segunda-feira, 23 de julho de 2012

AS BOLSAS DA MINHA MÃE


Estou saindo de uma balada agora, pintou sujeira. A polícia fez uma batida e desmobilizou tudo. Correria, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, e muita zoeira. Há horas caminho sem destino, tentando despistar quem possa estar-me seguindo. Não teria nada a temer se, na confusão, um colega não tivesse jogado na minha mochila um pacote que eu não sei exatamente o que seja, mas posso imaginar. Não me falou nada, só jogou na minha mochila e me mandou vazar. Eu nem parei pra pensar ou para contestar, afinal ele livrou a cara dele e me botou no sufoco.
Mas a minha preocupação não é nem a polícia. Nunca tive nada, estou limpo, então se for pego eu tenho como me safar. O que me preocupa mesmo é a minha mãe, ela tem horror a drogas e vive dando incertas nas minhas coisas em busca de algo. Quando tira o dia para dar uma geral nas minhas gavetas e roupas, verifica todos os bolsos de calças e camisas, revira a mochila pelo avesso e não deixa nenhuma gaveta sem ver. Ela sabe que eu não consumo drogas, que a educação que ela me deu não me permite este tipo de deslize, mas continua a dar bacorejo nas minhas coisas, vou fazer o quê?
Até mesmo as camisas que estão no cabide, recém passadas, outras que não visto há tempos, nada escapa de ser vasculhado minuciosamente. Diz que tem a maior confiança em mim, me orienta com carinho e me dispensa todos os cuidados de uma mãe dedicada, mas quando o assunto é droga, fica obsessiva, nervosa e, por vezes, até exaltada, o que é muito raro.
Eu não posso entocar o pacote porque algum curioso pode achar e eu vou ter que responder pela encomenda ao meu camarada. A única saída é levar para casa e dar um jeito de que minha mãe nem sonhe que eu estou com este tipo de mercadoria. Mas eu tenho que pensar em algo antes de chegar em casa. Por sorte, a minha mãe ainda deve estar com as amigas, mas não deve demorar a chegar.
Lembro agora que, quando eu era criança, algumas vezes tive que entocar doces na bolsa da minha mãe para que ela não encontrasse nas minhas gavetas ou na mochila. Nesta coisa de bolsa, minha mãe é muito igual a todas as mulheres que eu conheço: vai jogando um monte de bregueços na bolsa, uma bolsa enorme, e quando quer encontrar o batom, o celular ou uma caneta, ou mesmo a chave do carro, passa um tempão retirando tudo quanto o que é entulhou de dentro da bolsa até que encontre aquilo que procura.
Mas é ai que ela é diferente das outras mulheres, penso eu, porque ela não dá a menor bola para o que vai retirando. Ela foca no que está procurando e o que não for do seu interesse, ela não dá conta. Algumas vezes, enquanto eu torcia para que ela não percebesse os meus doces em sua bolsa, ela os ia jogando fora e nem ai. Depois que encontrava a chave do carro, por exemplo, botava tudo dentro da bolsa novamente, na mesma displicência.
Só, então, eu respirava aliviado.
E o mais interessante é que ela usa umas três ou quatro bolsas diferentes. Já aconteceu várias vezes de irmos ao médico, com hora marcada, e no momento de apresentar o cartão do convênio, ela descobrir que o esqueceu em outra bolsa. Não sei, até hoje, como ela organiza suas bolsas, se transfere de uma para outra os apetrechos que deseja conduzir a cada momento em que vai sair, ou se tem duplicados ou quadruplicados, tipo uma cópia para cada bolsa. O que eu sei é o que eu tenho visto: ela solta uma bolsa e pega outra, conforme a roupa, o cinto, sei lá, acho que associa coisas e cores que combinam.
 Bom, é ai mesmo que eu vou entocar a encomenda do Marquinhos. Só tenho que prestar atenção em qual das bolsas vou por o bagulho.

sábado, 14 de julho de 2012

O QUE VAI ACONTECER JÁ ACONTECEU


         
        Helena desperta e, no entanto, não vê com nitidez o que está ao seu redor. Tem a sensação de que é manhã, que acorda após uma noite de sono profundo. Estranha que esteja acordando num quarto excessivamente iluminado e, mais, que ocorram ali coisas estranhas. Contra a claridade do quarto, entrepassam vultos, pessoas que não consegue distinguir. Murmuram coisas incompreensíveis. Alguém mais próximo a chama pelo nome, pergunta se consegue ver algo que parece mostrar, como segurasse diante de si. Responde que não. Sente que se esforça para falar e, embora fale, não consegue ouvir a sua voz.
          Com a insistência de tentar enxergar, aos poucos as imagens vão-se definindo até que consegue identificar que os vultos de antes se tratam de pessoas com jalecos brancos, talvez enfermeiros, médicos. Agora, consegue ver que a pessoa que a interpela com questionamentos mostra dois dedos da mão e repete a mesma pergunta: “consegue ver isto?” Responde, então, que sim.
          As pessoas reagem com alegria à sua resposta. Compreende assim, que está numa ambiente hospitalar, talvez uma UTI. Assusta-se com esta possibilidade, sente uma forte sensação de medo. Dar-se conta de dores pelo corpo inteiro, mas não se recorda de nada naquele momento. Nem ninguém a informa dos motivos de estar ali. Também, aos poucos, vai-se sentindo entubada, respirando com o auxílio de equipamentos. Não tem mais dúvida, encontra-se numa UTI cercada de médicos e enfermeiros que, certamente, cuidam de si.
          Depois de algum tempo, busca lembrar o que teria acontecido. A primeira coisa que lhe vem á memória é a imagem de sua psicóloga perguntando se ela tem consciência da sua experiência de progressão de memória. Novamente a sensação de medo, de pavor mesmo. Em seguida, lhe vem à memória a imagem nítida de um carro surgindo à sua frente e, ato contínuo, seu esforço para evitar a batida. Deve ter sido isto, conclui. Um acidente de carro, uma batida.
          Questiona-se, então, o que teria a ver a imagem da psicóloga com a tal batida, já que há muito tempo não a via? A memória recupera algo do passado, de uma experiência de progressão de memória que fizera, mas num tempo já muito distante. Só agora entende onde entra a psicóloga na história, claro, tudo aquilo ela mesma havia visto, quando fizera a tal progressão de memória. Por essa experiência, teria deixado de utilizar determinadas avenidas da cidade porque seriam muito parecidas com o lugar em que se teria visto num acidente horrível, batendo o carro em outro, em alta velocidade. Recorda todos os detalhes do que vira e do que agora acontecera. As coisas começavam a se encaixar. Durante o tempo em que ficou sem passar pelos lugares que considerava de risco, muitas vezes se questionou se estaria certa em adotar tais cuidados, se tudo não passaria de autossugestão ou de crendice. Mesmo assim, a despeito de perder tempo ou de enfrentar percursos mais longos, manteve a decisão de evitar as tais avenidas.
Chora levemente quando recorda que antes da batida, tomara justo uma destas avenidas com o objetivo de encurtar caminho. Tinha que chegar ao seu trabalho com urgência porque houvera marcado uma reunião e estava atrasada. Sente-se culpada porque jamais poderia ter utilizado aquela avenida. No entanto, consola-se por entender que a sua escolha e a pressa de chegar ao compromisso no horário fizeram com que decidisse seguir por aquele roteiro, desapercebidamente. Em vista da pressa, esquecera por completo que evitava passar por ali, exatamente no cruzamento que mais temia.

