segunda-feira, 23 de julho de 2012

AS BOLSAS DA MINHA MÃE


Estou saindo de uma balada agora, pintou sujeira. A polícia fez uma batida e desmobilizou tudo. Correria, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, e muita zoeira. Há horas caminho sem destino, tentando despistar quem possa estar-me seguindo. Não teria nada a temer se, na confusão, um colega não tivesse jogado na minha mochila um pacote que eu não sei exatamente o que seja, mas posso imaginar. Não me falou nada, só jogou na minha mochila e me mandou vazar. Eu nem parei pra pensar ou para contestar, afinal ele livrou a cara dele e me botou no sufoco.
Mas a minha preocupação não é nem a polícia. Nunca tive nada, estou limpo, então se for pego eu tenho como me safar. O que me preocupa mesmo é a minha mãe, ela tem horror a drogas e vive dando incertas nas minhas coisas em busca de algo. Quando tira o dia para dar uma geral nas minhas gavetas e roupas, verifica todos os bolsos de calças e camisas, revira a mochila pelo avesso e não deixa nenhuma gaveta sem ver. Ela sabe que eu não consumo drogas, que a educação que ela me deu não me permite este tipo de deslize, mas continua a dar bacorejo nas minhas coisas, vou fazer o quê?
Até mesmo as camisas que estão no cabide, recém passadas, outras que não visto há tempos, nada escapa de ser vasculhado minuciosamente. Diz que tem a maior confiança em mim, me orienta com carinho e me dispensa todos os cuidados de uma mãe dedicada, mas quando o assunto é droga, fica obsessiva, nervosa e, por vezes, até exaltada, o que é muito raro.
Eu não posso entocar o pacote porque algum curioso pode achar e eu vou ter que responder pela encomenda ao meu camarada. A única saída é levar para casa e dar um jeito de que minha mãe nem sonhe que eu estou com este tipo de mercadoria. Mas eu tenho que pensar em algo antes de chegar em casa. Por sorte, a minha mãe ainda deve estar com as amigas, mas não deve demorar a chegar.
Lembro agora que, quando eu era criança, algumas vezes tive que entocar doces na bolsa da minha mãe para que ela não encontrasse nas minhas gavetas ou na mochila. Nesta coisa de bolsa, minha mãe é muito igual a todas as mulheres que eu conheço: vai jogando um monte de bregueços na bolsa, uma bolsa enorme, e quando quer encontrar o batom, o celular ou uma caneta, ou mesmo a chave do carro, passa um tempão retirando tudo quanto o que é entulhou de dentro da bolsa até que encontre aquilo que procura.
Mas é ai que ela é diferente das outras mulheres, penso eu, porque ela não dá a menor bola para o que vai retirando. Ela foca no que está procurando e o que não for do seu interesse, ela não dá conta. Algumas vezes, enquanto eu torcia para que ela não percebesse os meus doces em sua bolsa, ela os ia jogando fora e nem ai. Depois que encontrava a chave do carro, por exemplo, botava tudo dentro da bolsa novamente, na mesma displicência.
Só, então, eu respirava aliviado.
E o mais interessante é que ela usa umas três ou quatro bolsas diferentes. Já aconteceu várias vezes de irmos ao médico, com hora marcada, e no momento de apresentar o cartão do convênio, ela descobrir que o esqueceu em outra bolsa. Não sei, até hoje, como ela organiza suas bolsas, se transfere de uma para outra os apetrechos que deseja conduzir a cada momento em que vai sair, ou se tem duplicados ou quadruplicados, tipo uma cópia para cada bolsa. O que eu sei é o que eu tenho visto: ela solta uma bolsa e pega outra, conforme a roupa, o cinto, sei lá, acho que associa coisas e cores que combinam.
 Bom, é ai mesmo que eu vou entocar a encomenda do Marquinhos. Só tenho que prestar atenção em qual das bolsas vou por o bagulho.

