentos, não resistem as testemunhas, não procedem as investigações e não prosperam os laudos periciais.
Resultam de tramas e ardis que impuseram a si mesmos. São corpos ofertados a esmo como troféus, crimes sem álibis, são produtos anunciados nos intervalos comerciais. A audiência diante da TV almoça indiferente à carne que consome. Os olhos ardentes desejam o colt 45 de última geração.
A indústria de armas abate em treinamento os boçais e os imbecis. E o esgoto decanta pela enésima vez a água que será engarrafada e distribuída aos que tem sede de justiça, aos que se arvoram de verdes ainda que amarelecidos. Os projéteis que destroçam corpos e os ofertam em série todos os dias são oferecidos para o sacrifício de novas unidades de exemplares advindos de gerações ainda mais jovens.
Os Institutos de Medicina Legal recebem os corpos sem face ante o contrato de guardarem sigilo dos seus destinos; de remunerarem as funerárias e os distribuírem, sob amparo da indigência, aos estudos médicos dos cursos de medicina donde serão subtraídas as vísceras e devidamente dissecados para o progresso da balística.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A MULHER QUE FALA PELOS COTOVELOS


Pense numa pessoa que não para de falar nunca. Pois bem, a mulher aqui referenciada fala mais, muito mais. Aliás, ela ganha, na escola, todos os concursos de disputas de conversa. As concorrentes, simplesmente, esgotam todos os seus assuntos e ela continua feito uma matraca elétrica, sem parar. A Comissão Julgadora nunca tem a menor dúvida sobre a quem deve entregar o prêmio de vencedora: a ela, claro. Por conta desta sua compulsão para falar, tem experimentado vários problemas com suas amigas. Reclamam que não conseguem falar nada, ela não deixa, não dá espaço.
Dizem que ela fala por quantas juntas tem. E que é mais misteriosa que o homem da mala e fala mais do que o homem da cobra. Não adianta ninguém reclamar ou pedir que ela dê um tempo. É mais teimosa que a mulher do piolho. Sabe aquela história da mulher que provocava o marido que tinha o apelido de piolho? Aquela que, uma vez, o marido não tendo como fazê-la parar, botou-lhe uma mordaça, e ela, ainda assim, esfregando uma contra a outra, as unhas dos polegares, continuava a insultar o marido. Pois ela é assim. Não tem quem a faça parar de falar, por nada deste mundo.
Do mesmo jeito que conversa, trabalha. Executa várias atividades ao mesmo tempo. Não para também, parece que está ligada na tomada a mais de 300 watts. Como dizem, é uma máquina. Estuda, trabalha em vários lugares, cuida de sua casa, faz compras no supermercado, lava roupas, passa, costura... ufa!
Dizem que ela não consegue parar de falar nem quando está dormindo. Por conta de sua agitação, desenvolveu sonambulismo. Tem que se recolher cedo da noite porque acorda praticamente de madrugada, por volta de 5 horas da manhã. Precisa tomar mil providências antes de sair para o trabalho. Ainda bem que trabalha numa emissora de rádio, é locutora. Aproveita para falar à vontade. No seu programa, entrevista personalidades, conversa com ouvintes, lê notícias. O produtor só tem que ficar marcando em cima por que senão ela conversa o programa inteiro com uma única pessoa, sem dar vez para as outras. Isto aconteceu no início do programa.
Um dia desses, imagine, o pai dela assistia ao Jornal da Globo. Ela chegou à sala, de camisola, sentou e ficou um tempão ali, como estivesse assistindo ao jornal, também. Até comentava as notícias, dava risadas. O pai só percebeu que ela estava dormindo porque tentou saber os motivos por que ela estava ali àquela hora e ela não lhe respondeu. Depois, levantou e foi deitar-se, com a maior naturalidade. No dia seguinte o pai tentou saber se ela se lembrava de alguma coisa. Não se lembrava de nadinha.
De um tempo para cá, dias, ela começou a perceber que está ficando afônica. A voz vem sumindo aos poucos. Todos à sua volta vivem dizendo para ela maneirar, diminuir sua falação, mas não tem jeito. Nada a faz diminuir seu ritmo. O que mais a apavora é exatamente isto, ter que parar de falar por conta de sua rouquidão. Mas, infelizmente, a cada dia sua voz vai perdendo força, perdendo clareza.
Nos últimos dias, ela só tem conseguido se comunicar através de bilhetinhos. Já esgotou vários blocos de anotações, folhas e folhas de papel ofício. Esvaziou várias canetas esferográficas. Fica angustiada quando liga para falar com alguém e não consegue que a pessoa, no outro lado da linha, entenda o que ela tenta falar, não obtendo mais do que um ruído sem sentido.
Embora tenha tomado todo tipo de chás, remédios, e experimentado todas as simpatias, não consegue melhorar. A cada manhã, acorda cheia de esperanças de que tenha ficado boa ou, ao menos, melhorado um pouco. Qual o quê! Seu desespero aumenta, quando tenta dar bom dia a seus pais e a voz não sai.
De repente, percebe que algo de novo está lhe acontecendo, finalmente volta a falar, mas não é como todo mundo. Não fala pela boca, fala pelos cotovelos. No início, imagina que esteja sonhando, uma espécie de pesadelo bonzinho. Mas depois se dá conta de que é para valer. Não sabe se fica feliz ou triste. Por fim, embora constrangida, decide que não é de todo ruim, afinal, o importante mesmo é poder falar, não importa se é pelos cotovelos; não há nenhum problema em falar-se pelos cotovelos.

