sábado, 1 de maio de 2010

UM AMIGO, POR FAVOR


Dou por mim despertando, como se saísse de um sono sem referência, num primeiro momento. Apesar de manter os olhos despertos, não há nitidez nas coisas ao meu redor. Sinto no corpo uma trepidação que varia entre o quase imperceptível e os solavancos bastante bruscos. Vez por outra meu corpo é arremetido para um lado ou para o outro. Aos poucos, percebo que estou em movimento, no interior de um veículo. O som constante, embora distante, de uma sirene contribui para que eu conclua ser este veículo uma ambulância. Neste caso, tanto posso estar sendo conduzido a alguma unidade de saúde (clínica, hospital ou pronto socorro), ou, já de retorno, indo para casa.
Não sinto dores – talvez sob o efeito de algum sedativo – e não sinto o meu braço esquerdo do mesmo modo como sinto o braço direito. Um frio rápido e agudo percorre toda a espinha e um medo se instala repentinamente. Uma lembrança ridícula me vem de sobressalto: uso a mão esquerda para conduzir a comida à boca. Aumenta o medo e sinto uma forte sensação de vômito, mas não consigo provocar.
Uma pressão mais forte no meu braço direito faz com que eu me detenha a olhar mais detidamente para este lado, vislumbro alguém que parece estar segurando o meu braço. Pelos traços, parece tratar-se de Antonio, um amigo de longo tempo e a quem há muito não vejo. Isto, de certo modo, me traz uma leve sensação de segurança, embora seu silêncio alimente a impressão de que não deseja ser identificado.
Mas desvio o meu pensamento para tentar recuperar a memória e entender por que estou aqui, o que houve antes? Não consigo lembrar de nada que explique. A não ser pelo desconforto do lado esquerdo “esquecido”, nenhuma outra sensação física denuncia qualquer estado de mal estar.
Em meio à tempestade de pensamentos desordenados, restauro a imagem de Antônio, ao meu lado. Tonico, como o chamo costumeiramente, se mantém em silêncio e segurando o meu braço direito. A lembrança de quando estivemos mais próximos e dos momentos em que vivemos nossa amizade desde a infância, vai-se remontando como uma história de alegrias.
O seu silêncio pode significar a gravidade da situação. Talvez não queira revelar em sua voz algo que me desagradaria. Tonico é uma pessoa pouco discreta tanto pelo seu tamanho pelo modo exagerado de falar alto e gesticular enquanto fala. Ali, calado, não explica a sua presença a não ser pela adoção de precauções que eu desconheço, embora possa imaginar os motivos.
A ambulância para bruscamente. A sirene não para de soar. Abre-se a porta traseira e a luminosidade aumenta a opacidade da visão pelo ofuscamento. Estranho que Tonico reclame com aspereza a alguém que lhe chama pelo nome. Neste momento, aquela sensação de segurança que me transmitia, desvanece. Em seu lugar, o medo pelo que possa estar tentando esconder. Uma grande confusão me conduz a tentar lembrança do percurso, desde que me dei conta de minha condição.
Reflito sobre o trajeto e observo que em nenhum momento Antonio foi cuidadoso comigo como era de esperar. E, desse modo, outros pequenos detalhes ajudam a reconstituir o comportamento adverso de Antonio.
Nesse instante, vejo que uma mulher vem falar com ele. A visão embaçada não me permite identificar quem seja ela. A silueta parece-me familiar, mas não consigo associar a uma memória que me permita o reconhecimento. Lembro da voz que chamou por Antônio e confirmo ter-se tratado de uma voz feminina que, àquela altura não me pareceu relevante.
A sirene vai esmaecendo até sumir completamente. Meu copor é posto numa maca, sem qualquer cuidado. Neste movimento, sinto o meu braço esquerdo porque tento usar para me amparar na superfície da maca. Um alívio atenua o medo e as más impressões de ultimamente.
Fora da ambulância, a maca é empurrada por um corredor estreito. Antõnio vai à frente, como se fosse um enfermeiro. A mulher vem logo atrás, segurando o soro que me injetam na veia. Caminham calados. Escuto, porém, a respiração ofegante da mulher e vozes que ecoam no corredor sem definição da direção de onde procedem.
O casal me conduz como se carregasse um peso na consciência.