sábado, 14 de julho de 2012

O QUE VAI ACONTECER JÁ ACONTECEU


         
        Helena desperta e, no entanto, não vê com nitidez o que está ao seu redor. Tem a sensação de que é manhã, que acorda após uma noite de sono profundo. Estranha que esteja acordando num quarto excessivamente iluminado e, mais, que ocorram ali coisas estranhas. Contra a claridade do quarto, entrepassam vultos, pessoas que não consegue distinguir. Murmuram coisas incompreensíveis. Alguém mais próximo a chama pelo nome, pergunta se consegue ver algo que parece mostrar, como segurasse diante de si. Responde que não. Sente que se esforça para falar e, embora fale, não consegue ouvir a sua voz.
          Com a insistência de tentar enxergar, aos poucos as imagens vão-se definindo até que consegue identificar que os vultos de antes se tratam de pessoas com jalecos brancos, talvez enfermeiros, médicos. Agora, consegue ver que a pessoa que a interpela com questionamentos mostra dois dedos da mão e repete a mesma pergunta: “consegue ver isto?” Responde, então, que sim.
          As pessoas reagem com alegria à sua resposta. Compreende assim, que está numa ambiente hospitalar, talvez uma UTI. Assusta-se com esta possibilidade, sente uma forte sensação de medo. Dar-se conta de dores pelo corpo inteiro, mas não se recorda de nada naquele momento. Nem ninguém a informa dos motivos de estar ali. Também, aos poucos, vai-se sentindo entubada, respirando com o auxílio de equipamentos. Não tem mais dúvida, encontra-se numa UTI cercada de médicos e enfermeiros que, certamente, cuidam de si.
          Depois de algum tempo, busca lembrar o que teria acontecido. A primeira coisa que lhe vem á memória é a imagem de sua psicóloga perguntando se ela tem consciência da sua experiência de progressão de memória. Novamente a sensação de medo, de pavor mesmo. Em seguida, lhe vem à memória a imagem nítida de um carro surgindo à sua frente e, ato contínuo, seu esforço para evitar a batida. Deve ter sido isto, conclui. Um acidente de carro, uma batida.
          Questiona-se, então, o que teria a ver a imagem da psicóloga com a tal batida, já que há muito tempo não a via? A memória recupera algo do passado, de uma experiência de progressão de memória que fizera, mas num tempo já muito distante. Só agora entende onde entra a psicóloga na história, claro, tudo aquilo ela mesma havia visto, quando fizera a tal progressão de memória. Por essa experiência, teria deixado de utilizar determinadas avenidas da cidade porque seriam muito parecidas com o lugar em que se teria visto num acidente horrível, batendo o carro em outro, em alta velocidade. Recorda todos os detalhes do que vira e do que agora acontecera. As coisas começavam a se encaixar. Durante o tempo em que ficou sem passar pelos lugares que considerava de risco, muitas vezes se questionou se estaria certa em adotar tais cuidados, se tudo não passaria de autossugestão ou de crendice. Mesmo assim, a despeito de perder tempo ou de enfrentar percursos mais longos, manteve a decisão de evitar as tais avenidas.
Chora levemente quando recorda que antes da batida, tomara justo uma destas avenidas com o objetivo de encurtar caminho. Tinha que chegar ao seu trabalho com urgência porque houvera marcado uma reunião e estava atrasada. Sente-se culpada porque jamais poderia ter utilizado aquela avenida. No entanto, consola-se por entender que a sua escolha e a pressa de chegar ao compromisso no horário fizeram com que decidisse seguir por aquele roteiro, desapercebidamente. Em vista da pressa, esquecera por completo que evitava passar por ali, exatamente no cruzamento que mais temia.