domingo, 12 de setembro de 2010

DE FORTALEZA A TERESINA, COM ESCALAS.



        Tomo o avião em Fortaleza com destino a Teresina, PI. Em quarenta e cinco minutos estarei chegando ao meu destino, promete, pelo serviço de som da aeronave, o comandante. Enquanto o avião se dirige para a pista de decolagem, cochilo levemente. Acordo com uma das comissárias de bordo tentando explicar a uma senhora, sentada na poltrona à minha frente, que nos assentos que coincidem com as saídas de emergência não é permitido por a bagagem de mão. A mulher finge não entender aquela observação e prende a sua bolsa ao corpo. Começa, então, um e vir de comissários revezando-se na tentativa vã de convencer a resistente senhora a largar a bolsa. Surpreendo-me quando, num gesto brusco, uma das comissárias arranca abruptamente a tal bolsa das mãos da mulher e a põe no bagageiro acima de sua cabeça. A seguir, percebendo que todos no avião estão com a atenção voltada para a cena, cumprimenta-nos com um gesto de cabeça e sorri, como se houvesse conquistado uma importante vitória ou nos prevenisse.
          Todos retornam as suas posições de inércia e indiferença. O avião decola, finalmente.
       Pego um exemplar de uma revista de bordo e vou folheando. Em textos bilíngües, a revista vai-me apresentando cidades da Colômbia e vou-me deliciando com matérias que me remetem à “cosmopolita Bogotá, a romântica Cartagena, a paradisíaca San Andrés (no Caribe) e, finalmente, a Letícia, uma pequena jóia incrustada na Amazônia.”
          Bogotá me acolhe com seu clima gostoso de apenas 18 graus. A cidade vencedora de uma fase de perturbações violentas provocadas pelas guerrilhas e pelo tráfico de drogas oferta-se como uma promessa de prazer ao turista. Capital da Colômbia, Bogotá é uma cidade charmosa e sedutora. Ruas limpas, seguras enfeitam-se de vida nas cores das vestimentas de seus transeuntes e da vibração de alegria que parece emanar de cada pessoa: nativos e estrangeiros. Chamam-nos a atenção o teleférico no centro, os artistas em apresentações de rua e uma igreja de sal. Por entre os casarões originários dos séculos 17 e 18, cerca de 58 museus e 62 galerias de arte transformam-se em opções de visitação, ou melhor, reivindicam a obrigatoriedade da visita. Assim se revive a história, desde a pequena Santa Fé de Bogotá, nascida em 1538. De Bogotá a 40 minutos de carro, uma visitinha ao restaurante Andrés Carne de Rés, localizado na cidadezinha de Chia, uma espécie de rota necessária a quem visita a Colômbia e, especial, Bogotá. A frente deste restaurante, um misto de empresário e artista plástico, Andrés Jaramillo. Gostosamente saciado, verifico que preciso seguir visitando o país. Próximo destino, Cartagena.
