segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

MÃE E SOGRA



Entre perturbada e divertida com aquela situação, a noiva procurou saber primeiro de sua mãe o que estava acontecendo ali. A mãe pegou as mãos da filha e com ar meio choroso, começou agradecendo a Deus porque, afinal, tudo estava bem. A filha não entendeu nada e perguntou novamente por que estavam ali? Ninguém dizia nada, olhavam-na como se não acreditassem no que viam.
Aquela cena confusa foi-se complicando mais e mais. Logo, a mãe, ainda com a voz embargada, disse que veio até ali porque preocupara-se por conta do modo como haviam tomado a estrada, saíram daquela maneira, ainda de madrugada, uma viagem longa. Com tantas notícias ruins que tem visto na TV: acidentes com vítimas, imprudência de motoristas, assaltos... enfim, se ficasse em casa não estaria tranqüila. Em seguida, abraçaram-se longamente.
A filha, embora considerasse tudo aquilo um absurdo, parecia entender as preocupações da mãe, tratava-a com delicadeza, acariciando seus cabelos e olhando-a com carinho. Ficaram assim por bastante tempo, enquanto as outras pessoas assistiam paralisadas àquela cena pouco esclarecedora, mas muito significativa.
Em certo momento, o noivo interferiu para reclamar e para protestar contra os motivos apresentados. Nada justificava aquela invasão na intimidade do casal. A sogra começa a chorar e a maldizer a hora em que havia concordado em deixar que a filha casasse com aquele homem sem coração. repete várias vezes que a filha sempre tivera o desejo de casar porque muito cedo o pai largara a família, e tal desejo fizera com que não pudesse ter percebido a pessoa de coração duro que era aquele homem...
A filha ficou sem saber se tomava as dores da mãe ou se preservava o seu casamento. Pedia ao marido que poupasse a sua mãe, alegava que se tratava de uma mulher sofrida que tivera de criar três filhos sozinha. Além de tudo, era uma mulher de idade avançada, que sofria de pressão alta e poderia a qualquer momento sofrer um ataque cardíaco ou até mesmo um aneurisma cerebral.
Mas, em seguida, pedia a mãe que compreendesse a situação, afinal, estava casada, havia de ter intimidade com o marido, que a mãe não devia invadir daquele modo a sua privacidade, era a sua lua de mel. Pedia que retornasse a sua casa, que não se preocupasse, estava tudo bem e continuaria assim. Mas a mãe continuava a chorar loucamente, rogando a Deus que a tirasse dali, que a fulminasse com um raio. Antes morrer ali, naquele momento, do que suportar a ingratidão de sua filha querida, que sofrer com as acusações daquele genro desalmado.
O mais absurdo era que todas as outras pessoas continuavam ali, caladas, observando como se cada uma aguardasse a sua vez de também ostentar o drama interior que experimentava. Apenas observavam. Nenhuma expressão esboçavam, como se estátuas fossem. Em meio a este cenário, a mãe chorando cada vez mais alto. De repente, para de chorar. Aproxima-se da filha, toma as suas mãos e, olhando fixamente no seu rosto, diz com raiva: “você sabe que não pode mais engravidar, sofreu um aborto há pouco tempo, teve hemorragia, sangrou muito, quase morreu. Uma gravidez neste momento é quase que uma sentença de morte. Eu estou aqui para impedir que você faça alguma besteira, que faça estripulias com este seu marido insensato”.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

LUA DE MEL


Foto do Autor

Um casamento simples, sem muitos convidados, sem grande festa, apenas um jantar com a família da noiva, já que a família do noivo é de outro estado e sequer foi convidada para a cerimônia. A alegação é a de que tudo foi decidido muito de repente. O namoro foi breve, o noivado ainda mais: do primeiro encontro ao enlace decorreram apenas três semanas. Mas nada é problema, tudo é só felicidade.
A música já se repete e a conversa rola já também a repetirem-se os assuntos, muito mais pelo estado etílico dos convidados do que mesmo por falta de novidades. No entanto, não se percebe que alguém tome a iniciativa de ir embora. Todos, de algum modo, fazem questão de ostentar a alegria que uma festa de casamento exige.
Curioso é que naquela festa, a família está reunida mas não há um grupo homogêneo. São pequenos grupos formados ao redor das diversas mesas. Uns falam de coisas do passado, recuperam acontecimentos saudosos ou bem humorados, outros discutem questões do cotidiano como o custo de vida ou a preferência por este ou aquele supermercado para as compras da semana.
Outros, os mais jovens, falam de músicas, de namoro ou de acontecimentos escolares ou, ainda, das últimas férias que, afinal não estão distantes, visto que ainda é setembro. À media que falam de coisas deste tipo, vão marcando encontros para novos encontros em shows, shoppings, cinema etc.
Enquanto a mesa dos adultos é servida com cervejas, whisky, cachaça etc., na mesa dos mais novos só refrigerante ou suco, nada de bebida alcoólica. Mesmo assim, não falta alegria e nem entusiasmo. A música é diversa e quando toca alguma coisa mais atual, arriscam-se até danças.
Enquanto isto, a noite avança. O casal roda de mesa em mesa e quando percebe algum demora no serviço de servir as mesas, toma a iniciativa conjuntamente. Não desgruda um do outro um só momento. Ninguém demonstra cansaço ou aborrecimento. Sabem que tem muito tempo para curtir a felicidade juntos e, um jantar que reúna toda a família é tão raro e tão agradável que ninguém tem motivo para reclamar.
Já é madrugada quando as primeiras pessoas começam a despedirem-se para ir embora. Mas, também, como estivesse combinado, todos se vão. Rapidinho já não há mais ninguém que precise ir embora. A família trata, então, de recolher pratos, talheres, toalhas de mesa, enfim, organizar as mesas e por cada coisa ao menos num lugar que facilite as tarefas da arrumação da casa quando amanhecer.
Desliga o som e logo todos estão prontos para a cama. Apenas o casal verifica as malas porque tem viagem marcada para a lua de mel numa cidade um pouco distante. A mãe da noiva demonstra preocupação por conta de estar já quase amanhecendo e adverte que dirigir com sono não é recomendável. O rapaz esclarece que procurou dormir durante o dia, que não há risco algum. Dirigir àquela hora, diz ele, é até melhor porque a tendência é que o dia vá clareando mais até que nasça o sol. Além disto, complementa, o clima está mais ameno e a estrada menos movimentada. Contra o gosto da sogra, o rapaz põe o carro para fora da garagem e dali a pouco estará na estrada.
Em pouco mais de 4 horas de viagem chegam ao hotel em que foram feitas as reservas. O rapaz retira a bagagem, o manobrista conduz o carro ao estacionamento enquanto um auxiliar de portaria conduz o casal até a porta do quarto. Um olha para o outro, sorriem, e o rapaz toma a iniciativa: põe a noiva nos braços, empurra a porta com o joelho e entram, embriagados de desejo.
Ao ligar a luz tomam um susto imenso: sobre a cama estão todos os parentes da noiva, o ex-marido, os últimos amantes, alguns médicos de especialidades diversas e uma cartomante vestida a caráter.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