sábado, 7 de julho de 2012

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS


          Em geral, eu não dava muita bola pra estas estórias de sonho. Interpretar sonhos me parecia meio sem sentido. Afinal, a visão que eu tinha dos sonhos era a de que eles se constituiriam de uma espécie de bricolagem com fragmentos da memória pessoal do cotidiano. Assim, participariam desde coisas que você teria ouvido nos últimos dias até os detalhes com que se teria preocupado, em passado remoto ou mesmo com algo do presente. Sei bem que até mesmo Freud fazia lá as suas análises considerando os sonhos como uma via real de acesso ao inconsciente. Na trilha de Freud e de outras orientações psicanalíticas, psicológicas ou, até mesmo, esotéricas, um número imenso de pessoas veem nos sonhos significações de diversas ordens. Aliás, é bom que se diga que mesmo antes de Freud os sonhos já eram interpretados sob o aspecto simbólico, como premonições ou como revelações advindas de anjos, santos além de outras fontes divinas. Mas, vá lá, não eu não dava muita bola.
          Só que recentemente me ocorreu um troço estranho. Imagine que por um destes motivos inexplicáveis, na semana passada eu sonhei que estava num show do Julio Iglesias. Eu nem curto este cantor. Mas, bom, sonhei isto. E cedinho, acordei naquele dia ouvindo conversas vindas de algum lugar da casa, falavam a respeito de Jesus, com ênfase em uma visada messiânica. A palavra messias foi várias vezes citada. Não sei porque e nem quem estava falando. Eu estava ainda com sono, não reconheci de quem eram as vozes e logo voltei a dormir.
          Porém, quando já estava à mesa do café, minha irmã, que vive procurando cartomantes, benzedeiras e outros amparos místicos, falou que alguém lhe dera informações de uma pessoa que realizava um trabalho de vidência como ninguém mais na cidade. E para que não tivéssemos nenhuma dúvida, relatou alguns casos referentes a pessoas que comprovaram a competência do tal vidente. Ao final, ao informar o endereço onde o vidente atende, eu estremeci. Por que, segundo ela disse, a tenda de atendimento desta pessoa seria na Rua Messias Iglesias. De imediato, me veio a lembrança do sonho com o show do Julio Iglesias e a conversa ouvida sobre o Messias. Quanto à conversa, já não sei ao certo se também não teria sido sonho, eu estava muito sonolento. Mas, na minha lembrança a conversa teria se dado de fato, eu a escutara quando por breve momento estive acordado naquele instante  da manhã.
          Ai eu achei que tinha por obrigação conhecer o tal vidente. Quem sabe isto não seria uma mensagem para mim, eu nem me dei conta que estava ingressando num terreno de crenças ao qual eu sempre tive sérias reservas. Mas decidi que tinha que procurá-lo, ver se havia uma explicação para além da coincidência. Procurei mais informações com a minha irmã e liguei antes para marcar um horário. Tudo organizado com cuidado absoluto.
          No dia marcado, tomei o ônibus e seguindo as referências que havia colhido, segui em busca do endereço. Não foi difícil encontrar a rua, mas o cuidado não foi tão rigoroso assim. Percebi que não havia anotado o número da casa e nem do telefone, apenas as características do imóvel. Liguei várias vezes para a minha irmã, mas o celular dela estava fora de área e ela não estava em casa.
          Sai observando cada casa e conferindo as características que havia anotado, todas muito parecidas. Ainda procurei me informar numa ou noutra, mas além de não ser a casa que eu procurava, não conheciam a pessoa. Fui descendo rua abaixo e à medida em que caminhava a esperança de localizar o endereço foi diminuindo.
          Quando já estava determinado a ir embora, ao cruzar com um senhor de roupas simples, alto, esguio e meio pálido, arrisquei pedir uma informação. Quando eu disse a quem eu estava procurando, o senhor sorriu e me disse com certa mansidão que era ele mesmo a pessoa a quem eu procurava. Disse que saíra de casa, mas deixara o recado que, caso eu chegasse por lá, era para eu esperar porque não demoraria a voltar.
          Eu senti que não estava ali por acaso.