     Ao chegar, sobrevôo uma cidade à beira-mar, com cerca de 1 milhão e 100 mil habitantes, com contrastes de casario extremamente simples e arranha-céus com até 48 andares. Na zona portuária, derramam-se obras para todos os lados. Containeres coloridos, sobrepostos por entre navios no porto, dão maior charme ao cenário. Mas as imagens do cinema resistem e me aquietam no passeio por entre os românticos sobrados. Palmilho e chão de pedra, observando as varandas forradas de flores e as praças arborizadas, povoadas por casais enamorados que se aconchegam como que monumentos vivos à beleza do amor e da cidade. Revejo Garcia Marques no seu Amor em Tempo de Cólera situado por entre as muralhas de Cartagena, cenário para a filmagem da história de Florentino Ariza e Firmina Daza. Supreendo-me com a sensação de conhecer todos estes detalhes com certa intimidade.
         Saindo de Cartagena, vou ao arquipélago colombiano de San Andrés e Providencia. De princípio, me encanta a exuberância da natureza, conformada nas belas nativas, na transparência e na variedade de cores da água e no frescor dos coqueirais. As ilhas todas tem seu o encanto e o meu deslumbramento recupera o cansaço da viagem dos dias anteriores. Entendo ali porque holandeses, espanhóis, ingleses e piratas disputaram este paraíso por longo tempo. Os ingleses tomaram conta até o século 19, quando um tratado decidiu que o arquipélago ficaria com a Colômbia. E, claro, num lugar com tanta história, outras estórias compõem a sua riqueza. Não raro, sou informado de tesouros que foram recentemente desenterrados ali próximo, na praia mesmo. Na maioria das vezes, o que se conta é que tais tesouros teriam sido postos ali pelo legendário Henry Morgan, pirata galês que esteve à frente das disputas pela posse do lugar. Após usufruir de outros confortos, sinto uma vontade imensa de ficar por ali, mas sei que tenho de seguir adiante. Desta vez, vou a Letícia, no meio da floresta amazônica.
      Chego à cidadezinha de cerca de 40 mil habitantes enfrentando as dificuldades de acesso comuns a todos os lugares que ficam na selva amazônica: através de barcos e vôos em pequenos aviões. O nome Letícia dado a cidade tem origem rodeada de controvérsias. Tanto poderia ter sido motivada por uma homenagem prestada pelo engenheiro Manuel Charón a uma peruana chamada Letícia Smith, quanto por iniciativa de um soldado colombiano apaixonado por uma índia que tinha este nome. Apenas uma avenida separa a cidade de Letícia, da brasileira Tabatinga. São os nomes das empresas em idiomas diferentes que marcam para quem chega a informação de que se está no Brasil ou na Colômbia. Entre as várias etnias indígenas da região, predominam os ticunas.
         Ainda não inteiramente satisfeito com o que desejo conhecer em Letícia, sou obrigado a interromper a minha estada pela comissária de bordo que insiste que eu retorne o assento a posição vertical, anuncia que estamos chegando a Teresina. Olho para ela e lembro de sua determinação ao arrancar a bolsa dos braços da senhora sentada na poltrona à minha frente. Acho melhor repor a revista ao seu lugar inicial e fazer como a comissária manda.