LAVADEIRAS



Lavar e passar, dia após dia. Horas a fio na beira do rio, batendo roupa, literalmente, até que os braços não mais deem conta. Enquanto a roupa é batida, o sol açoita os corpos desnutridos e resseca a pele tal qual faz com o leito seco dos lagos: queima que racha. Um dia os panos são reclamados por uma família, noutros, por outras. Mas a rotina repete os gestos, repete as roupas e até mesmo os pensamentos que consomem o tempo.
À beira do rio, só as cantigas mal cantadas, os benditos murmurados desfiam o silêncio. Afora isto, o ruído das águas ou a algazarra dos pirralhos que se banham um pouco mais além, na água turva. A roupa batida contra a pedra solta um repique seco e ritmado e ecoa nos arredores como um fazer de costume, sem surpresa alguma.
A blusa que antes foi nova, recebeu recomendações para secar à sombra, agora, desbotada, parece ter perdido o seu sentido na espuma do sabão e no enxágue das tantas vezes que mergulhou nas águas do rio e de outras tantas que foi torcida até que pingasse a última gota, antes de ir-se ao varal para a secagem. O sol se entranha no tecido e sorve tudo o que é líquido. E o vento transpassa as malhas esmaecendo as cores e a resistência dos fios.
A roupa limpa e passada desfilará pelos dias, pelas ruas, pelas paragens inimagináveis ou, até mesmo, inconfessáveis. Vai adquirindo cheiros ou fedores dos perfumes e dos suores. Vai adquirindo estampas de coisas escorridas em ocasiões diversas: alimentos, bebidas, batons e outras intimidades. Depois retornará ao rio para o lavado e novas recomposições. No e vir se faz o seu desgaste e, ao mesmo tempo, desgasta o tempo e a vida no esforço repetido e nas horas somadas em que ficará estendida.
Por vezes surge um cerzido reunindo no pano puído as margens do que rompeu no uso e na batida contra a pedra. Por outras vezes, por descuido, um puxãozinho, o tecido preso à farpa do arame se esgarça. Quando não, o ferro mais aquecido, ou esquecido sobre a roupa, queima enrugando ou ou rompendo em pequenos furos. De qualquer modo, embora tudo isto faça parte deste rito, também faz parte ouvir queixas, lamentos e ameaças, cobranças: “era a minha melhor roupa”. Parece coisa feita, é sempre esta que se rasga.
Na hora da paga, os caraminguás, como bem se diz, mínguam. O bem calcular, cada batida na pedra vale pouco mais que a fração mínima. Mas também isto já está ajustado, não há novidade alguma. Como que por determinação da sequência, ou melhor, da consequência, aquelas poucas cédulas e as moedas adjunto vão se transformar em alimento, sustento para que no dia seguinte se possa lavar a roupa que está ajustada de muito antes com a família daquele dia.
O sono da noite vira sonho que gira em torno das águas do rio: uma roupa vestida sem consentimento e o flagrante da dona que reage aborrecida. Tudo o que foi desejo não realizado no decorrer do dia inventa de acontecer como experiência enquanto o corpo adormece, no instante da noite dormida. As festas, as brincadeiras, as cores estampadas nas melhores roupas. Até mesmo a companhia desejada. É no tempo dos sonhos que se materializam.
As mães passam o ofício de lavar e passar para as filhas numa história interminável, como um destino sem apelação. Uma ou outra menina foge deste determinismo, quando migra para outras paragens ou quando lhe falta mesmo a vontade e se dedica a fazer outras coisas. Por vezes, coisas tão repetitivas quanto, mas dá-se a buscar outros destinos para si.
As lavadeiras nem se dão conta de que os destinos das peças de roupa repetem de certa maneira os seus próprios destinos. Se por um lado, as roupas vão e voltam às suas mãos enquanto perdem a cor e se diluem no tempo, a vida de cada uma das mulheres que batem a roupa contra a pedra também vai-se desgastando no trabalho repetido, no esforço dos dias, dos anos, até que tenha que repassar às gerações mais novas a tarefa de lavar e passar.
As roupas em seus ritos de ir e vir, de bater contra a pedra e de consumir a força e a vida enquanto se consomem, desenham o destino das lavadeiras e das famílias a que servem, no mesmo diapasão. 

sábado, 3 de dezembro de 2011

O PRIMEIRO PORRE



Regina, apesar de ter resistido muito a ir ao aniversário de uma amiga do trabalho, diverte-se como nunca. Já não se sente uma estranha na casa da amiga. Conhece quase todo mundo que está ali e participa das conversas com muita desenvoltura. Tem tanta confiança que até arrisca-se a tomar uns goles de vinho, uma novidade para si e para as amigas. A música em nível razoável, deixa fluir a conversa agradável e tudo toma um sabor nunca antes experimentado.
Percebe, no entanto, que a casa vai tomando uma maior dimensão e que o número de pessoas está diminuindo. É chegado o momento de voltar para casa. Anuncia para a amiga aniversariante está na sua hora de ir embora. A amiga pede que ela aguarde um pouco e retorna com um rapaz que diz ser um primo que irá deixá-la em casa. Regina pensa, primeiramente, em não aceitar, não quer dar trabalho, mas considerando o adiantado da hora e por estar se sentindo meio tonta por causa do vinho, aceita e agradece a amiga, desculpando-se, em seguida, pelo incômodo.
Igor, o nome do rapaz é Igor. No carro, Regina adota a estratégia de puxar conversa, primeiro para não cochilar e depois para que Igor não perceba que ela está sob o efeito de bebida. Fala coisas variadas e os dois riem como se se conhecessem de algum tempo. O carro percorre as ruas em direção a Copacabana, onde Regina reside. O rapaz conhece bem a cidade e não demora muito, chegam ao destino.
Defronte ao prédio, Regina desce e, sem raciocinar, pergunta se Igor não quer subir ao seu apartamento. O rapaz agradece, pergunta se pode vir noutro dia mais cedo para uma visita ou, quem sabe, possam sair, talvez, ir a um cinema. Regina sorri como que concordando, agradece novamente e adentra ao prédio. Ao passar pela portaria, o porteiro diz alguma coisa que ela não entende direito, mas também não preocupa-se em saber o que seria. Cumprimenta-o com um bom dia, afinal, já passa das 2 horas da madrugada, e toma o elevador.
Demora um tempão procurando a chave do apartamento dentro da bolsa, quando imagina ter que pedir ao porteiro para chamar um chaveiro, encontra as chaves tateando em meio as coisas todas que a impediam de encontrar o que buscava.
Perde mais um tempinho para encaixar a chave na fechadura. Abre, em fim, a porta e caminha cambaleante até a sala. Joga-se inteira no sofá e sente o mundo girar a sua volta. De imediato, tenta se levantar imaginando que possa a vir a vomitar e ali não seria um bom lugar. Vai ao banheiro, encara o espelho perguntando-se por que estaria tão tonta se, afinal, bebera tão pouco? O espelho parece argumentar que na verdade é por conta da falta de costume. Acaba se convencendo que está mesmo ruim, como poderia conversar com o espelho se a imagem ali refletida é a sua?
Sem pensar mais nada, toma um banho rápido, vai para o seu quarto, veste uma roupa leve e deita-se com cuidado, por conta ainda da tontura. Ao rolar o corpo devagarzinho pro meio da cama topa com alguém, toma um susto e quando esboça um grito, a pessoa a abraça carinhosa e irresistivelmente a beija com volúpia.
O sol invade o apartamento. Regina incomoda-se com a luminosidade e, embora sob o efeito de sono pesado, lembra do momento exato em que topou com alguém em sua cama. Joga a coberta e ergue-se de supetão. A cabeça pesada dói um pouquinho, mas ainda está tonta e quase cai ao se por de pé. Estupefata, vê que está completamente nua, mas quem está deitado em sua cama é o boneco Hermano.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