domingo, 17 de junho de 2012

O AVESSO DO AVESSO



Sou sempre calmo, mas sempre prestes a explodir. Uma coisa que não tolero, por exemplo, é quem me fica trollando, como se me conhecesse e não sabe nada de mim. Não gosto de mimimi.
Outro dia, cheguei num barzinho para onde fui com a intenção de por o calor numa fria e, ao chegar lá, vi um grupo de amigos sentados em torno de uma mesa, no terraço. Lógico, fui cumprimentá-los na expectativa de entrar na conversa que, de longe, parecia animada, tipo oi, oi, oi.
No meio do povo estava lá um carinha muito metido, destes que sabem tudo, discute qualquer assunto com ar de professor. Mas, além disto, nada e nem ninguém, à exceção de si próprio, significa nada, tem qualquer valor. Foi me ver chegar e começar com suas trollagens. No começo, fiz de conta que não era comigo. Mas o troço foi ganhando corpo até que eu me irritei. Fui pra cima dele com os quatro pés. Os amigos evitaram o pior, não permitiram que fôssemos às vias de fato.
Ficamos ainda um bom tempo conversando e tirando onda com Deus e o mundo. O carinha, depois do acontecido, ficou meio amuado, de cara amarrada, aqui e acolá soltava suas pérolas. Quando metia o bedelho na conversa, surgiam olhares atravessados entre as gentes na mesa, mas de passagem. Logo se impunha a alegria à mesa. Ele ficou meio que isolado, com cara de anteontem.
Algum conhecido que passava na rua virava assunto, motivo de piadas e comentários, coisa amena e inocente, nada que depreciasse ou desmerecesse ninguém. Era só para não perder a oportunidade de recuperar as coisas que se contam a respeito de alguém ou as lembranças de experiências comuns. Sabe como é, numa mesa de bar, até velório é motivo de riso e o que se quer mesmo é alegria.
De repente, a bebida começa a fazer efeito e a cara de meme alegre do gozador da mesa volta a se empolgar, apresentando-se em memes diferentes, Do gozador a bêbado total, passando por bobo, sem noção e sem graça. A pose do carinha #fail.
Mas não foi só ele quem acessou o estágio de embriaguez total. Em cada um e vi a face da fragilidade, do riso descontrolado, da língua embolada, do falar sem nexo, em fim, da inconsciência e da inconsistência.
Eu nem tive tempo de beber nada, mantive-me sóbrio e a despeito da situação, também não me senti à vontade para interpretar todas as informações que chegavam para mim, aos borbotões.
Sai de lá quando todos já haviam tomado o caminho de casa, mas, apesar do adiantado da hora, aquela mesa foi remontada e desdobrada instantes depois, com a adesão de novos participantes, no Twitter e no Face.

domingo, 27 de maio de 2012

PRIMEIRA PÁGINA



          A tarde esmaece ante a noite próxima. A sala da redação concentra a atenção de todos na tarefa de fechar o jornal. O ruído da porta do editor chefe rompe os sussurros dos teclados. Ouvimos o chefe advertir ao repórter de saída: “cuidado para não dar manchete”. Olhamos uns para os outros sem entendermos bulhufas. Cada repórter ali está empenhado em que a sua matéria dê manchete. Esta é uma disputa permanente e com histórias de glórias e de mágoas infindáveis. Todos os dias novas guerras são declaradas ante a realização possível do sonho de cada um de que a sua matéria vá para a primeira página, mais do que isto, seja a manchete do dia.
          Por outro lado, certamente entendemos que a expressão pode muito bem significar, simplesmente uma advertência para que o dito repórter não deixe que algo que deve ser preservado chame a atenção de outras pessoas, talvez pela necessidade de algum sigilo. Como se devesse ter guardar segredo sobre tal coisa. Mesmo assim, só teria sentido se fosse um assunto particular, muito pessoal. Mas se fosse assim, o chefe ao menos deveria ter dito sito enquanto a porta estava fechada e em voz baixa.
          Se deixou a porta abrir para berrar tal advertência, fica claro que não era seu interesse guardar sigilo. Ou seja, o chefe “deu manchete”, enquanto advertia ao colega sobre ter cuidado para não dar manchete. O danado agora é deslindar os sentidos do que foi gritado num cenário tão impróprio, aparentemente.
          No trabalho de diagramar a primeira página, definidas quais matérias farão parte, terão chamada, o interesse se fixa no equilíbrio dos espaços textuais com as imagens e a manchete. O desenho da página deve fortalecer a identidade gráfica do jornal e, por isto mesmo, ser agradável ao leitor. Deve atender as suas expectativas e, além disto, conquistar o interesse de novos leitores.
          É nesta tarefa que me empenho enquanto observo os movimentos do repórter que acaba de sair da sala do chefe. Ele parece um pouco nervoso, olha para os lados com desconfiança. Retorna a sua mesa e fica a abrir e fechar as gavetas, sem se sentar. Num dado momento, escora as mãos sobre a mesa e baixa a cabeça por entre os ombros como se estivesse exausto. Fica assim por um longo tempo.
          Apanha algo em sua bolsa e retorna a sala da chefia. Pelos gestos, presumo que discute com o chefe. Ele se mantém de pé enquanto o chefe, aparentando calma, permanece sentado. A cena se prolonga, mas não se escuta voz alterada, embora o colega pareça extremamente nervoso.
          Enquanto os colegas finalizam os seus textos e passam pela sala da chefia e, em seguida, por mesa para indicar um arquivo ou comentar um ou outro detalhe no título, no desenho do texto ou mesmo na escolha das fotos que haverão de acompanhar as matérias, vai-se definindo a primeira página. Resta o espaço da matéria do repórter que ainda discute com o editor.
          No dia seguinte, ao chegar a redação, soube que o repórter e o editor chefe haviam deixado o jornal. 