domingo, 5 de setembro de 2010

BORBOLETAS BORBULHANTES


Meu olhar cruza o olhar dos demais e vai se prender à dança de duas borboletas que, para além do vidro da janela, rompem com o cinza e as sombras predominantes do pátio com suas cores vermelho e amarelo. Enquanto a turma inteira observa com atenção os slides projetados na parede, observo o frêmito das borboletas que sobem e descem, trocam de lugar num voo nervoso e inconstante.
Curioso que elas se postem no espaço exato em que a luz solar, rompendo a fronde da mangueira, ilumina uma fração do espaço, entre a lateral da sala e a espessa copa da árvore. O fundo cinza de uma banca de revistas contrasta com as cores vivas das borboletas inquietas, que assomam e somem repetidas vezes.
A impressão que eu tenho é que elas desejam mesmo chamar a atenção, roubar a cena, naquela manhã barthesiana. O movimento das asas, associado ao movimento que descrevem no espaço, não apenas adquire um desenho harmônico e repetido, mas simula algo que é da ordem do inverossímil.
Imagino tratar-se de uma dança de acasalamento, visto que, de instante em instante, quase se tocam, para, em seguida, se distanciarem uma da outra, num traçado circular, numa arquitetura de voo simples e exuberante. A incidência do sol faz alternar suas cores entre o amarelo vivo e o vermelho luminoso. São pequenas luminâncias que pontuam percursos em riscos de cera no ar.
Outras vezes tenho a impressão de que adornam aquela manhã em homenagem ao tema da exposição com que concorrem. A leveza, o silêncio e a beleza capturam não apenas o meu olhar, a minha atenção, mas, igualmente, abafam a voz do palestrante, a tal ponto, que não o consigo ouvir durante a maior parte do tempo. Absorto, prendo-me ao espetáculo com que meu olhar se deslumbra.
O vestido verde de uma das assistentes me chama a atenção pelo contraste produzido com as cores das borboletas. Vejo e revejo o verde do vestido, o amarelo e o vermelho e me pergunto o que mesmo relacionaria cada um destes pontos naquela manhã. Percebo, a seguir, que, na perna direita da assistente de vestido verde, atenta à exposição do assunto, há um sinal vermelho sobre a pele alva, logo acima do joelho.
Luto por manter a minha atenção na fala do expositor, ele demonstra conhecer bem o que expõe, mas não consegue que eu me atenha ao exposto. As borboletas se mantêm em sua apresentação, a assistente de vestido verde e sinal vermelho na perna, quase como uma mancha larga e esvoaçante, permanece impassível, os olhos voltados para os slides. Não há expressão de aprovação ou reprovação. Não há expressão alguma, apenas olha para frente, como a escutar o que é falado e a olhar o que é mostrado. Só isto.
Eu vejo suas pernas, a mancha vermelha no lado interno da perna direita e as borboletas inquietas na sua dança iluminada. Alguém mexe na cadeira, um pigarrear insistente, um sussurro, tudo me é perceptível com certo nível de inquietação, um cuidado preocupado de que trinquem aquele momento de cores atraentes, de movimentos matinais nunca experimentados por mim.
Concluída a exposição, os aplausos me parecem ser direcionados ao show das borboletas, que findam, afinal, sua apresentação. Ainda algumas perguntas, depoimentos pessoais de satisfação, de elogio ao expositor. Os agradecimentos de praxe. A sala vai-se esvaziando sob o ruído ensurdecedor das conversas que se multiplicam por todos os lados. Não tenho clareza sobre o que falam tantas pessoas ao mesmo tempo.
Meu olhar prende-se ao vidro da janela à espera de que as borboletas retornem à sua apresentação. A assistente de vestido verde e sinal vermelho na perna direita ergue-se devagar, olha para mim, olha para a janela, dá-me um sorriso e se vai sem revelar sua cumplicidade.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