sábado, 7 de julho de 2012

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS


          Em geral, eu não dava muita bola pra estas estórias de sonho. Interpretar sonhos me parecia meio sem sentido. Afinal, a visão que eu tinha dos sonhos era a de que eles se constituiriam de uma espécie de bricolagem com fragmentos da memória pessoal do cotidiano. Assim, participariam desde coisas que você teria ouvido nos últimos dias até os detalhes com que se teria preocupado, em passado remoto ou mesmo com algo do presente. Sei bem que até mesmo Freud fazia lá as suas análises considerando os sonhos como uma via real de acesso ao inconsciente. Na trilha de Freud e de outras orientações psicanalíticas, psicológicas ou, até mesmo, esotéricas, um número imenso de pessoas veem nos sonhos significações de diversas ordens. Aliás, é bom que se diga que mesmo antes de Freud os sonhos já eram interpretados sob o aspecto simbólico, como premonições ou como revelações advindas de anjos, santos além de outras fontes divinas. Mas, vá lá, não eu não dava muita bola.
          Só que recentemente me ocorreu um troço estranho. Imagine que por um destes motivos inexplicáveis, na semana passada eu sonhei que estava num show do Julio Iglesias. Eu nem curto este cantor. Mas, bom, sonhei isto. E cedinho, acordei naquele dia ouvindo conversas vindas de algum lugar da casa, falavam a respeito de Jesus, com ênfase em uma visada messiânica. A palavra messias foi várias vezes citada. Não sei porque e nem quem estava falando. Eu estava ainda com sono, não reconheci de quem eram as vozes e logo voltei a dormir.
          Porém, quando já estava à mesa do café, minha irmã, que vive procurando cartomantes, benzedeiras e outros amparos místicos, falou que alguém lhe dera informações de uma pessoa que realizava um trabalho de vidência como ninguém mais na cidade. E para que não tivéssemos nenhuma dúvida, relatou alguns casos referentes a pessoas que comprovaram a competência do tal vidente. Ao final, ao informar o endereço onde o vidente atende, eu estremeci. Por que, segundo ela disse, a tenda de atendimento desta pessoa seria na Rua Messias Iglesias. De imediato, me veio a lembrança do sonho com o show do Julio Iglesias e a conversa ouvida sobre o Messias. Quanto à conversa, já não sei ao certo se também não teria sido sonho, eu estava muito sonolento. Mas, na minha lembrança a conversa teria se dado de fato, eu a escutara quando por breve momento estive acordado naquele instante  da manhã.
          Ai eu achei que tinha por obrigação conhecer o tal vidente. Quem sabe isto não seria uma mensagem para mim, eu nem me dei conta que estava ingressando num terreno de crenças ao qual eu sempre tive sérias reservas. Mas decidi que tinha que procurá-lo, ver se havia uma explicação para além da coincidência. Procurei mais informações com a minha irmã e liguei antes para marcar um horário. Tudo organizado com cuidado absoluto.
          No dia marcado, tomei o ônibus e seguindo as referências que havia colhido, segui em busca do endereço. Não foi difícil encontrar a rua, mas o cuidado não foi tão rigoroso assim. Percebi que não havia anotado o número da casa e nem do telefone, apenas as características do imóvel. Liguei várias vezes para a minha irmã, mas o celular dela estava fora de área e ela não estava em casa.
          Sai observando cada casa e conferindo as características que havia anotado, todas muito parecidas. Ainda procurei me informar numa ou noutra, mas além de não ser a casa que eu procurava, não conheciam a pessoa. Fui descendo rua abaixo e à medida em que caminhava a esperança de localizar o endereço foi diminuindo.
          Quando já estava determinado a ir embora, ao cruzar com um senhor de roupas simples, alto, esguio e meio pálido, arrisquei pedir uma informação. Quando eu disse a quem eu estava procurando, o senhor sorriu e me disse com certa mansidão que era ele mesmo a pessoa a quem eu procurava. Disse que saíra de casa, mas deixara o recado que, caso eu chegasse por lá, era para eu esperar porque não demoraria a voltar.
          Eu senti que não estava ali por acaso.