domingo, 29 de abril de 2012

O PEDIDO



Esta semana eu fiquei muito invocado. Vou te dizer, acontece cada coisa na vida da gente, tem cada uma! Imagine que eu fui a uma lanchonete com a maior vontade de comer um sanduba daqueles e tomar um suco de laranja geladíssimo. Pois bem, sento lá e chamo a moça que está atendendo. Ela faz sinal pra eu esperar e fica no mesmo lugar, olhando para o teto como se rezasse.
Enquanto aguardo que ela me atenda, fico tentando me situar naquele lugar, é a primeira vez que eu entro nesta lanchonete. Estou aqui perto fazendo um trabalho já faz algum tempo, mas nunca havia entrado nesta lanchonete. Olho para o interior do salão e me detenho numa pessoa que está fazendo um suco, um rapaz que usa um liquidificador. O olhar dele parece distante, não está ligado no que faz.
Vou passeando o olhar e, em meio a mesas e cadeiras vazias, um garoto me observa com atenção. Sorrio, mas ele não pisca o olho. Aceno, chamando-o para a mesa onde estou, ele não se mexe.  Deixo o garoto, e volto-me para a atendente, ela permanece olhando para o teto e também não vem me atender. Levanto-me e vou em sua direção, mas ao perceber os meus movimentos, ela dirige-se para trás do balcão. Até ai, não me abalo, encosto no balcão e pergunto se ela pode atender.
O cara continua com o liquidificador ligado e com o olhar direcionado para a porta aberta adiante, sem se mover. Por curiosidade, olho para onde havia visto o garoto me observando, ele permanece no mesmo lugar e olhando fixamente para mim. Começo a ficar preocupado, achando tudo aquilo muito estranho. Lá fora, o movimento das pessoas, dos carros e dos galhos das árvores dá o tom de normalidade, dentro da lanchonete é a inércia das pessoas que produz a sensação de que ali tem algo errado.
A garota, agora por trás do balcão, olha para mim com ar de curiosidade e não fala nada e nem se mexe. Com certo cuidado, pergunto novamente se ela pode me atender. Ao perceber que sua expressão não se altera, que aquela situação está me incomodando, dirijo-me à porta de saída. Já fora, da lanchonete, vejo a garota que antes estava por trás do balcão, de pé, parada diante de uma mesa e segurando uma bandeja com um sanduiche enorme e um suco de laranja.
Penso que foi a fome que me empurrou em direção a tal mesa. Quando a garota me vê chegando, abre um sorriso e comenta que havia pensado que eu teria ido embora. Pergunta se acaso custou a trazer o pedido, ao que eu respondo com um não meio sem jeito.
Na mesa ao lado está o garoto que antes me encarava, tomando um suco que, pela cor, deve ser de acerola. Lembro do cara que tinha o olhar fixo e distante enquanto preparava o suco no liquidificador. Após terminar de comer o sanduba, por via das dúvidas, retorno ao interior da lanchonete e a cena permanece inalterada: a moça por trás do balcão olha-me com ar de curiosidade, o garoto de pé por entre as mesas se mantém sério a me olhar, enquanto o liquidificador funciona com um ruído forte, o rapaz continua parado olhando para fora da lanchonete.