APENAS UMA BOA RAZÃO


Uma bala disparada a esmo não escolhe alvo, tanto pode atingir uma criança no inesperado do tempo quanto o usuário de drogas que financia a arma que a dispara. O pavor da violência se detém na barreira da irracionalidade. Ninguém nunca explica quem, em última instância, financia o tráfico e suas ações violentas. Não houvesse consumo não haveria produção e muito menos distribuição. Pior ainda, se a droga custa caro, consome quem tem dinheiro. A chamada elite, apodrecida, ergue muros ao redor de si, instala câmeras em cada esquina, mas refugia-se nos guetos, nas orgias privadas, para consumir sua encomenda de primeira ordem. Não importa o quanto custe. Não interessa a que preço.
Rebeldes nem tão poderosos assim imitam alegremente a cena deprimente da fuga sem sentidos. Pó e fumaça alimentam almas assombradas, a caretice dos uniformes e paramentos ostenta a moral e o racionalismo, da boca para fora. É muito larga a zona fronteiriça em que se separam e intersectam-se as linhas de interesses opostos ou divergentes. Batinas, fraques, fardões, sobretudos, longos, togas e galões esbarram-se em corpos dopados nos sombrios sobrados dos negócios escusos.
Mundos diferentes, cores adversas, destinos invertidos estabelecem tréguas e firmam pactos de não agressão; por instantes, deleitam-se em seus motivos. Uns escancaram risos, limpam as narinas fedorentas, outros contam o apurado do dia e riem o riso incomum da insensatez.
Morrem jovens na guerra do tráfico. Morre a polícia de inanição. Morre a autoridade do Estado de estupefação. A droga adquire vida própria, mobiliza exércitos de traficantes, de todas as idades. A criança na lida do tráfico sinaliza sua perseverança, sua resistência. Mobiliza procissões de consumidores, como sonâmbulos que obedecem a uma ordem superior a que não conseguem resistir.
Ninguém nunca explica quem, em última instância, financia o tráfico e suas ações violentas. Como querer que os donos das armas abram mão do direito de continuar empunhando-as livremente? Como querer que o crime criativo, que a cada momento oferece uma droga nova, um produto mais atraente no mercado, desarme-se? A arma ostentada nos meios de comunicação a cada momento é um troféu que se exibe em vitória da irracionalidade sobre a vida.
O usuário de drogas coloca cada um de nós numa roleta russa, com o cano da arma apontado direto para a cabeça. Ninguém sabe ao certo a direção do próximo disparo. O traficante é uma invenção do consumidor de drogas. Sem consumo não há produção e muito menos circulação. Se não há procura, não há oferta.
Não há vencedores nessa história, apenas sobreviventes. E nada garante que seja por muito tempo. Quem ingressa no mundo do crime livra a cara enquanto pode, mas sabe que o pior gira em torno de si, cada vez mais próximo. Não teme a morte porque não dá valor à vida de ninguém nem mesmo a sua. São as regras de quem está no front, está de pé enquanto não é o alvo do adversário. Uma arma na mão dá a sensação de poder tudo. Este engodo alimenta a gana do fabricante de arma que não se vê na mira da trama que produz. Vive sob a miragem do lucro, não sabe e não quer saber o que é razão. Não entra em nenhum dos componentes do instrumento de morte que fabrica. Quem compra a arma reafirma os seus propósitos.
Ninguém nunca explica quem, em última instância, financia o tráfico e suas ações violentas.