domingo, 25 de abril de 2010

DEUS NOS LIVROS





Já ouvi falar de muitos lugares onde Deus está. O Céu é, certamente, aquele lugar em que, digamos, não resta dúvida. Mas ninguém sabe exatamente onde fica o Céu. Há quem diga que o Céu é a própria Terra e que o alcançamos quando conseguimos ser felizes. Outros dizem que a felicidade está dentro de cada um de nós; portanto, neste caso, o Céu seria uma espécie de estado de espírito. Em cada uma destas possibilidades existe um número bastante grande de detalhes, de penduricalhos que se ajustam como explicação ou justificativa para uma tese complexa.
Como quem mais prega a existência de Deus num Céu são as ordens religiosas, é comum que se escute falar que uma igreja é a casa de Deus, a casa do Senhor. Neste caso, poderíamos pensar que uma igreja é o Céu. No entanto, os religiosos explicam que a igreja é a casa de Deus, qualquer um pode falar com ele indo à igreja, pode encontrá-lo lá, mas poucas ou nenhuma pessoa, em sã consciência, chega a confirmar, com segurança, qualquer experiência neste sentido.
É muito comum também que ouçamos falar que Deus está no Céu, na Terra e em toda parte. Bom, se Deus está em toda parte, parece meio desnecessário que eu fique aqui buscando escrever sobre os lugares onde dizem que Deus está. Como este argumento parece ser daqueles que buscam ganhar uma discussão ou encerrar uma conversa definitivamente, eu vou, a princípio, desconsiderá-lo. Está certo, Deus é onipresente, onisciente etc. etc. Mas se formos por este argumento vamos ter que parar de conversar.
Lembro que, quando criança, à hora das refeições, ninguém podia brincar ou falar desaforo, palavrão. Se alguém se arriscava a desconhecer a lei, a mãe, o pai ou os avós ralhavam. Botavam uma cara feia e repetiam enfaticamente para nos aquietarmos, porque Deus estaria à mesa. Olhávamo-nos, olhávamos os arredores e nunca víamos. Mas ninguém ousava dizer que não via. Apenas obedecíamos, sem discussão. Pensava sempre comigo mesmo, o lugar em que Deus está é à mesa. Algumas vezes nem havia mesmo uma mesa, era apenas uma esteira de palha estendida ao chão, ao redor da qual todos se sentavam para comer.
Em entrevista que o escritor Paulo Coelho deu à revista Veja, perguntaram-lhe porque seus livros têm tantos erros bobos, às vezes até parecem erros de digitação. Ele disse que é porque não faz nenhum esforço para retirar os erros de seus textos. E não os tira porque, segundo ele, Deus está nos detalhes e retirando os erros do texto poderia estar tirando Deus de sua obra.
O padre celebra a missa, a partir da leitura de um livro, donde diz extrair a palavra de Deus. Os pastores e os evangélicos, de modo geral, andam com a sua bíblia para cima e para baixo. Beijam, oram e cantam com os olhos pregados nesses livros. Mesmo os estudiosos, os pesquisadores buscam o conhecimento, com os quais se armam para conquistar o mundo, nas páginas dos livros. Embora alguns até usem este conhecimento para negar a Deus, é nos livros que encontram sua sapiência.
As gerações de sábios que se vão deixam, para as gerações futuras, muitos conhecimentos. Muito deste conhecimento é praticado e posto em rotação sem que haja necessariamente nenhuma palavra escrita a respeito. Contudo, é nos livros que vamos buscar o conhecimento com mais substância, aquele que resiste ao tempo e que serve de fonte de consulta a quem queira tirar dúvidas acerca de algo existente no mundo. Existência que pode ser até como ideia, pensamento, algo imaterial.
Já ouvi dizer que um bom livro sempre leva aos céus pelo prazer da leitura, das descobertas, das histórias que oferta. Esta relação entre Deus, céus e livros é muito humana. Isto pode não explicar nada, nem precisa, mas pode apontar para um lugar onde Deus pode estar e quase ninguém se dá conta. Deus está nos livros.