MATAR O TEMPO



Esta noite passada, vivi belos momentos de alegria na companhia de colegas de faculdade. Uma festa e tanto. Cheguei à minha casa às altas horas e,  de tão cansado, cai na cama e dormi quase antes mesmo de deitar-me completamente. Agora, a cabeça me dói e a boca mistura uma porção de gostos onde o amaro se destaca com certa agonia.
Ultimamente, venho experimentando repetidamente e com maior frequência estas sensações. Enquanto os sentimentos incômodos se sobressaem às outros, prometo não repetir mais os momentos que tem culminado com tais sensações. Uma espécie de arrependimento de não sei o quê. Um suor frio percorre a alma e o desânimo parece esvanecer o corpo.
E como não tenho conseguido cumprir as minhas promessas, resta-me um medo apavorante de não ter mais domínio sobre as minhas vontades, de não saber mais como controlar os meus desejos. Não compreendo por que no dia seguinte, lá estarei novamente junto ao mesmo grupo de pessoas, frequentando os mesmos lugares e tomando todas. Ocorre que até mesmo este medo justifica que eu não queira ficar sozinho com meus pensamentos, que precise beber mais um gole de cerveja e ficar acordado madrugada adentro.  Cair na cama e dormir de imediato parece justificar todas as coisas que tenho feito, embora a ressaca do dia seguinte faça parecer tudo inconseqüente e sem justificativa.
Eis-me aqui a curtir o mal estar da noite anterior. Um comprimido destes contra a sensação de embiaguez para o mundo para mim e o alimento quente acaba por aliviar-me do enjôo.
No trabalho, o PC conectado, vou navegando pelas redes sociais e curtindo os comentários e fotografias deixados como registro da esbórnia. As imagens e as postagens são pouco recomendáveis apesar de quase que completamente desfocadas. Em meio a tudo, logo surgem os convites para marcar os encontros para a agenda de hoje à noite. Recuso todos e, quando dou por mim, percebo que não produzi nada do que tinha que produzir no trabalho e a manhã está no seu limite.
Todos os colegas estão saindo pro almoço e eu fico um pouquinho mais para dar uma ou outra resposta a quem me solicitou alguma opinião e quando saiu, resta-me pouco tempo para almoçar. Faço um lanche rápido na padaria da esquina e retorno ainda com o sanduiche na mão,  para não chegar atrasado.
Enquanto tarde avança volto aos contatos da manhã e os convites recusados vão sendo reconsiderados um a um, vou revendo-os e firmando compromisso para logo mais. Aos que já não estão conectados eu envio um sms e, caso seja mesmo alguma daquelas pessoas indispensáveis, ligo do celular. Tudo confirmado, ninguém é besta para recusar um bom papo e ótimas companhias. Deste modo foi ontem, antes de ontem e assim por diante...
As pilhas de papel se acumulam sobre a minha mesa e vou adiando ler os processos, os deixo sempre para o dia seguinte. Mas, amanhã eu quero chegar mais cedo e rapidinho ver os que forem mais urgentes, não há mesmo nenhum caso complicado. Tudo coisa de rotina, concluo. Saiu dali para a noite que me aguarda, os melhores amigos do mundo, uma noite inteira disponível e a cidade querendo ser descoberta. Vamos a um bar que está sendo inaugurado na periferia. Pelo que eu soube, bebida e comida mais em conta por causa da inauguração. Vou conferir, mas prometo que hoje volto cedo para casa. Não quero repetir a noite de ontem, aliás, as noites dos dias anteriores. O melhor de tudo é esta noite me engolindo sem paradeiro.

domingo, 20 de novembro de 2011

MERA COINCIDÊNCIA



Sexta-feira, tenho que levar um amigo a rodoviária, ele vai a Fortaleza. Trabalhamos na mesma empresa. Ele é programador visual e eu sou redator, fazemos uma dupla de trabalho. Na verdade, vou dirigindo o carro que a empresa nos cede para estas ocasiões. Chegando a rodoviária, ainda há algum tempo até que o ônibus chegue, vamos à lanchonete com o intuito de beliscar alguma coisa.
Na lanchonete, nos chama a atenção a TV ligada, transmitindo o programa de um partido. Ficamos ali, conversamos, lanchamos e assistimos ao programa político com algum interesse. Observo que ladeando o balcão, duas jovens conversam, atentas ao programa. Também elas vieram acompanhar uma amiga que viaja para o interior do estado.
Saimos dali praticamente juntos. Pergunto a uma das moças para onde estariam indo. Antes que responda, informo que vou ao centro da cidade, ofereço carona. Confirmam que vão indo no mesmo sentido e aceitam ir comigo. Até chegar ao local em que devem descer, pouca conversa, apenas sondagens de nomes e ocupações na cidade. Ficam na avenida principal. Ao descer, agradecem pela carona e esboçam um sorriso, como se sugerissem um até breve.
Alguns dias depois, o amigo que havia ido a Fortaleza me interroga sobre a possibilidade de sairmos para conversar. Diz que conheceu uma pessoa de Teresina em Fortaleza e que está combinado de saírem no final de semana próximo. Diz ele que esta pessoa tem uma amiga e que a tal amiga deseja me conhecer. Retira um papel do bolso e entrega-me. Neste papel estava anotado o número do telefone de contato. Naquele momento eu estava mesmo interessado em conhecer pessoas novas na cidade, morava sozinho e sair com alguém pra conversar seria mesmo estimulante. Gostei da ideia e fiquei de ligar.
Meu amigo conta que numa destas coincidências, a tal pessoa esbarrara nele quando entravam numa loja e, passado o susto, ela teria perguntado se ele poderia ensinar como chegar a outra loja. Ele se oferecera para ir com ela até lá, no percurso, enquanto conversavam e teriam descoberto que moram na mesma cidade, que estariam ali em trânsito. Desde então, nas conversas que dali foram acontecendo falaram sobre o trabalho, as amizades, os gostos pessoais. Dentre tantas coisas, teriam armado o meu encontro com esta amiga da nova amiga dele.
Passei a ligar para o tal número e sempre estava ocupado. Passados alguns dias sem sucesso cheguei a pensar que não conseguiria. Cheguei a falar com ele que me prometeu ver se havia algum problema com o número. Não havia. Continuei a insistir até que num determinado momento eu consegui. No início, fiquei um pouco sem saber o que dizer. Aos poucos, fui me sentindo mais seguro, falei do meu amigo, da amiga dela e de como havia tomado conhecimento do número do telefone. Demonstrei interesse em conhecê-la e a convidei para sairmos. Acertamos para sair, para irmos a um bar cultural que é moda na cidade.
Quando a vejo, reconheço-a de cara, é uma das jovens a quem dei carona da rodoviária até o centro da cidade. Tomo o destino do endereço do bar para onde combinamos ir. Como o bar está sem mesa desocupada, ficamos num restaurante, logo em frente. Na conversa, vai a noite tomando o seu jeito sedutor de sorrir e de como mexe com os cabelos, cada vez de um modo diferente. Cativo, prendo a  minha atenção. Ficamos atentos um ao outro dias e noites seguidos dai por longo tempo.