domingo, 15 de agosto de 2010

TRAVESSIA


Eu decidi contar aqui uma história que me intriga, porque não lembro quem me contou, e também porque não sei exatamente qual é o seu sentido nem o sentido de ter que contá-la. Bom, mas o que interessa, por enquanto, é a história. Então, vamos a ela. Contam que um aprendiz de barqueiro tomou um dia uma canoa e resolveu atravessar o rio sozinho, imaginava ele que contaria com a ajuda de seu mestre, que ia gritando da margem oposta, quando o risco de uma pedra sob a água ou um redemoinho ou outros obstáculos perigosos fossem se aproximando. Ele acreditava que poderia fazer tranquilo sua travessia com a ajuda do mestre que não estava na canoa nem remava com ele, estava na margem oposta (seja lá o que isto signifique).
Assim, se pôs a remar rio adentro. No princípio, logo percebeu que o rio não obedecia direito ao sentido de suas remadas. Remava para um lado, a canoa ia para outro, remava para o outro, a canoa seguia rumo diferente. Mas, mesmo assim, avançava. Ouvia o seu mestre, que, como um técnico de futebol que tem a receita e conhece as táticas e estratégias para as melhores jogadas e para a vitória do time, fica à beira do campo, gesticulando coisas incompreensíveis e berrando palavras impronunciáveis. Algumas coisas que entendia ia pondo em prática, outras que não entendia, interpretava-as a seu modo.
O certo é que, durante o percurso, virou a canoa e deu de garra do primeiro tronco de árvore que passou boiando, próximo. Seu mestre gritava dizendo para ele retornar e recuperar a canoa, mostrava, gesticulava, mas o aprendiz de barqueiro não quis saber de conversa: àquela altura lhe parecia que a margem onde deveria chegar estava tão próxima que o melhor mesmo era seguir escanchado no tronco, e fazer de conta que aquilo era, então, o seu barco.
Vendo que não ia conseguir muita coisa, o mestre achou por bem embarcar (me perdoem o trocadilho) na crença do seu discípulo. Deitou a organizar regras novas e a tentar passá-las para o moço que subia e descia já quase sem fôlego naquele tronco de árvore. Foi tanto o esforço e tantas foram as dificuldades, que o moço esqueceu por um momento de agarrar o tronco e lá se foi sua “canoa” rio abaixo. No desespero, e já sem ouvir mais ninguém, fez um esforço extremo e conseguiu agarrar-se a um caule de bananeira que se chocou com ele, boiando.
O caule liso não permitia que ele se escanchasse de modo que teve que abraçá-lo com um dos braços enquanto tentava nadar, puxando a água para si com o outro. Por incrível que possa parecer, isto foi lhe dando confiança e, aos poucos, se aproximou da margem de destino. Sentia que havia bebido muita água e que estava muito cansado, mas aliviou-se, imaginando que ali estava o seu barco e conseguira atravessar o rio como havia se proposto, desde o início.
Já quase à margem, sem mais precisar de nada, nem do apoio do caule de bananeira, fez questão de puxá-lo e levá-lo consigo até o solo seco, onde outras pessoas, além do seu mestre, o aguardavam. Foi com ar de vitória que abriu o sorriso e abraçou os que ali estavam. No entanto, surpreendeu-se quando alguém lamentou que ele houvesse deixado a canoa perder-se na correnteza do rio. De todas as maneiras possíveis e inimagináveis, tentou provar a todos, especialmente para o seu mestre, que aquela bananeira era a canoa com a qual havia iniciado a travessia. Bom, dizia o aprendiz de barqueiro, é lógico que ela está um pouco diferente porque, no aprendizado do percurso, foi preciso transformá-la, mas para melhor garantia.
Restou, ao final, agradecer ao seu mestre pela escolha do caminho mais seguro e aos presentes pela força.