domingo, 17 de junho de 2012

O AVESSO DO AVESSO



Sou sempre calmo, mas sempre prestes a explodir. Uma coisa que não tolero, por exemplo, é quem me fica trollando, como se me conhecesse e não sabe nada de mim. Não gosto de mimimi.
Outro dia, cheguei num barzinho para onde fui com a intenção de por o calor numa fria e, ao chegar lá, vi um grupo de amigos sentados em torno de uma mesa, no terraço. Lógico, fui cumprimentá-los na expectativa de entrar na conversa que, de longe, parecia animada, tipo oi, oi, oi.
No meio do povo estava lá um carinha muito metido, destes que sabem tudo, discute qualquer assunto com ar de professor. Mas, além disto, nada e nem ninguém, à exceção de si próprio, significa nada, tem qualquer valor. Foi me ver chegar e começar com suas trollagens. No começo, fiz de conta que não era comigo. Mas o troço foi ganhando corpo até que eu me irritei. Fui pra cima dele com os quatro pés. Os amigos evitaram o pior, não permitiram que fôssemos às vias de fato.
Ficamos ainda um bom tempo conversando e tirando onda com Deus e o mundo. O carinha, depois do acontecido, ficou meio amuado, de cara amarrada, aqui e acolá soltava suas pérolas. Quando metia o bedelho na conversa, surgiam olhares atravessados entre as gentes na mesa, mas de passagem. Logo se impunha a alegria à mesa. Ele ficou meio que isolado, com cara de anteontem.
Algum conhecido que passava na rua virava assunto, motivo de piadas e comentários, coisa amena e inocente, nada que depreciasse ou desmerecesse ninguém. Era só para não perder a oportunidade de recuperar as coisas que se contam a respeito de alguém ou as lembranças de experiências comuns. Sabe como é, numa mesa de bar, até velório é motivo de riso e o que se quer mesmo é alegria.
De repente, a bebida começa a fazer efeito e a cara de meme alegre do gozador da mesa volta a se empolgar, apresentando-se em memes diferentes, Do gozador a bêbado total, passando por bobo, sem noção e sem graça. A pose do carinha #fail.
Mas não foi só ele quem acessou o estágio de embriaguez total. Em cada um e vi a face da fragilidade, do riso descontrolado, da língua embolada, do falar sem nexo, em fim, da inconsciência e da inconsistência.
Eu nem tive tempo de beber nada, mantive-me sóbrio e a despeito da situação, também não me senti à vontade para interpretar todas as informações que chegavam para mim, aos borbotões.
Sai de lá quando todos já haviam tomado o caminho de casa, mas, apesar do adiantado da hora, aquela mesa foi remontada e desdobrada instantes depois, com a adesão de novos participantes, no Twitter e no Face.

domingo, 27 de maio de 2012

PRIMEIRA PÁGINA



          A tarde esmaece ante a noite próxima. A sala da redação concentra a atenção de todos na tarefa de fechar o jornal. O ruído da porta do editor chefe rompe os sussurros dos teclados. Ouvimos o chefe advertir ao repórter de saída: “cuidado para não dar manchete”. Olhamos uns para os outros sem entendermos bulhufas. Cada repórter ali está empenhado em que a sua matéria dê manchete. Esta é uma disputa permanente e com histórias de glórias e de mágoas infindáveis. Todos os dias novas guerras são declaradas ante a realização possível do sonho de cada um de que a sua matéria vá para a primeira página, mais do que isto, seja a manchete do dia.
          Por outro lado, certamente entendemos que a expressão pode muito bem significar, simplesmente uma advertência para que o dito repórter não deixe que algo que deve ser preservado chame a atenção de outras pessoas, talvez pela necessidade de algum sigilo. Como se devesse ter guardar segredo sobre tal coisa. Mesmo assim, só teria sentido se fosse um assunto particular, muito pessoal. Mas se fosse assim, o chefe ao menos deveria ter dito sito enquanto a porta estava fechada e em voz baixa.
          Se deixou a porta abrir para berrar tal advertência, fica claro que não era seu interesse guardar sigilo. Ou seja, o chefe “deu manchete”, enquanto advertia ao colega sobre ter cuidado para não dar manchete. O danado agora é deslindar os sentidos do que foi gritado num cenário tão impróprio, aparentemente.
          No trabalho de diagramar a primeira página, definidas quais matérias farão parte, terão chamada, o interesse se fixa no equilíbrio dos espaços textuais com as imagens e a manchete. O desenho da página deve fortalecer a identidade gráfica do jornal e, por isto mesmo, ser agradável ao leitor. Deve atender as suas expectativas e, além disto, conquistar o interesse de novos leitores.
          É nesta tarefa que me empenho enquanto observo os movimentos do repórter que acaba de sair da sala do chefe. Ele parece um pouco nervoso, olha para os lados com desconfiança. Retorna a sua mesa e fica a abrir e fechar as gavetas, sem se sentar. Num dado momento, escora as mãos sobre a mesa e baixa a cabeça por entre os ombros como se estivesse exausto. Fica assim por um longo tempo.
          Apanha algo em sua bolsa e retorna a sala da chefia. Pelos gestos, presumo que discute com o chefe. Ele se mantém de pé enquanto o chefe, aparentando calma, permanece sentado. A cena se prolonga, mas não se escuta voz alterada, embora o colega pareça extremamente nervoso.
          Enquanto os colegas finalizam os seus textos e passam pela sala da chefia e, em seguida, por mesa para indicar um arquivo ou comentar um ou outro detalhe no título, no desenho do texto ou mesmo na escolha das fotos que haverão de acompanhar as matérias, vai-se definindo a primeira página. Resta o espaço da matéria do repórter que ainda discute com o editor.
          No dia seguinte, ao chegar a redação, soube que o repórter e o editor chefe haviam deixado o jornal. 

