sábado, 26 de março de 2011

O FIM DE TUDO O QUE SE BUSCA


A livraria, a porta aberta, os livros enfileirados nas prateleiras. Cada um deles a dizer-se mudo enquanto alguém não se achegue e ponha-se a ver-lhes as páginas abertas, perscrutando a intimidade das palavras. Estimulando os sentidos a fazerem-se sentir-se, no mais das vezes, ao roçar da visão. O jovem, tendo à mão um vinho tinto, passa os olhos em busca de algo: um título, um autor, um sem saber que busca sempre quando se dá conta de estar numa livraria.

Mas esta é uma situação especial, antes de decidir comprar o vinho, deu-se a confirmar, pelo celular, o encontro muitas vezes marcado e adiado sempre, com uma pessoa, há muito desejado. De vez em quando, carece trocar a garrafa de mão para enxugar o suor que friamente umedece a palma das mãos. De livro a livro visto, percorrendo as prateleiras, para em Florbela Espanca. Lê uns dois sonetos e, a seguir, trechos de sua vida atribulada. Maria Toscano, a esposa do João Maria Espanca, não podia ter filhos. João Maria, valendo-se, então, de uma antiga regra medieval que lhe dava direito a ter filhos com outra mulher quando a esposa não pudesse ter filhos, procurou Antônia da Conceição Lobo, com quem teve Flor Bela Lobo e mais outro filho.
“Florbela D’Alma da Conceição Espanca casa-se três vezes, publica em vida dois livros, apresenta sinais sérios de neurose. E, às duas horas do dia 8 de dezembro – no dia do seu aniversário, suicida-se”.
Repõe o livro na prateleira, pensa em filosofia, dá-se conta que tem às mãos um livro de Voltaire: François-Marie Arouet – escritor, ensaísta e filósofo iluminista francês –, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire. Fica a ler trechos e vai tomando conhecimento da voracidade de um escritor pela escrita, da diversidade de temas tratados e como produzia feito uma máquina. Mas ainda não é esta abordagem filosófica que deseja associar ao vinho que tem em mãos. Continua sua busca e, ao tentar repor o livro de Voltaire na prateleira, cai-lhe na cabeça outro livro, sem qualquer explicação aparente.
Agacha-se para apanhar o livro ao chão, ainda zonzo. É um livro de Fernando Pessoa, “Toda Poesia”. Conhece bem o poeta, mas naquele momento não imaginava nada assim, não tinha pensamento em Fernando Pessoa. Mas, aproveitando para paginar o livro, vai-se dando conta que bem poderá ser aquele o que procura. Passa pelos heterônimos: Alberto Caeiro (Sinto-me nascido a cada momento/Para a eterna novidade do Mundo...); Ricardo Reis (Assim em cada lago a lua toda/Brilha, porque alta vive); e Álvaro de Campos (Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... /Sim, talvez só depois de amanhã...).
Certificou-se, é mesmo este livro que deseja. Busca com os olhos alguém que venha atendê-lo. Não tendo ninguém por perto, vai à procura do caixa. No percurso, uma vendedora lhe pergunta se encontrou o que buscava, ao que ele confirma. Ela pede o livro, retira qualquer coisa da última pagina, põe-lhe uns marcadores de leitura e o acompanha ao caixa.
O trânsito daquela tarde está leve e logo se vê chegando em casa. Ao chegar à portaria do prédio, o porteiro lhe avisa que alguém pegou a chave e o espera no apartamento. Ele sabe exatamente quem é. Toca a campainha e a porta se abre quase que por magia. Um abraço demorado, um beijo idem.
Naquela noite, se realizará, a cada momento, um dos encontros adiados até que se cumpram e se atualizem todos eles. Em cada um, conversarão sobre coisas sem importância como a seguir um rito de paciência e prazer. Muitos abraços, muitos beijos, muitos toques. E sentar-se-ão à beira da cama, ouvindo “La mer” e muito mais Debussy. Mas, antes de qualquer coisa, será Fernando Pessoa quem declamará seus versos e os servirá na bandeja, com vinho: “Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as/No colo, e que o seu perfume suavize o momento/Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,/Pagãos inocentes da decadência”.