domingo, 1 de abril de 2012

A GENTE SÓ QUER VIVER



       A notícia do falecimento de Dona Maroquinha correu a família num tom de grande surpresa e desalento. Embora já passasse dos seus 80 anos, era saudável, lúcida e ativa. Os filhos, em profundo pesar, mobilizam-se para dar ao sepultamento o caráter de uma homenagem e, para isto, fazem contato com todos os parentes, amigos e a vizinhança inteira. Grande número de pessoas se faz presente ao cortejo. No percurso até o cemitério, orações são puxadas pelo grupo de filhos que vão adiante, mais próximos ao caixão, e repercutem na multidão como uma onda, até que alcance as últimas e mais distantes pessoas. Assim, tudo ocorre de modo a que cada um dos filhos tenha alguma certeza de que Dona Maroquinha teve um enterro como merecia.
        Uma semana depois de Dona Maroquinha sepultada , morre Cesária, a filha mais nova. Recomeçam os choros, as lamentações e, acima de tudo, a preocupação em convidar a quantos estiveram no enterro da mãe para prestigiar o da filha. No entanto, poucas pessoas compareceram. Comentavam-se que Cesária não tinha o mesmo carisma da mãe. Alguns até chegavam mesmo a fazer referência a uma certa antipatia. De qualquer modo, foi conduzido o corpo a sepultura com a presença dos poucos que compareceram.
      Quinze dias passados, vem a falecer Tertuliana, outra filha de Dona Maroquinha. Um certo cansaço já transparece na família. Nem bem havia sepultado  Cesária e realizado as cerimônias pelo falecimento da mãe e da irmã, e agora é abalada pela perda de outra irmã... Mas, o que não tem remédio, remediado está, repetiam na tentativa de superar perdas tão próximas. Foram tomadas as providências para o enterro, como das outras vezes, tentando diminuir a tristeza pela presença do maior número de pessoas ao velório e ao enterro. Desta vez, até que havia uma certa comoção, um sentimento de solidariedade a família e o comparecimento correspondeu em número de presentes e no fervor dos cantos e orações.
         Mais uma semana e morre Estevão, único homem da família de 12 irmãos. Os choros e lamentações são muito mais desesperadores. Ninguém parece se conformar, as perdas anteriores não estão ainda superadas, os sentimentos parecem estar acumulados e vem à tona mais intensos com a morte de Estevão. Desta vez, a família pede ajuda aos amigos para que cuidem das cerimônias de velório e sepultamento, não há mais disposição possível entre os irmãos para repetirem tudo novamente.
       É um enterro simples, sem muita gente mas, de grande emoção dado o estado visível de instabilidade emocional dos membros da família, especialmente, as irmãs restantes. Logo após a missa de sétimo dia, Carmelita chamou as outras irmãs para uma reunião em sua casa, dali a três dias, conforme a disponibilidade de cada um. Na data marcada, logo cedo, começam a chegar as irmãs para a reunião na casa de Carmelita. Antes das dez horas da manhã, todas estão presentes.
         São servidos uns doces e salgados enquanto aguardam que Carmelita inicie a sua fala, que ela explique quais motivos a levou a convocar a reunião. Carmelita, finalmente, aquieta-se e toma assento no sofá da sala de visitas, diante das outras que a aguardam ansiosas. Com um semblante um tanto compungido, olha para Ismênia, a irmã mais velha na sala e em voz imperativa, começa a falar. Diz ela — Ismênia, você precisa pedir a nossa mãe que pare com isto, depois que ela se foi já levou para junto dela três de nós. Diga pra ela que ainda temos muito o que fazer por aqui, temos nossa família, nossos filhos e nossas obrigações para cuidar. Não queremos ir agora para onde ela está.