domingo, 29 de abril de 2012

O PEDIDO



Esta semana eu fiquei muito invocado. Vou te dizer, acontece cada coisa na vida da gente, tem cada uma! Imagine que eu fui a uma lanchonete com a maior vontade de comer um sanduba daqueles e tomar um suco de laranja geladíssimo. Pois bem, sento lá e chamo a moça que está atendendo. Ela faz sinal pra eu esperar e fica no mesmo lugar, olhando para o teto como se rezasse.
Enquanto aguardo que ela me atenda, fico tentando me situar naquele lugar, é a primeira vez que eu entro nesta lanchonete. Estou aqui perto fazendo um trabalho já faz algum tempo, mas nunca havia entrado nesta lanchonete. Olho para o interior do salão e me detenho numa pessoa que está fazendo um suco, um rapaz que usa um liquidificador. O olhar dele parece distante, não está ligado no que faz.
Vou passeando o olhar e, em meio a mesas e cadeiras vazias, um garoto me observa com atenção. Sorrio, mas ele não pisca o olho. Aceno, chamando-o para a mesa onde estou, ele não se mexe.  Deixo o garoto, e volto-me para a atendente, ela permanece olhando para o teto e também não vem me atender. Levanto-me e vou em sua direção, mas ao perceber os meus movimentos, ela dirige-se para trás do balcão. Até ai, não me abalo, encosto no balcão e pergunto se ela pode atender.
O cara continua com o liquidificador ligado e com o olhar direcionado para a porta aberta adiante, sem se mover. Por curiosidade, olho para onde havia visto o garoto me observando, ele permanece no mesmo lugar e olhando fixamente para mim. Começo a ficar preocupado, achando tudo aquilo muito estranho. Lá fora, o movimento das pessoas, dos carros e dos galhos das árvores dá o tom de normalidade, dentro da lanchonete é a inércia das pessoas que produz a sensação de que ali tem algo errado.
A garota, agora por trás do balcão, olha para mim com ar de curiosidade e não fala nada e nem se mexe. Com certo cuidado, pergunto novamente se ela pode me atender. Ao perceber que sua expressão não se altera, que aquela situação está me incomodando, dirijo-me à porta de saída. Já fora, da lanchonete, vejo a garota que antes estava por trás do balcão, de pé, parada diante de uma mesa e segurando uma bandeja com um sanduiche enorme e um suco de laranja.
Penso que foi a fome que me empurrou em direção a tal mesa. Quando a garota me vê chegando, abre um sorriso e comenta que havia pensado que eu teria ido embora. Pergunta se acaso custou a trazer o pedido, ao que eu respondo com um não meio sem jeito.
Na mesa ao lado está o garoto que antes me encarava, tomando um suco que, pela cor, deve ser de acerola. Lembro do cara que tinha o olhar fixo e distante enquanto preparava o suco no liquidificador. Após terminar de comer o sanduba, por via das dúvidas, retorno ao interior da lanchonete e a cena permanece inalterada: a moça por trás do balcão olha-me com ar de curiosidade, o garoto de pé por entre as mesas se mantém sério a me olhar, enquanto o liquidificador funciona com um ruído forte, o rapaz continua parado olhando para fora da lanchonete.

domingo, 1 de abril de 2012

A GENTE SÓ QUER VIVER



       A notícia do falecimento de Dona Maroquinha correu a família num tom de grande surpresa e desalento. Embora já passasse dos seus 80 anos, era saudável, lúcida e ativa. Os filhos, em profundo pesar, mobilizam-se para dar ao sepultamento o caráter de uma homenagem e, para isto, fazem contato com todos os parentes, amigos e a vizinhança inteira. Grande número de pessoas se faz presente ao cortejo. No percurso até o cemitério, orações são puxadas pelo grupo de filhos que vão adiante, mais próximos ao caixão, e repercutem na multidão como uma onda, até que alcance as últimas e mais distantes pessoas. Assim, tudo ocorre de modo a que cada um dos filhos tenha alguma certeza de que Dona Maroquinha teve um enterro como merecia.
        Uma semana depois de Dona Maroquinha sepultada , morre Cesária, a filha mais nova. Recomeçam os choros, as lamentações e, acima de tudo, a preocupação em convidar a quantos estiveram no enterro da mãe para prestigiar o da filha. No entanto, poucas pessoas compareceram. Comentavam-se que Cesária não tinha o mesmo carisma da mãe. Alguns até chegavam mesmo a fazer referência a uma certa antipatia. De qualquer modo, foi conduzido o corpo a sepultura com a presença dos poucos que compareceram.
      Quinze dias passados, vem a falecer Tertuliana, outra filha de Dona Maroquinha. Um certo cansaço já transparece na família. Nem bem havia sepultado  Cesária e realizado as cerimônias pelo falecimento da mãe e da irmã, e agora é abalada pela perda de outra irmã... Mas, o que não tem remédio, remediado está, repetiam na tentativa de superar perdas tão próximas. Foram tomadas as providências para o enterro, como das outras vezes, tentando diminuir a tristeza pela presença do maior número de pessoas ao velório e ao enterro. Desta vez, até que havia uma certa comoção, um sentimento de solidariedade a família e o comparecimento correspondeu em número de presentes e no fervor dos cantos e orações.
         Mais uma semana e morre Estevão, único homem da família de 12 irmãos. Os choros e lamentações são muito mais desesperadores. Ninguém parece se conformar, as perdas anteriores não estão ainda superadas, os sentimentos parecem estar acumulados e vem à tona mais intensos com a morte de Estevão. Desta vez, a família pede ajuda aos amigos para que cuidem das cerimônias de velório e sepultamento, não há mais disposição possível entre os irmãos para repetirem tudo novamente.
       É um enterro simples, sem muita gente mas, de grande emoção dado o estado visível de instabilidade emocional dos membros da família, especialmente, as irmãs restantes. Logo após a missa de sétimo dia, Carmelita chamou as outras irmãs para uma reunião em sua casa, dali a três dias, conforme a disponibilidade de cada um. Na data marcada, logo cedo, começam a chegar as irmãs para a reunião na casa de Carmelita. Antes das dez horas da manhã, todas estão presentes.
         São servidos uns doces e salgados enquanto aguardam que Carmelita inicie a sua fala, que ela explique quais motivos a levou a convocar a reunião. Carmelita, finalmente, aquieta-se e toma assento no sofá da sala de visitas, diante das outras que a aguardam ansiosas. Com um semblante um tanto compungido, olha para Ismênia, a irmã mais velha na sala e em voz imperativa, começa a falar. Diz ela — Ismênia, você precisa pedir a nossa mãe que pare com isto, depois que ela se foi já levou para junto dela três de nós. Diga pra ela que ainda temos muito o que fazer por aqui, temos nossa família, nossos filhos e nossas obrigações para cuidar. Não queremos ir agora para onde ela está.