domingo, 13 de novembro de 2011

A PROVA




Satélites patrulham o espaço.
E eu me movo como passo:
entre a província e o mundo.
                              Elias Paz e Silva

          Confesso que não estou muito a fim de fazer a prova hoje. Vou à aula porque tenho que ir, não sei bem como estão as minhas faltas, não posso arriscar a ficar reprovado. Até que eu estudei o bastante para fazer uma boa prova, mas não gosto de fazer provas, esta é que é a verdade.
          Vou-me agora aproximando do Centro Acadêmico, vejo que todos os meus colegas de turma estão lá. De cara, noto que algo está errado: primeiro porque esta turma não anda junta assim e nem tampouco freqüenta em bloco o CA. Depois, está todo mundo de cara amarrada, como se alguém houvesse feito alguma ofensa séria. Pergunto o que está pegando, me falam que não vão fazer a prova, vão falar para o professor. Ninguém ali quer fazer a prova. Eu também não estou a fim, mas não falo nada, só escuto. Pergunto por que não vão fazer a prova? Dizem que não tem nada a ver o livro que o professor indicou como texto: o autor fica falando de suas experiências pessoais, e não existe conteúdo para avaliação, ninguém entendeu nada.
          Bom, este não é o meu motivo, até que eu achei o livro interessante. É verdade que os textos estão escritos na primeira pessoa e alguns são auto-elogiosos, mas, no geral, o assunto é interessante e o autor conhece bem, fala com propriedade. No entanto, continuo só ouvindo. Demonstro, com a cabeça, concordar com o que estão argumentando.
          Quando a turma inteira se levanta para dirigir-se a sala de aula, vou junto. Afinal, se houver uma reviravolta, estarei lá para cumprir com a minha obrigação. A turma elegeu uma garota para falar com o professor, uma espécie líder da turma de última hora. Ao chegarmos à sala, alguns minutos de atraso, o professor já está lá. Sobre a mesa, o Diário de Classe e alguns outros papéis que devem ser as folhas de questionário da prova. Sentamos todos em silêncio, a garota senta-se na primeira fila. Sento-me no fundo da sala, um lugar donde posso observar tudo.
          A garota pede ao professor para falar, ao que ele assente com a cabeça. Ela começa dizendo que ela e os seus colegas não estão preparados para fazer a prova. O professor a olha com espanto, e pergunta o que fizeram desde que o livro foi indicado e o texto disponibilizado para a leitura? A garota diz exatamente o que me haviam dito no Centro acadêmico: o autor fala de coisas pessoais, não há conteúdo que possa servir como tema de avaliação...
          O professor faz silêncio, olha a turma com perplexidade, como se esperasse que alguém ali manifestasse alguma opinião diferente ou, quem sabe, pudesse dar uma explicação mais plausível. Silêncio completo.
          O professor, então, toma a palavra e sorri com ironia, começa dizendo que não irá impor uma prova para a turma se esta turma se confessa incapaz de entender o livro que tentou a muito custo ler. Neste momento, a minha vontade foi a de protestar, de soltar os cachorros pra cima do professor. A verdade, é que não consigo. Estou me sentindo humilhado e co-responsável pela decisão da turma e, mais ainda, se não consigo esbravejar é porque também eu concordo, de alguma maneira, com o que diz o professor. Percebo que mais uns dois ou três colegas argumentam que não é assim, que o professor os está diminuindo, mas a conversa não prospera.
          Ficou pior ainda quando o professor pega seu material para se retirar e resolve tomar mais uma decisão. Diz ele que não haverá mais nenhuma prova, que as notas até ali atribuídas serão somadas com a nota do seminário que deverá ser apresentado em dias previamente marcados, donde será tirada a média para cada um. Outra coisa – completa o professor – ninguém mais precisa entregar o artigo que teríamos que produzir, que seria uma violência exigir que escrevêssemos um artigo científico. Disse isto e retirou-se.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

VIAGEM DE FÉRIAS




Com o tempo, Regina, já habituada à cidade do Rio de Janeiro, vai espaçando suas idas à terra natal, no Nordeste. Continua sentindo saudades da família, dos lugares, dos costumes, da comida e dos amigos, mas já não é tão incômoda. Até parecem agradáveis estas lembranças. Mas este ano achou por bem passar as férias com sua família. Toma todas as providências com antecipação: passagens, roupas, malas etc. Um presentinho para quem acha que deve levar, uma lembrancinha somente.
Dia da viagem, levanta-se cedinho. Tudo arrumado, enquanto espera a portaria do prédio anunciar o táxi, caminha pelo apartamento para ver se não está esquecendo nada e, ao mesmo tempo, arrumar o que possa estar fora de lugar. No último momento, lembra de pegar Hermano no guarda-roupa e sentá-lo no sofá, com advertência de que tome conta de tudo, não abra a porta para estranhos e que se cuide. Diz que deixou na geladeira apenas refrigerante e outros produtos próprios, que, se ele precisar, vá ao supermercado. Deixou dinheiro suficiente, no lugar de sempre. Dá-lhe um beijo carinhoso e se vai. Regina emociona-se ao deixar Hermano sozinho.
No caminho, até o aeroporto, Regina desliza entre paisagens de prédios apressados que se deslocam em sentido contrário ao seu. Os pensamentos misturam a expectativa de rever sua terra e sua gente, com as preocupações com tarefas do trabalho, novas amizades, o apartamento e a solidão em que ficara Hermano.
Do embarque até o momento de decolar, Regina fez tudo tão automático que não precisou sair daquele transe de viagem. As distâncias se mesclam, as pessoas se confundem e os olhos não veem o que olham, apenas a ebulição interior. Dá-se conta de que está voando, quando a comissária toca em seu ombro e lhe pergunta se está passando bem. Com um sorriso leve e com a cabeça assente que sim. Fica, então, atenta ao serviço de bordo e busca se situar.
Depois da aterrissagem, Regina toma um ônibus, na estação rodoviária, que lhe conduzirá à cidade em que mora sua família. Duas horas de trajeto, logo estará chegando. Tempo de um cochilo. Desperta com a passageira ao lado pedindo para que a deixe passar, o ônibus chegara ao seu destino, avisa.
Regina vê pela janela que sua família inteirinha veio recebê-la. Sorriem, abraçam-se e, aos poucos, dirigem-se aos carros que os levarão para casa. Nenhuma conversa completa, só frases cortadas, sem muito sentido: sobre saudades, a viagem, o cansaço, estas coisas de quem não sabe mesmo o que falar e que são próprias de determinadas ocasiões na vida.
Em casa, sobrinhos novos, vizinhos novos, olhares de admiração e surpresa. Após tomar um banho rápido e vestir uma roupa leve, Regina chama a parentada para o quarto em que ficará alojada, abre uma mala e vai chamando pelo nome o dono de cada presente. Risos, abraços e beijos, num clima de frisson. Antes de entregar cada presente, uma pequena história que justifique a lembrança e, ao mesmo tempo, explique por que cada coisa tem a ver com cada um que a recebe.
E, à medida que entrega cada presente, o quarto vai ficando mais apertado: os que recebem não se retiram e novas pessoas vêm em busca dos seus. Num dado momento, é necessário que a mãe de Regina peça para que os que já receberam o seu deem lugar aos outros. O quarto vai, aos poucos, se esvaziando, junto com a mala. Depois que todos saem do quarto, Regina se dá conta de que está só. 