domingo, 20 de março de 2011

O ACASO, O PREVISÍVEL E O DESTINO


Foto do autor

O acaso se apresenta como de susto, à revelia do traçado. Pode ser que assim nos faça cruzar com alguém que não esperamos, num lugar improvável. Pode ser que este alguém nos traga alegria, recordações, abraços, beijos (talvez). Pode ser que não, que nos traga tristeza, lembranças que desejamos esquecer, ameaças de toda ordem. Pode ser que seja alguém que nunca vimos e que, por acaso, se torne uma pessoa frequente em nossa vida, dali por diante. Pode ser que não, pode ser que apenas passe por ali, no mesmo momento, em que passamos e nunca mais nos vejamos de novo. O acaso nos surpreende com suas incertezas estáveis. As coisas no mundo podem ser explicadas pela previsibilidade de ocorrência a partir de um número mensurável de dados, de certo grau de incertezas e indeterminações.
Ao virar uma esquina, ao erguer a cabeça, ao entrar ou sair de um bar, uma igreja, uma loja, uma escola, uma praia... A qualquer momento podemos dar de cara com o acaso: um sorriso, uma indiferença, uma tristeza, por acaso.
Há quem não goste de surpresa: sai de casa de caso pensado, lista na mão ou o roteiro na memória, a cumprir o traçado igualzinho ao que foi imaginado. Todos os dias percorre os mesmos caminhos, encontra as mesmas pessoas, enfrenta problemas semelhantes e alegra-se, porque vivendo assim se sente mais seguro de si, vive sem sustos.
Há quem alimente as mesmas dúvidas por anos a fio. Na hora de decidir, adota as mesmas decisões como se as tomasse pela primeira vez. Marca o livro de leitura nas mesmas páginas, recorre ao fim de cada capítulo para verificar o que virá, após ter lido o mesmo número de páginas. Espera que algo ocorra a partir de determinadas ocorrências que, em geral, precedem tal possibilidade.
Existe um desejo matemático de assegurar-se, de ter nas mãos as rédeas de sua vida, de seu destino. Cada um é responsável por si e dono de suas ações. A não ser que, vez ou outra, se permita deixar umas doses a mais desguiarem de seu trilho. Aí é outra história. Uma pessoa assim tem a impressão de ter o controle da situação, de ditar as regras que regulam atos e fatos sobre si. Mesmo nos momentos em que a situação foge ao seu controle e se impõe provocando reformulações de planos e trajetos.
Mas há os que entregam nas mãos de Deus a sua sorte. Fazem e acontecem, mas não se reconhecem como guias de suas condutas. Deus tem todos os méritos e todas as culpas. Se bem que não se deve falar em culpa, porque quando acontece de algo sair diferente de sua crença, aqueles imaginam que Deus os está penitenciando por alguma coisa que não sabem exatamente qual. Ou, por outra, está testando sua fé.
Há também quem chame Deus de destino. E neste ponto se estabelece uma polêmica. Pode ser que exista, de fato, o destino: tudo está escrito, caminhamos inexoravelmente em direção ao que nos está reservado. Por mais que façamos para desviar o rumo, até isto está previsto. Pode ser que destino não exista e caiba a cada um traçar sua rota com cautela e responsabilidade. Imagine se alguém que tem consciência de seus atos vai entregar sua vida nas incertezas de um destino. Nem pensar.
O destino é apenas aquele ponto para onde nos direcionamos: a pé, a cavalo, de carro ou de avião. É representado por aquele texto à frente dos transportes de massa que faz com que cada um, ao final do expediente, tente identificar, no luminoso o lugar a que se destina. O abrigo a que nos devem conduzir ao conforto do lar, ao ponto marcado para o encontro, enfim.
No entanto, sobra a dúvida persistente:  Será que existe destino? Será mesmo que tudo o que fazemos é para cumprir as determinações do tal destino? Por via das dúvidas, é bom que a gente saiba que o destino, embora não existindo, consegue nos levar aonde é de sua vontade.