domingo, 4 de março de 2012

A FESTA DE CADA UM



O marido, aflito e ansioso, não vê a hora de toda aquela gente dispersar, sair de cima de sua cama. O cansaço e o sono tomam conta do corpo que, aos poucos, vai-se deixando abandonar em um pequeno espaço do quarto, enquanto as vozes vão-se distanciando. Embora tente resistir, as resistências diminuem lentamente. Depois de algum tempo, dorme.
A esposa, ali junto, resiste por mais tempo, mas também, acaba por dormir. Indiferente ao cansaço e ao sono do casal sucedem-se as intervenções dos familiares. Alguém vai à geladeira e descobre as bebidas. Por iniciativa própria, começa a servir os presentes. Outra pessoa vai à cozinha e prepara uns petiscos para acompanhar a bebida.
Logo, surgem as rodas de conversa, grupos diversos se formam por afinidades diferentes: parentesco, interesse por determinados assuntos, por interesse uns pelos outros etc. Enquanto alguém toma a palavra, o restante participa desta nova configuração do público. Há grupos de amigos, de parentes, de torcedores deste ou daquele time, de partidários políticos, de fiéis desta ou daquela igreja, de jovens, de sexagenários etc. etc. Os assuntos são os mais variados, vão desde comentários acerca da festa de casamento, passando pelo vestido da noiva, até as oportunidades de investimento no mercado financeiro.
Percebem-se movimentos de migração de pessoas entre os grupos, de tal modo que um grande grupo aos poucos se esvazia e outros se formam ou se ampliam. Dali surgem amizades e novos casais. Ninguém presta atenção em quem assume a fala. Aliás, quem toma a palavra, fala para o vazio, apesar da multidão que está ali.
De repente, devido ao cansaço, algumas pessoas tem a ideia de sentarem-se no chão. Depois de algum tempo, quase todos os grupos estão sentados. Mesmo assim, continua o processo de esvaziamento de alguns grupos e formação de novos. Ficam de pé apenas algumas pessoas que, na animação da conversa, não se dão conta de que quase todo mundo está sentado. Sim, claro, também quem assume a palavra fica de pé.
Enquanto isto, o casal permanece deitado, dormindo profundamente. Mas isto não é motivo para que ninguém arrede pé dali. Mas, apesar das presenças, o casamento ou os recém-casados perdem o interesse de quantos conversam nos grupos. Cada grupo concentra motivos e interesses próprios, isto é o que agrega as pessoas. Há grupos mais animados em que seus participantes sorriem, uns, inclusive, às gargalhadas, outros mais contidos e, em alguns casos, há, até mesmo, membros chorosos.
Vez ou outra, percebem-se discussões acirradas num ou noutro grupo e, em casos extremos, até gritos, empurrões e pancadaria. Porém, nada é por muito tempo. Tudo parece ocorrer de modo passageiro. Mesmo os conflitos, se ninguém liga e deixa rolar, os próprios briguentos se encarregam de acalmarem-se e logo se desfazem as confusões.
De repente, talvez sob o efeito da bebida, surge um som alto e alguns dos grupos que estavam sentados, levantam-se para dançar. Formam-se os casais dançando de rosto colado. Outros ficam-se a dançar soltos, enquanto mantêm a conversa. No entanto, a maior parte dos grupos fica indiferente a música, apesar de toda a altura do som. Por conta disto, surgem em lugares diferentes, reclamações por conta do som impedir que se converse. Baixam o som e logo todos retomam a conversa no ritmo de antes.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