domingo, 23 de outubro de 2011

HUMORES



Um risco, um talhe na pele do olho. Um cisco em lâmina, argueiro que vaza o humor vermelho e inunda o globo. Um corte esguio de bisturi. Um ver que ostenta insatisfação com o mundo e suas coisas à vista. O sangue ferve na veia e destempera o ritmo do coração. É assim, dizem: é o que há para ser visto.
O humor verde amarelado amarga a língua, espasmos de vômito em profusão. A pele eriça em calafrios, o sabor amaro da paisagem incômoda incomoda profundamente. Assim, do modo como as fraturas são expostas e a indiferença naturaliza o mau gosto, resta a esta anciã conhecer algo mais antigo; a novidade é a mesmice, sempre.
Há, de verdade, um humor físico, uma fleuma, pituíta que escorre em avalanche numa espécie de defluxo e não anima ninguém, arranca a alma do corpo e o deixa extasiado, inanimado diante do ver por ver coisas sem sentido. As palavras ganham formas visíveis, sem novidade. As imagens transitam apáticas e sem nenhuma atração.
Aos poucos e depois de séculos, resta-nos uma irascibilidade que se derrama sobre a pele de cada coisa e daí para o nada entre todas. É como se um certo humor irascível predominasse nos interstícios de tudo e se impusesse como padrão de visão sob a luz do meio-dia. O humor da bílis negra, a sensação de fim de tudo cheio de cólera.
O humor liquefeito das entrecoisas, das entrelinhas que percorrem os corpos e a eles mantêm com vida convida a uma percepção menos concreta da imagem, mas diluída nos veios, nas veias, nos leitos. O sangue circula nas artérias como um humor viscoso, prestes a se jogar pelos poros, a arrebentar o peito em emoções fortes ou a coagular na apatia e no marasmo do que a vista alcança.
A bílis emulsifica, absorve as gorduras e atua no estado de humor dos que veem diante de si as imagens carcomidas do cansaço da visão. Cada recorte põe em evidência humores diferentes, destes que regam a vida e envidam aceitamentos, aceites, convidam a desconfiar do visto.
Humor como estado de espírito, como permanência e mutação da vista. A paisagem repousa adiante e o melhor ângulo de observação desequilibra a sua possibilidade de contato ótico, de rejeição plena ao que a imaginação oferece. Água umidifica as lajes, o lajedo, e se entranha nos corpos como humor sob diversas formas. A água rega e limpa ao mesmo tempo, vai se solidificando com os detritos que agrega no seu percurso. A água contamina-se do mesmo modo que a visão vai se incrustando da sujeira das coisas vulgares que se ofertam de novidade.
A alma, com seus humores, paira sobre o mundo entorpecida. O sangue circula no corpo assim como os outros humores, a mistura é inevitável e letal. A diferença se impõe a cada um no lugar mesmo em que atua. Só uma eventualidade há de romper seus destinos. Só uma grande emoção ou um prazer desmedido, destes que parecem perder a probabilidade de ocorrência numa rapidez vertiginosa.

domingo, 16 de outubro de 2011

VER O RETORNO

Foto do autor

Olhar o vale do alto da montanha ateia fogo na alma. A relva desenha um verdor que nos envolve por inteiro. A teia estremece ao roçar do vento no afago da luz matinal e arranha o nada com filetes de prata trançados. De dentro vem o calor que esquenta o dia e anima as ideias. Fica-se um tempão sob a copa do Jatobá, à sombra.
Caminhos desenhados e mal acabados oferecem múltiplos sentidos, e, a cada escolha, risos e guizos. Engana-se quem pensa que caminhar por entre malícias, descendo ou subindo, é simples. Na descida, lança-se o corpo sem grande esforço, mas a tensão é com os receios do que possa vir dos arbustos que encobrem as trilhas. Subir, além dos medos, tem-se que arrastar o peso do corpo por entre as árvores e suas raízes, as pedras e os deslizes dos desvios e desvãos.
Mas gratifica tanto a oportunidade de chegar ao cimo e olhar o vale sobre as copas das árvores mais abaixo quanto, depois, chegar em casa com as paisagens na memória. Tudo é chama que incendeia, tudo é motivo para ver novamente. Histórias vão se criando com a experiência de abrir caminho ou de caminhar por trilhas já abertas e mesmo assim cheias de surpresas.
O que antes parecia apenas um delírio de infância se consolida de modo muito mais belo e agradável. A luz tinge matizes no teto verde da floresta e recria cores e tons no solo de folhas férteis. Os brotos escancham nos galhos e renovam-se como experimentos de vida. Pássaros acompanham cantando e entoam cantos diversos na brincadeira de aparecer e esconder, em voos repentinos. É só mais um motivo para desviar a atenção do cansaço e esquecer o esforço da caminhada.
O rosto entre as mãos, os cotovelos repousam nos joelhos dobrados. Aos poucos, a sensação de fome lembra o estômago. Há tempo espera o instante de ser chamado; enquanto aguarda, observa a estampa da toalha de mesa à sua frente com a atenção necessária para esquecer o aborrecimento da espera. Depois, não é apenas o tempo arrastado de esperar que incomoda, mas também a possibilidade de precisar ter que operar. De vez em quando cai em si pela interferência da voz da atendente que chama por alguém desconhecido, ainda não é a vez. Logo depois muda o olhar e volta a acionar a imaginação por algum motivo ignorado.
A banda de música postada no quiosque da praça executa um dobrado, não consegue identificar qual seria. Logo depois da praça, enfileirados, dezenas de alunos ensaiam para a Parada de 7 de Setembro, o dia da Independência do Brasil. O sol escaldante lança-se sobre a criançada enquanto eles seguem pisando no ritmo da bateria em marcha militar. A sombra da torre da igreja matriz se projeta sobre as filas de alunos fardados e só por alguns segundos aliviam-se do calor solar.
As crianças entoam hinos patrióticos e esgoelam-se no afã de cumprir as determinações das professoras que caminham ao lado, e, vez ou outra, intervêm para ajustar o passo marcado de algum pirralho que desatina. Contornam a praça diversas vezes. Repetem os exercícios de parar e seguir, à exaustão. Renovam os hinos e a marcha várias vezes, sob o sol pegando fogo.
Um vento mais forte entra pela janela e move a cortina com força, desfazendo o eixo do olhar preso à imagem da estampa. A atendente chega mais perto e avisa que chegou o momento de entrar para a consulta. Ainda dolente, observa a cara da atendente e não a reconhece como parte de sua experiência recente.