domingo, 1 de agosto de 2010

SEXTA, À NOITE


Sexta-feira à noite, expectativas. O pai que trabalha no interior durante a semana retorna para casa. Esperá-lo é não dormir. É ouvir, com o coração aturdido, os rumores dos feirantes que chegam, para, no dia seguinte, negociar sua produção no entorno do mercado central.
O tempo frio agita o vento que barulha no telhado, ora mais brando, ora mais forte. O poste em frente a casa impõe claridades pelas frestas da janela. A luminosidade invasiva e o burburinho de vozes aquietam apreensões e amenizam a tensão da espera.
O hábito antecipa as cenas na memória e as permite tomar conta da imaginação. Batidas na porta, são batidas conhecidas. De repente, parece que todos na casa estavam sintonizados na mesma espera. Todos vêm receber o pai que chega. Logo, a família está em volta da mesa, ouvindo as novidades da semana. Não carece grande esforço para que o riso geral encha o vazio da sala de jantar. Há um bom humor em tudo, as coisas todas parecem conspirar para a felicidade de todos. Àquela noite, a família completa-se, preenchendo o vazio de dias intermináveis.
Pela manhã, depois do café, é hora de ir à feira e transitar por entre surrões de farinha, feijão, arroz; montes de jerimuns, feijão em baja, espigas de milho; balanças e carrinhos... Comprar cheiro verde, frutas e carne para o final de semana. Toda aquela gente, desde cedinho, vai se aglomerando em conversas desencontradas, num alarido que parece ecoar no espaço que a feira livre ocupa. Não é difícil entender-se com os vendedores, mas não são compreensíveis as conversas que se dão ao redor, parecem sons sem nexo espraiando-se no cinza iluminado na mimese da feira.
À hora do almoço, a mãe faz o prato de cada um, resguardados para o pai os petiscos de sua preferência. Parece ter que ser assim. Sempre foi assim. Será sempre assim. Nem nestes momentos há silêncio, a conversa acumulada de dias tem que ser atualizada e aproveitam-se todos os instantes de reunião da família. A mesma alegria, a não ser por um ou outro irmão que mostra insatisfação com algo, ou por implicância de outro, numa arenga besta.
Após o almoço, passando algum tempo, os pais vão dormir e é hora de ganhar a rua para encontrar-se com amigos e inventar brinquedos e brincadeiras. Correr, jogar futebol ou pegar manga no sítio de dona Teresa. Dona Teresa, sempre que tem notícia de garotos dentro do sítio, atravessa a rua e vem ver com a mãe por onde andam as crianças. A bronca espera sua hora para se apresentar. O sítio enorme e as mangas cheirosas atraem meninos e meninas de toda parte. Não são sempre os mesmos.
Depois das quatorze horas, o café da tarde. O pão quentinho recém-chegado da padaria exala um cheiro gostoso. A mãe serve o café de acordo com o gosto de cada um. As histórias se espicham como se estivessem iniciando naquele momento. Sempre histórias engraçadas.
O ônibus para na rodoviária e interrompe os pensamentos. Um dos carros que fazem corrida e que estão estacionados ao lado da pracinha é utilizado para chegar mais rápido em casa. O percurso não é longo. Logo estará batendo à porta de casa. É tarde. Passa das duas da manhã de sábado. Enquanto o carro desloca-se, histórias na imaginação desenham sorrisos passageiros.
A rua está deserta. Não há feirantes. Não há quase ninguém. A casa se aproxima e a porta de entrada é um ponto fixo. Mete a chave na fechadura e adentra. Ninguém acordado. Depois de livrar-se do peso da bagagem, toma banho, troca a roupa, cai na cama e se alivia da fadiga e do cansaço da viagem.