SOBRA PARA OS SOBRINHOS



          Ah, eu não sei se eu quero falar alguma coisa. Acho tudo muito engraçado, gosto de ficar só olhando e ouvindo estas coisas que são novas para mim. É o primeiro casamento que eu vejo na família, eu não sabia que os casamentos eram assim. Eu tinha outra idéia, mas não está me parecendo que seja uma coisa boa. Eu estou vendo choro, acusações, confissões de infidelidades, enfim, está-me parecendo que não é legal. Mas eu estou gostando da situação porque, apesar de tudo, está muito engraçado.
Minha mãe exigiu que eu viesse com ela e agora quase que me obriga a falar, eu não queria vir e, muito menos, falar. Pensei que quando as pessoas casassem quisessem ficar sozinhas, até que aparecessem seus próprios filhos. Estou vendo aqui uma multidão de pessoas que nem estavam no casamento, não foram convidadas e estão aqui. Não sei ainda o que todos querem, o que fazem aqui. Está sendo engraçado, mas não estou me sentindo à vontade.
Primeiro, porque eu não queria vir, não queria estar aqui. Depois, estão todos em cima da cama, neste apartamento apertado. E quando o casal quiser dormir, quando der o sono, como vai fazer? Eu não gosto quando tem alguém na minha cama e quando eu estou com sono. Acho que ninguém gosta. Minha mãe, quando eu estou na cama dela, me manda sair. E se não for eu, se for outra pessoa, ela fica de cara amarrada até que a pessoa perceba e saia de sua cama.
Pra falar a verdade, não estou entendendo muito bem o que está ocorrendo, é tudo novidade para mim. Mas também não vou deixar a minha mãe e ir embora. Enquanto ela, a minha avó e a minha prima estiverem por aqui, eu vou ficar. Pode ser que mais tarde eu entenda melhor todas estas coisas.
Se eu me aborrecer muito, vou ligar o notebook e ficar navegando na net, enquanto eu espero que a minha mãe me chame para irmos embora. Vou ver se encontro alguma coisa sobre costumes de casamento no Google, no Youtube ou mesmo na weekpedia. Sei lá, agora fiquei curioso para conhecer mais sobre casamentos. Quero saber se todos são assim, porque algumas pessoas tem se referido ao casamento de modo negativo.
Eu e a minha prima ali ainda somos novos, temos muita coisa a aprender. Ela agora está chateada, parece, fala mal do casamento, mas não é isto que eu percebo em minha convivência com ela. Não sei se vocês sabem, mas ela criou-se comigo, na casa de minha avó. Ela é uma pessoa muito legal. Brigamos algumas vezes, ela me bate e eu bato nela, mas nos gostamos como primos-irmãos.
Considero a minha tia como se fosse uma segunda mãe, quero muito que ela seja feliz no casamento dela. Estou aqui pensando que amanhã cedo eu tenho aula e a minha mãe parece que não está lembrando, porque se lembrasse nós já teríamos ido embora, ela não tolera que eu perca aula. Também, eu dou razão, afinal, é ela que quem paga o meu colégio e o material escolar todo, o que não é fácil. Não somos ricos, Né?
A parte mais legal do casamento da minha tia foi a festa mesmo, porque lá estavam todos os meus amigos e brincamos muito, comemos de tudo o que gostamos. Podíamos ter ficado lá mesmo. Assim, o dia amanhecendo, cada um iria cuidar de sua vida e o casal ficaria livre para fazer o que fosse de sua vontade. Quem tem trabalho iria para o trabalho, que tem escola iria para a escola. Esta noite parece que está esticando demais, não acaba nunca. Pior, ninguém parece ter sono, ninguém quer ir embora. Mesmo os que já falaram continuam no mesmo lugar com os olhos atentos e acesos, parecem drogados.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

CONFLITOS FILIAIS



          A filha adolescente, tímida, aguarda o seu momento de manifestar-se, quase que escondendo-se por trás da avó. Sentindo que uma pausa mais longa se inicia, decide falar. E começa, com a voz em tom quase inaudível, trêmula. Diz que está ali porque sua avó a trouxe, mas que não se sente bem pagando aquele mico. Escutou com atenção tudo o que até então foi dito e que se sente constrangida de participar daquela situação.
              À média em que vai falando, vai soltando-se e a voz ganha firmeza. Sabe que entre os que falaram há muita coisa a ser percebida: desde o cuidado exagerado que a avó demonstrou até inveja, falsidades e outros sentimentos igualmente ruins. Não menciona mais ninguém, mas olha para as pessoas à sua volta com certo desdém.
          Dirige-se à sua mãe, dizendo que ela não precisava estar passando por aquela situação, que a preveniu e que ela, a mãe, sabe o quanto tudo aquilo a deixa mal. Não entende como tantas vezes ouviu de sua mãe que, como filha, seria a sua prioridade, e na hora de tomar a decisão de casar-se não levou em conta o seu sofrimento. Diz que não concorda com aquele casamento, que não sabe quem é aquele homem com quem sua mãe casara, que, em sua opinião, nada justifica o casamento.
          Vai falando e tomando gosto pelo falar, a voz assume um tom firme e até empostado, como se discursasse numa tribuna. Critica o pai por também estar ali, diz que ele não deveria, esteve sempre ausente quando era necessário e que agora que é desnecessário está ali. Critica a avó que fez que questão de trazê-la até ali e a colocou naquela situação ridícula.  Diz que aquela cena é inadmissível e os que ali se encontram não pensam na sua mãe, mas em si próprios.
          Mas também, não assume a defesa da mãe de um modo muito forte. Considera que ela tem culpa pelo que está passando, que ela não avaliou corretamente a situação e que está submetendo a família a coisas que não tem nenhuma razão de ser. Diz que uma pessoa precisa saber que os seus atos não apenas tem consequência para si, mas também, para as outras pessoas que estão ao seu redor. Uma atitude errada provoca mal estar em todos que, sequer, tem poder para barrar, impedir e, na maior parte das vezes, sentem até mais do que quem a praticou.
          Olha para a tia e reclama do drama ridículo que encenou. Diz que aquilo não ajuda, mas, ao contrário, expõe ainda mais as debilidades da família. Olha para o tio e, movendo a cabeça negativamente, diz que jamais imaginou que ele fosse capaz de uma fragilidade tão grande. Não conseguiu impedir que as coisas chegassem até ali e, agora, havia se comportado como um fraco.
          Olha ao seu redor e expressa um desprezo evidente por todos os que ali se encontram. Diz que tem certeza que os motivos que movem cada um são torpes e que, mesmo assim, todos tem a intenção de seguir adiante em seus propósitos. Por isto mesmo, diz, não pode ter qualquer outro sentimento pelas pessoas que ali estão a não ser o de reprovação.
          Diz que, se antes já não tinha o casamento como um objetivo seu, dali em diante, tem a certeza de que jamais se casará. É o segundo casamento de sua mãe e percebe que se o primeiro não deu certo, este outro se encaminha para o mesmo destino. O marido de sua mãe será sempre um estranho e, certamente, a realidade que ali se desenhara deixará marcas muito profundas em todos, principalmente, nele. Alias, diz enfaticamente, não sabe como ele ainda está ali, ouvindo tantas barbaridades e sem dizer nada e sem tomar qualquer atitude.
          Para finalizar, diz ser lamentável tudo aquilo. 
          Volta a postar-se por trás de sua avó, como se retirasse de cena.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