sábado, 1 de outubro de 2011

URBANOPATIAS

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A cidade é, por excelência, o lugar do excesso. Tudo é ofertado em demasia, inclusive a escassez. Recorrentemente se ouve falar em comportamentos compulsivos: consumo de bens materiais (roupas, perfumes, chocolate etc.), de bens simbólicos (novelas, notícias, Internet etc.) e até mesmo de sexo. As síndromes e os transtornos obsessivos compulsivos fazem parte das patologias modernas, mas, principalmente, urbanas.
Uma das lógicas que alimenta o sistema capitalista é exatamente a produção em larga escala: vários produtos, inclusive remédios, com finalidade e conteúdo semelhantes são ofertados em massa sob o pretexto de estimular a livre escolha. Mas, ao mesmo tempo, são criados filtros severos que definem quem pode ou não acessar os produtos em oferta. Sem dúvida, o mais forte destes filtros é o poder de compra; se de um ladoprodutos em excesso à mostra para consumo, por outroemprego e salário de menos, o que cria uma bruta contradição. Daí decorrem filtros como a falta de educação e de saber que afunilam mais ainda o acesso aos bens urbanos.
Diz-se que cada um é livre para dar destino à sua vida. Porém, para cada um, as oportunidades são bastante diferenciadas. Enquanto uns têm acesso à boa alimentação, educação, saúde, moradia, entretenimento, emprego e renda, aos outros são negadas estas garantias básicas de uma vida digna. Nega-se, assim, um dos fundamentos principais para o acesso as oportunidades de mobilidade social.
É claro que ao acessar as tecnologias e seus produtos, as elites garantem a manutenção desta realidade indefinidamente, e isso não ocorre de modo pacífico. Primeiro, porque as indústrias que produzem em excesso precisam de consumidores para as suas produções ― quanto maior o número de pessoas consumindo mais disputas são possíveis. Segundo, a ostentação da riqueza gera o desejo e a revolta entre aqueles que não têm acesso a nada, abrindo possibilidades de ações violentas.
O excesso é tanto maior quanto mais houver modernização tecnológica. As tecnologias facilitam o aumento da produtividade e substituem mão-de-obra, produzindo, contraditoriamente, mais oferta e desemprego. De outro lado, impõem a velocidade contra o tempo e o espaço, esgarçando fronteiras e desestabilizando referências que anteriormente pareciam estáveis: as comunidades disseminam-se no tecido social sob novas configurações, reinstauram-se tribos, exacerbam-se disputas e comportamentos violentos. Contra o conforto e as facilidades que atraem migrantes para os centros urbanos surgem a insegurança e o medo, provocados pela violência extremada. Vive-se um tempo em que, parece, o gestor urbano perdeu o controle sobre a ordem e a dimensão de suas medidas e escalas.
Neste cenário, ressurge o desejo do indivíduo sobre o da coletividade, é a reafirmação necessária da identidade que explode em fragmentos tantos quantos sejam possíveis. Cada um detém uma nova maneira de se apresentar e se identificar. Os conglomerados humanos, de qualquer tamanho, espelham-se e identificam-se nos comportamentos de massa superdimensionados pela mídia, sintomas de contágio dos corpos urbanos, através de epidemias de informações deformadas. As urbanopatias que poderiam ser características das grandes metrópoles espalham-se e contaminam pequenas cidades com a velocidade de viroses incontroláveis. O despertar para um retorno ao mundo rural, a migração às avessas, é um dado novo e contém em si o risco da disseminação dos espaços saudáveis do campo pelas patologias comportamentais que fizeram disparar nas cidades a violência, a solidão, o consumismo, o medo.

sábado, 24 de setembro de 2011

A ROSA DO POVO


Noitinha, a luz tênue mescla o verde-escuro das salsas com o branco da areia do terreiro da casa. As conversas, após o jantar, estão ainda no seu início e todos nos damos conta de que alguém se aproxima. Olhamos uns para os outros como a nos perguntarmos quem seja. Os cachorros levantam-se, se espreguiçam e se agitam, mas não rosnam ou latem, como se conhecessem o tal cavaleiro.
Encosta-se ao parapeito do alpendre, retira o chapéu com reverência e dá boa noite. Um coro meio desanimado e desafinado responde com “outro boa noite”. O rapaz explica que soube de estarmos de posse de uma mala encontrada na estrada. Explica que a referida mala é sua e que a deixou cair, quando a transportava na garupa do cavalo, na manhã anterior Diz que percorreu léguas e léguas beirando a estrada e tomando informação até saber que a havíamos encontrado.
Confirmamos ter encontrado a referida mala e já alguém se ergue para ir buscá-la, quando tenho a ideia de verificar se realmente ele é o dono, visto que os pertences encontrados no interior da tal mala são femininos. E o rapaz não parece nem um pouco afeminado. Perguntamos, então, se ele poderia nos dizer o que contém a mala. Ele, a princípio, faz silêncio, como se pensasse. E a seguir, começa a reclamar que estaríamos desconfiando de sua honestidade e coisa e tal.
À medida que resiste a responder o que perguntamos, vou ficando mais convencido de que ele não conhece o que tem a mala e, portanto, não pode ser o dono, como diz ser. O rapaz mostra-se bastante irritado e até insinua algumas ameaças, sugere portar armas, mas, em nenhum momento, apresenta qualquer ameaça ostensiva.
Resolvo, então, revelar genericamente o que tem na mala, digo que na verdade as coisas não podem ser dele porque se tratam de pertences femininos. Ao ouvir isto, ele começa a sorrir, a gargalhar como se houvéssemos contado uma piada muito engraçada. Ri que quase cai do cavalo. E sem dizer uma palavra, toca as esporas no cavalo e sai dali em disparada.
Alguém reclama, então, que eu entreguei a informação, e que, dali por diante, outras pessoas poderão vir buscá-la, pois, desta vez, já saberão o que a mala contém. Eu explico, então, que não é bem assim, porque a informação que eu dei foi muito imprecisa; em “pertences femininos” podem se incluir muitas coisas. Naquela noite mesmo não houve outro assunto. Também não apareceu mais ninguém.
No dia seguinte, cedinho, quando abrimos a porta, havia uma mulher sentada em um dos parapeitos, como se lesse um livro. Com todo o barulho de abrir a porta e o movimento que daí decorre, ela não ergueu a vista. Fui até onde ela estava e a cumprimentei com um bom dia, ao que ela responde olhando para mim e sorrindo. Diz que veio pegar sua mala. Olho ao redor e não vejo nenhum animal, nenhum veículo. Pergunto, então, como chegou até ali, e ela responde que alguém virá pegá-la depois.
Ela sorrindo me diz que nem precisa perguntar sobre o conteúdo da mala porque ela mesma dirá. E vai dizendo aos poucos, conferindo com o que de fato está lá. Por fim, fala do livro do Carlos Drummond de Andrade. Contamos a ela o ocorrido da noite anterior, ao que ela nos diz não saber quem seja o tal rapaz. Diz que soube que a mala estava conosco por alguém que a teria contado, mas não teria sido, certamente, o tal rapaz.
A respeito do livro, ela nos diz que sua mãe teria estudado em Belo Horizonte, quando jovem, e recebido o livro de presente do próprio poeta. Insinua ser filha dele, alguém de quem ele nunca teve notícia. E que ela também nunca teve como conhecê-lo pessoalmente. Sempre sorrindo, com ar de intimidade, se vai, e, antes de sair, diz que se chama Rosa.