sábado, 24 de julho de 2010

DEFASAGENS ENTRE O HUMANO E O CONCRETO


Se eu tivesse que dar um título diferente para este texto seria “O estranhamento do retorno ao mesmo-outro”. Antes que alguém estranhe, eu explico: semana passada eu escrevi sobre este tema, mas errei a mão. Ou seja, ficou parecendo que eu estava querendo criticar a selvageria do capitalismo, que já é, por sinal, muitíssimo discutida. Não é isto o que eu tenho interesse em discutir aqui agora.
Ocorre que a temática do eterno retorno, como um dado filosófico, é também um assunto batido, apesar de interessante. Mas ainda não é exatamente disto que eu desejo falar. A questão é a seguinte, algumas vezes, retornamos a alguns lugares e nos surpreendemos com as mudanças ocorridas durante o tempo em que estivemos ausentes. Nossos amigos já não têm a mesma cara, o mesmo corpo, os vizinhos já não são os mesmos, as ruas também mudaram, enfim, muito daquilo que guardávamos como lembrança e que, de algum modo, pensávamos encontrar, transformou-se ou desapareceu.
É assim comigo, imagino que seja com todo mundo. Evidentemente, nós também mudamos. Só que estamos nos observando no espelho durante todo o tempo, e, apesar das mudanças visíveis, não estranhamos. Sequer nos damos conta, por conveniência, talvez.
O retorno a que me referi anteriormente, diz respeito a processos históricos que ocorrem principalmente com as cidades em que as regiões centrais, antes residenciais, são transformadas em centros comerciais e/ou industriais, empurrando as famílias para as periferias distantes. De alguma maneira, as pessoas que antes habitavam as regiões centrais retornam a estes lugares e, decerto, não se reconhecem mais nos logradouros que ali se construíram. Outra coisa, estas pessoas retornam, não para matar a saudade ou para buscar se encontrar, mas para trabalhar, passar a fazer parte das ocupações do espaço que antes era seu.
Como no exemplo anterior em que eu me referia às mesmas pessoas, ao mesmo lugar, aqui também. É o que eu estou chamando de mesmo-outro. Em essência, são as mesmas referências, mas, concretamente, são outras. São as mesmas pessoas, mas essencialmente, são outras. Alguém há de lembrar-me de Heráclito, o filósofo, e daquela historinha sobre o homem que toma banho no rio etc. etc. Eu responderei com um “pois é”, destes recursos de linguagem a que recorremos, quando o assunto proposto não bate com o que queremos conversar..
Mas, além do que disse até agora, há um outro dado que me interessa comentar que é o seguinte: num caso e noutro falta se apresentar aquilo que se constitui o vetor mesmo transformador e beneficiário das mudanças, da transformação dos espaços. Pode ser que possamos chamar a este vetor de desenvolvimento, modernidade ou bestialidade. Novamente corro o risco do panfletário. Mas não é o meu desejo, lembro. Quem disse que, para que haja desenvolvimento, tem-se que desalojar o espaço residencial para a ocupação de empresas? Penso que os atuais shoppings centers mostram outra percepção. Mas não é ainda sobre isto que eu quero falar.
Quero falar do que fica, do que se vai com as transformações. Lembrando aqui aquele recurso da câmera acelerada que mostra em poucos segundos o movimento de um dia inteiro de ocupação dos espaços urbanos. Pessoas e carros enchem e esvaziam tais espaços do mesmo modo, todo dia. A cada dia são pessoas diferentes, predominantemente, que repetem o mesmo movimento. Esta imagem me serve para falar sobre a ocupação dos prédios construídos no processo de mudanças. Primeiro, em geral, são motivos econômicos que determinam a construção ou a demolição dos edifícios, sejam eles residenciais ou empresariais. Depois, uma vez construídos, são ocupados, durante algum tempo pelas mesmas pessoas, depois por outras, por outras e assim, indefinidamente. Parece que estamos a serviço de uma força invisível que nos induz a fazer o que fazemos, contrariando toda a ideia de racionalidade. Em alguns importantes centros urbanos é comum existirem grandes edifícios abandonados, quando não completamente vazios, ocupados por moradores de rua ou por desabrigados de outra ordem.
O que fica, depois de tudo, e à revelia da impressão que possamos ter de fazer e acontecer são os prédios, as praças, as ruas, os postes etc. Tudo aquilo cujo viver transcende a nossa compreensão. Estranho que o mesmo espaço de concreto passe a abrigar em ondas de tempo outras pessoas que imaginam, a exemplo das anteriores, possuí-lo.