IRMANDADES EM COLAPSO


Foto do autor

          Diz o irmão, na condição de responsável pela família na falta do pai, que de início aguardava que todos falassem para, então, manifestar-se. No entanto, dado que muita coisa estranha fora dita, achou por bem falar. Seu desejo é preservar a imagem da família e, especialmente a de sua irmã que parece desorientada com tanta gente perturbando aquele momento especial, a sua lua de mel.
          De fato, a noiva emudece, olha perplexa para aquela multidão em cima de sua cama e não entende o que está acontecendo. Ela só deseja o momento em que o casal deve pronunciar a frase consagrada pela tradição: “em fim, sós”. O que a deixa ainda mais desnorteada é que, ao que parece, todos que ali estão desejam falar. E falar coisas sobre as quais ela não tem a menor vontade que venham a baila naquele ou em outros momentos. O sonho da lua de mel torna-se um pesadelo sem fim. Cada um que se pronuncia parece um boquirroto, um saco furado, revelando segredos e passagens íntimas que deveriam estar no esquecidas no passado de cada um.
          O irmão, único homem da família, parece acabrunhado com tantas coisas que ouvira até então, mas também não deseja silenciar para não parecer que concorda com todos os absurdos ditos na ocasião. Pensa consigo que “quem cala consente”. Não aceita isto, de modo algum.
          Tema sua irmã em boa conta, foi criada sob rígida orientação da mãe, como todos os outros. Não permite que sua honra seja enlameada do modo como estão querendo. Fala de momentos da infância onde sua irmã sempre comportou-se com timidez e com reservas. É uma pessoa discreta, bem formada, de boa índole. Grande parte do que foi dito não tem razão de ser. Quando alguém questiona o que ele poderia ter vindo fazer ali, ele dá de ombros e responde que é o irmão que assumiu o lugar ausente do pai, que tem responsabilidade sobre sua irmã, ninguém melhor do que ele para estar ali. Todos os outros deveriam perceber o ridículo de estarem ali e irem-se sem falar mais nada, não há necessidade, já falaram bastante. Apela a que todos se retirem, que deixem a sua irmã em paz.
          A irmã, que se mantivera apenas observando tudo, interrompe o irmão para declarar amor a sua maninha, reforçando o apelo para que todos deixem o local e parem de importunar a noiva que só deseja consolidar o seu casamento. Ela fala de sonhos havidos em noites anteriores, de uma cartomante, de um mago, de um padre, um feiticeiro, um pajé ... todos haviam previsto o que estava acontecendo ali. Ela que não prestou muito a atenção e nem levou em conta as previsões. Mas ela pode muito bem saber o que resultará de tudo isto, não pode acabar bem, a continuar do modo como está.
          Os dois se encaminham para a noiva, a abraçam longamente. Ouve-se um soluço, vários soluços. Um cochichar nervoso como se orassem ao mesmo tempo orações diferentes. Ajoelham-se ao seu redor e mais uma vez se abraçam e choram, desta vez alto, para que todos ouçam.
             Vez ou outra, um ou outro olha para trás na esperança de que todos tenham-se ido. No entanto, ninguém arreda pé, permanecem aonde estão, atentos a tudo. Pelo visto cada um aguarda a sua vez de falar.

domingo, 22 de janeiro de 2012

CORPO MÉDICO



Dr. Naum – Na verdade, não sei o que posso eu estar fazendo em cima de uma cama de um casal em lua de mel. Devo ter-me perdido a caminho de minha casa ou da casa de um paciente e agora me encontro aqui. Não tenho outra explicação. Bom, mas já que eu estou aqui, quero preveni-la ou preveni-los que este é um momento decisivo para a vida saudável de um casal. O equilíbrio, as ações ponderadas marcam positivamente para a vida harmônica no futuro.
          Não sei ao certo se isto deveria ter sido dito por sua mãe, quando falou há pouco, mas entendo que se ela não disse me cabe dizer porque eu, como seu médico, tenho o dever de zelar por sua saúde. Em primeiro lugar, aproveito para recomendar que você tome a sua medicação nos horários indicados, quando retornar faremos uma avaliação para verificarmos se estes remédios de agora, na dosagem prescrita, estão resolvendo.
      Tenho receio de que não tenhamos mais nenhuma opção para experimentarmos. Nenhuma das opções utilizadas anteriormente fez o efeito que esperávamos. Mas, tem um laboratório indiano que está experimentando uma droga nova e ficou de me enviar na próxima semana. Não sei, vamos ver se me enviam mesmo.
          Aproveito para pedir que alguém aqui que esteja retornando, me auxilie no meu retorno, posso dar uma carona contanto que me ajude a sair daqui.