sábado, 17 de setembro de 2011

BOCA DA NOITE



Desliga a luz, hora de tentar dormir. O corpo se espreguiça na cama fria e o lençol cheirando a amaciante promete agradável noite de sono. Mas o dia passado espelha a alma com os seus senões. A promessa de emprego frustrada, o sol abrasador queimando a pele nas idas e vindas inúteis, a bronca suportada, a comida com cheiro de queimado, a angústia de ter de silenciar para não desagradar a família que, de algum modo, o acolhe...
Vira para um lado, mantém os olhos fechados. Vira para o outro, ainda de olhos fechados. Não consegue adormecer. Ergue-se e vai à geladeira para tomar um copo d’água. Não tem sede, é apenas um pretexto para levantar-se e caminhar pela casa. Teme que alguém acorde ou que o descubra abrindo a geladeira e imagine que está aproveitando o escuro da noite alta para fazer uma boquinha. Mas vai adiante.
Ouve um murmúrio vindo do quarto de casal. Resolve bisbilhotar. Pisa macio, tomando cuidado para não topar em nada e vai à busca de ouvir o que conversam. À medida que se aproxima, o tom da conversa torna-se melhor audível e, aos poucos, vai pescando algumas palavras. Estranha que a luz não esteja acesa, o quarto todo escuro, mas mesmo assim põe-se a uma distância que dê para ouvir sem se arriscar muito.
Apenas uma voz feminina não encontra resposta de outra, parece que fala sozinha. Sabe que algumas pessoas têm o costume de falar enquanto dormem, até aquele momento nunca percebera que alguém naquela casa tivesse tal hábito. Apesar de não soar baixo, a voz parece cheia de línguas, não dá para ouvir muito bem tudo o que é dito. Somente alguns trechos e, em alguns instantes, palavras soltas em meio a grunhidos.
Entre muitas coisas ouvidas, sem muita clareza, a mulher conta que na casa de fazenda, que fica no baixio, guardam uma mala que foi encontrada na estrada. A mala, diz, está cheia de dinheiro em cédulas graúdas. Nunca apareceu ninguém para reclamar a posse. Diz que dona Sara, uma lavadeira que trabalha por lá também, foi quem contou tal história numa festa de casamento, para todo mundo ouvir.
Por uma nesguinha só da fresta da porta entreaberta, ele percebe que a pessoa que fala se movimenta como se fosse levantar da cama. Depressa, ele retorna ao quarto e, por descuido, esbarra numa cadeira que faz um barulho razoável. Deita-se e põe-se a pensar naquela história. Ouve passos dentro de casa, finge ressonar. A pessoa chega-se e fica próxima à porta do quarto, como se o observasse. Não se move. Dali a instantes, a pessoa se afasta, na mesma pisada.
Ele vai juntando as palavras e lembrando que já ouvira tal história, mas nunca nada a respeito do conteúdo da mala, por isso não deu importância. Agora, com a informação de que a mala guarda tanto dinheiro, a coisa muda de figura, principalmente, porque ninguém ainda apareceu para recamá-la. A ideia de se apresentar como dono da mala vai ganhando força em sua mente. Talvez aquela seja a oportunidade de conseguir reparar muitas coisas que andam mal em sua vida.
Uma voz distante chama galinhas enquanto joga milho no terreiro, ele estranha que os caroços de milho brilhem ao sol feito ouro. Ele se aproxima e verifica que, de fato, é ouro em pequenos caroços que a pessoa joga para as galinhas. Ele fica aborrecido com aquilo e resolve partir para cima e tomar-lhe a vasilha donde tira os caroços que arremessa ao terreiro. Dá um grito bravo.
Acorda assustado e continua ouvindo o som peculiar de alguém que chama as galinhas para alimentar. Ergue-se da cama um tanto destreinado, se espreguiça, enquanto boceja e emite um berro de raiva e decepção. Imediatamente, a história que ouvira à noite lhe vem à mente. Senta-se de novo na cama e, desta vez, para elaborar um plano com o objetivo ir buscar a mala. 

domingo, 11 de setembro de 2011

MALA NA ESTRADA


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Levantara-nos há pouco tempo, estávamos ainda à mesa do café quando ouvimos uma voz feminina gritando, quase histérica, como se houvesse descoberto ouro. Depois de algum tempo, entendíamos que falava de estrada e de mala. Fomos às pressas ao alpendre, para ver do que se tratava. Sara, uma senhora que lava roupas para nós, enfrenta a areia do terreiro arrastando uma mala. Entra em casa e larga a mala ao chão como se quisesse desfazer-se do peso. Alegre e esbaforida, demora para conseguir esclarecer a cena.
Conta que encontrou a tal mala na estrada, quando vinha de sua casa. Lógico, alguém a deixara cair de algum carro. De princípio, ficamos sem saber ao certo o que fazer. Era uma mala simples, sem tranca ou cadeado. Pensamos em abrir para ver se encontraríamos alguma indicação de quem pudesse ser, mas pensamos melhor: era provável que quem a perdera estivesse a sua busca na estrada, e a demora em remexer as coisas poderia deixar passar a oportunidade de devolvê-la ao seu dono ou a sua dona.  Deste modo, achamos mais prudente pedir que alguém de casa a levasse à estrada e ficasse por lá até que aparecesse quem a procurasse. Claro, que não se iria oferecer ou perguntar por ali se alguém sabia de quem poderia ser, porque logo haveria de aparecer donos aos montes.
Até a hora do almoço ninguém reclamara a mala, assim também ao pôr do sol. Neste caso, achamos por bem abrir e ver se encontrávamos algo que pudesse indicar a quem pertencia. Todos em casa concordaram. Nada de surpreendente revelou o conteúdo, a simplicidade das coisas que continha já estava mais ou menos prenunciada na sua apresentação exterior.
Aquela tarefa nos despertou sentimentos contraditórios, mas somente daquele modo podíamos encontrar informações que nos permitissem saber a quem devolver. Mas, ao mesmo tempo, incomodava-nos a sensação de estar invadindo a privacidade de alguém que sequer sabíamos quem era. No entanto, distraia-nos aquele exercício exploratório: retiramos as peças de roupa e outros itens pessoais agrupando-os conforme nos pareciam pertencer a um ou outro grupo de objetos.
A dona daquelas peças e, provavelmente, da mala, é uma mulher jovem. Os vestidos demasiadamente curtos, as roupas íntimas ousadas revelavam também tratar-se de alguém da capital, com gosto bastante sensualizado. A simplicidade, no entanto, expressa no conjunto de coisas, inclusive, pelo tipo de mala, o gosto de alguém humilde, economicamente. Nada de sofisticação ou etiquetas de moda.
Também não parece se tratar de alguém de grande estatura. Uma mulher de 1,60m, talvez magra, jovem. Pela cor das roupas, predominantemente claras, pode indicar que seja também de pele morena ou mais escura. Não dá para ter certeza. Apenas uma hipótese. Uma caixa de sabonetes glicerinados, um estojo de maquiagem em cores discretas, ainda sem uso. Um perfume suave e um espelho com cabo, em formato elíptico. Nada de fotografias, agendas ou qualquer documento que revele alguma identidade.
No fundo da mala, o livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945, quando de sua primeira edição, tinha uma dedicatória que não revelava muita coisa, até porque, aparentemente, se não fora escrita no mesmo ano de publicação do livro foi próximo, e isto não batia com as impressões até ali acumuladas. Os outros indícios não remetiam para alguém com essa idade. Dizia a dedicatória, “Para o amor da minha vida, com a paixão que há de nos incendiar sempre que nos toquemos”.  Era assinada por um tal Hermano Carrasco. A data, borrada, aparentava ter-se borrado por efeito de algum líquido: água, perfume, lágrimas. Quem sabe?

sábado, 3 de setembro de 2011

DIA COMUM


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O dia amanhece com o mesmo sol dos dias anteriores. Algo de menos no tecido da esperança. É assim que se vislumbra adiante pelas frestas dos olhos incrédulos: a rede cerzida, o lençol puído e o chão batido sob as sandálias pela metade. Gentis inocentes esbaldam-se em ressaca moral. Uma nação inteira engana-se de lado a lado nas explicações amarelecidas sem explicação.
De resto, erguer o corpo no torpor do antes como um nada e vestir as vestes remendadas e comer o pão dormido há dias. Que não se atrevessem à sua frente quaisquer slogans ou mensagens de paz. É duro arrastar o tempo esticado e ainda aguentar os sorrisos e as bandeiras desfraldadas a custa de tanta insensatez. É difícil pensar nos mortos, nos vivos sem memória e no quanto uns e outros têm em comum. Nada mais a fazer, enganos ditos e repetidos como um eco sem paradeiro. Afora os sem sentidos, os dentes em falta, tudo o mais é promessa, como esses prometidos que nos sustentam e sobre os quais não se dá notícia.
Consciências carcomidas, bandas podres erguem-se arma em punho contra sombras em debandada e perseguem uma a uma como parte obrigatória do entretenimento. Multidões aplaudem torturadores confessos e vangloriam-se de ganhos insubsistentes. Solo fraturado, rasgos estonteantes sob a negação do viés vesgo e desnorteado.
O sol desloca-se lento e ardido. A pele esfumaça a última esperança sepultada, narinas dilatadas absorvem o calor corrente enquanto a sola dos pés incrusta vagos rastros no asfalto. É um dia comum, como outro qualquer. A diferença é que antes caminhavam ao lado de mais da metade dos que agora soslaiam-se pelas esquinas. Uma manhã comum certamente conduz a uma tarde comum, que, por sua vez, deve levar a uma noite comum e a uma madrugada igualmente comum. Tudo numa lógica de cavilação que não leva em conta a razão despida e alojada noutro extremo.
Ninguém muda, a cena irrequieta acena muda. O silêncio vergonhoso perde-se no alarido dos festejos sem graça alguma. Todos se admiram, miram-se e retornam ao estado letárgico do sono profundo. Espera-se que outros dias possam vir com sóis novos e luzes novas. O tecido esgarçado da esperança é o único pano, encardido, desbotado, a se erguer em bandeira. Apelo de senhas resguardadas a pelo.
O vento morno sopra sobre a tarde afeita ao vazio de ninguém mais. Grama esmaecida salta o fio vermelho do caminho por trás das grades. Olhar é longe, sombrio. Rios escorrem esquálidos, esgueiram-se fragilmente sobre os bancos de areia e ameaçam com a sequidão de verões cada vez mais longos. Não há como retornar ao terreno firme do passado. Barcos assombrados e recostam-se fincados no abandono enquanto lastreiam ratos a bordo.
Falta imensa no espaço, falta convicção e fé. Armam-se de argumentos até os dentes na comuna dos senhores da razão. A noite esconde os larápios e acalenta os corpos no descanso da fadiga. Mais um dia há de vir, Deus sabe a que preço. Farta e imersa no laço do lodaçal, a marca da ação litigante, em pele de cordeiro. Homens e mulheres consomem as últimas ofertas mostradas na televisão. Crianças esforçam-se para abrir os olhos, esticam o corpo e os braços e as pernas e bocejam.
Ao longe, canta o galo uma manhã sem sol e o canto ecoa no espelho preso à parede do quarto, fervilha no coador do café quentinho. Um dia comum como outros de antes, sem tirar nem por.

sábado, 27 de agosto de 2011

DIA APÓS DIA


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Há momentos em que histórias gravitam no espaço em que se vive. Parece que são épocas em que as antenas estão melhor conectadas com o entorno, na ânsia de aprender e apreender todos os movimentos e informações.
Pela manhã, desperta-se com o canto agudo da graúna, que, presumivelmente, projeta seu cantar do alto do maior coqueiro do quintal. O dia ainda é sombra e os cheiros da luz do amanhecer timidamente esgueiram-se nas telhas. Ao canto da graúna vêm-se somar outros alaridos: galinhas, perus, capotes, bem-te-vis, rouxinóis, sanhaços etc. Dentre os aromas do amanhecer, o do café é o mais forte e irresistível.
O cuscuz fumegante imerso no café com leite anima as primeiras histórias do dia. Diz que Ana Benta, garotinha de 8 a 10 anos saiu para pegar guabiraba e perdeu-se no capoeiral ouve-se na cozinha. Há dias, já não acreditam que ainda esteja viva. Comentam que encontraram suas roupas debaixo de um pé de pau-ferro. Mais nada. Os pais aflitos não perdem a esperança e continuam a procurá-la.
Cavalo de talo, sombra das mangueiras, o dia aquieta-se. Diz que há um cachorro louco solto nas redondezas, melhor voltar para casa. Diz que já mordeu muitos meninos que não souberam dar conta dos riscos e aproximaram-se demais. Primeiro morde os outros cachorros e depois o que encontrar pela frente. Melhor voltar para casa. De esquecido o tempo, esquece-se o assunto. À sombra da mangueira, a areia fresquinha e branca acaricia o corpo e fertiliza a imaginação.
Gritam que é hora do almoço. Fica-se mais um pouco e outros gritos ecoam até que alguém vem esbaforido e com ameaças. Se não for almoçar agora fica sem comer. Vai-se assim, em desembalada carreira. A cozinha mais parece uma feira. Gente de todo lugar. Uns comem em volta da mesa, outros sentados ao chão. Alguns ainda de pé experimentam a comida. Os mais velhos ralham: tem que comer direito, e respeitar a mesa. Deus está na mesa. Comer sem sossegar dá indigestão. Diz que seu Manuel teve uma congestão porque se aperreou na hora do almoço. Foi-se desta, não teve como salvar-se. Seu Manuel, aquele que contava histórias. Diz que esteve no Amazonas e foi encantado por uma cobra. Era seringueiro experimentado, mas neste dia ficou andando em círculos, atraído pelo feitiço da cobra. Só escapou porque se apegou à imagem de Nossa Senhora e rezou forte. Foi por pouquinho que a cobra não o engoliu.
Tem horas do dia que o sol esquenta até a sombra da mangueira, melhor ficar como todo mundo, espiando o nascente, sentado no alpendre, sem perceber nada. Só os que pitam cachimbo esmorecem naquele espiar agudo, o sol sobre a areia e a salsa a perder de vista. O caminho estreito, como se esperasse por quem não ficou de vir. Sonolência danada.
Diz que nestas horas os caiporas descasam debaixo das moitas e não toleram que ninguém atrapalhe seu descanso. Deve ser por isto que todos se ensombreiam no alpendre, sem se mexer nem dar um pio. Só o olhar alongado que silencia no avistar sem fim.
A tarde corre ligeiro, e depressinha já anoitece. O sol descamba feito doido até se pôr por trás da casa. Diz que de manhã até meio dia quem conduz o sol é um senhor de idade, com muito cuidado e responsabilidade. É por isto que as horas se arrastam e as manhãs são longas. Do meio dia para a noite, é um garoto peralta que desanda a brincar, a correr e rapidinho chega ao seu destino.
À noite caminham sacis, estrelas cambiam e vozes e silêncios enchem o mundo de histórias. Diz que, ao se adormecer, outras tantas povoam também os sonhos. O Coaxar do sapo, o pio da coruja, o piscar do vaga-lume carecem de imaginação para encenar as suas.