Dr. Simplício – Bom, com tanta gente assim ao redor, não me parece adequado que eu trate de questões psiquiátricas com você. Dr. Naum passou ao largo, falou de medicação, mas não esclareceu qual seria. Temo que você esteja juntando as prescrições dele e mais as minhas, isto seria temerário. Os ansiolíticos tem propriedades bastantes complicadoras se associados a outras drogas com as quais reagem de modo diverso. Você já tem aquela experiência desastrosa de ingerir bebida alcoólica após tomar rivotril, esteve em coma. Este, na verdade, é o meu maior medo, por isto estou aqui. Tenha cuidado consigo, não arrisque sua vida por bobagem.
          Pensando bem, acho que vou esperar que você retorne para que possamos conversar com certa privacidade. Este povo todo olhando para nós, aguardando o momento de falar, na ansiedade em que está cada uma destas pessoas, não dá para avaliar o que pode acontecer, além da exposição pública de conversas que só devemos entabular no consultório.
          Vou aproveitar a carona do Dr. Naum, ajudá-lo a chegar a casa dele e até, aproveitar o percurso para conversar um pouco com ele acerca da sua situação. Por favor, nos permitam sair. Por favor...

Dra. Petra – Meu anjinho, difícil encontrar você assim, casada, sem lembrar de tudo o quanto já tivemos que enfrentar juntas. Veja, não quero atrapalhar sua lua de mel. Não, não quero. Eu vim porque você poderia precisar de mim, das minhas agulhas, dos meus cuidados médicos. Mas estou vendo que você está bem disposta, acho melhor ir com os meus colegas. De qualquer modo, estarei a sua espera quando você retornar. Temos aqueles exames ainda pendentes, temos que cuidar deles, são muito importantes. Não esqueça que sangramentos são sinais de alerta. Mas vou esperar seu retorno, não fique preocupada.
          Porém, enquanto você estiver por aqui, vou cuidando de juntar os exames que você já fez e vou tentar reunir uma equipe médica para que possa oferecer a você um parecer mais exato quando retornar. Estou indo, então,.. felicidades.

domingo, 8 de janeiro de 2012

O EX-MARIDO

Foto do Autor


Desculpe-me se a minha presença pode causar embaraços a sua felicidade. Não quero de modo algum constrangê-la num momento tão importante de sua vida. Longe de mim tal desejo. É até muito fácil explicar os motivos que me conduziram até aqui, neste momento.
Embora eu não tenha sido um pai muito presente na vida de nossa filha, não posso agora deixar de me preocupar com ela. E, também, com você. Com ela, porque desejo recuperar o meu lugar de pai junto a minha filha. Certo, eu entendo quando você reclama que dou mais atenção aos filhos do meu atual casamento, mas quero agora corrigir isto. Gostaria muito que a minha filha entendesse os meus motivos e baixasse a guarda. Quero muito ter o seu amor, digo, o amor da minha filha. Quero também mostrar a ela o quanto a amo, de verdade. Ainda não sei como conseguirei conquistar a confiança dela, mas é por isto mesmo que eu estou aqui. Penso que você pode ajudar-me.
Mas tem outra coisa que quero dizer, aliás, outras coisas. Primeiro, bom, não sei como dizer isto. Tem a ver com nós dois: eu e você. Nos separamos num momento em que poderíamos ter tentado superar as nossas dificuldades, rompemos uma relação de amor, sem muita resistência. Veja você que hoje já não bebo mais tanto, não sou mais aquela pessoa violenta que conviveu com você. Na verdade, eu nunca quis espancá-la, nunca. Nunca consegui entender porque acabava batendo na pessoa a quem mais amei na vida, mais am.. deixa quieto.
Você mesma conta para as suas amigas que passamos a ter os nossos melhores momentos depois que nos separamos. Eu posso dizer o mesmo. Nas vezes em que ficamos juntos depois de separados, foram os momentos mais felizes que experimentei na minha vida. E você sabe que nestes momentos eu jamais a ameacei, jamais encostei um dedo em você com intenção de machucá-la. Penso que estas coisas todas querem dizer algo de muito positivo. Eu mudei muito, e mudei para melhor.
Parece estranho que eu agora esteja aqui, sobre esta cama, na sua noite de lua de mel, dizendo isto. Mas, também, não me sentiria confortável se deixasse de vir, se deixasse de falar a você o que eu estou falando. Não imagino onde tudo isto vá parar, que conseqüências possa trazer para mim, para nós, mas confesso que me sinto melhor dizendo o que tinha para dizer a você hoje.
Eu entendo, sei que está pensando: que eu tenho outra família e que devo cuidar dela. Certo, tudo bem, você tem razão. Mas eu já tinha esta família quando saímos juntos tantas vezes. Aceito e entendo que você diga que agora é diferente, que agora está casada, que também tem o direito de constituir sua nova família. Não vejo problema, em nenhum dos seus namoros, nenhum dos casos, enfim, em nenhum de seus relacionamentos amorosos tivemos problema para nos entendermos, para sairmos e curtirmos o sentimento que temos em comum.
Você, mais do que ninguém, sabe que nos amamos, que a nossa separação é apenas um acidente de percurso. Uma destas peças que a vida nos prega e a respeito da qual nada podemos fazer. Fomos precipitados na separação, ao buscarmos novas companhias depois. Tudo foi ficando complexo demais e não soubemos resolver uma coisa tão simples e tão cristalina conversando, o fato de que precisamos um do outro.
Não adianta agora usar o meu casamento, o seu casamento para tentar nos livrar disto que nos tem unido todo este tempo e que nos unirá para sempre: o nosso amor. Dito isto, quero concluir dizendo que a minha presença aqui, nesta noite, é apenas o indicativo de que eu estarei presente em sua vida para sempre, não adianta tentar fugir. Você não conseguirá me esquecer, do mesmo modo que eu não conseguiria esquecer você.
Mesmo que esta minha insistência possa constituir uma dificuldade no desejo que eu tenho de reconquistar o afeto da minha filha, não posso simplesmente abrir mão de você. Tenho certeza que se eu contar com o seu empenho, poderemos ver outro meio de superar todos os empecilhos.
Mas hoje é a sua lua de mel e eu quero que você seja muito feliz.