sábado, 5 de março de 2011

ECO DE NARCISO



Atualmente cultuamos tanto a beleza física, voltados para nós mesmos, que não enxergarmos quem está em volta. Mas quem está em volta também está olhando para si. Neste cenário, a imagem no espelho se constitui na alteridade. É na fronteira entre aquilo que somos essencialmente e aquilo que desejamos ser e que o espelho denuncia, que se constitui a imagem do outro a quem buscamos pertencer, desejamos ser. A encruzilhada auto-reflexiva revela e resvala o narcisismo.
Diz o mito que Narciso, filho do deus Céfiso e da ninfa Liríope, fora sentenciado a viver sem se comtemplar. Tirésias previu, no dia do seu nascimento, que Narciso teria vida longa, desde que jamais contemplasse a própria imagem.
O dilema da contemporaneidade é não enxergarmos o outro, justo porque estamos voltadas para nós mesmos. Talvez seja este aspecto um dos motivos do sentimento de solidão que marca a atualidade. É como se cada um de nós, apesar de se encontrar num coletivo, estivesse voltado para si, sem conseguir ver o outro, tendo que perguntar, como Narciso, na floresta: “Há alguém aqui?”
Embora sozinhos, estamos condenados a ouvir apenas detalhes do apelo do outro, deste modo, é como se a fala do outro soasse como a voz de Eco, a ninfa que se apaixona por Narciso, que, num diálogo no interior de uma floresta, só consegue ecoar o que sobra, o final do que é dito. E, respondendo a Narciso, Eco repete “Aqui”.
É evidente que se desenrola, a partir de então, um diálogo entre desconhecidos, como uma espécie de situação muito semelhante ao que ocorre nos dias de hoje. Eco vê Narciso e está encantada por ele, mas Narciso não a vê. Não a vê, mas insiste em interpelá-la, convidando-a a aproximar-se: “Vem!”
Cada um aciona seu desejo de se comunicar sob uma perspectiva particular: Narciso, que se encontra sozinho, e Eco, que deseja o seu amor. Quando Eco ecoa a fala de Narciso, o faz como uma resposta e, portanto, como se seu desejo anulasse a condição de Narciso não saber de si. Deste modo é que repete “Vem!”
A interpelação que faz Narciso, a seguir, é ainda mais propícia a quem deseja, porque no seu desejo desconhece a distância ou as impossibilidades. “Por que foges de mim?” É, então, a vez de Eco, repetir o final desta pergunta: “Foges de mim”. Há aí o equívoco em que ambos, no processo de diálogo, se dirigem a pessoas diferentes daquela com quem, de fato, dialogam.
Conforme a determinação do sentimento de solidão, Narciso manifesta seu desejo de companhia, e convida, então, a quem lhe responde para juntar-se a ele: “Vamos nos juntar”.
Claro, quem quer que estivesse já predisposto a querer outra pessoa, ouvindo um convite, nestes termos, tomaria a decisão de aceitar, sem pestanejar. Assim procede Eco, sem contar que sua aproximação pudesse ser repelida.
Só que Narciso recusa sua aproximação, quando percebe que Eco o deseja. E a repele com veemência:  Afasta-te!  exclama, recuando. E declara, para tristeza de Eco: “Prefiro morrer a te deixar possuir-me”.
Finalmente, Eco se dá conta do equívoco, mas como não lhe é dado dizer nada além de repetir o final dos enunciados, cumpre sua obrigação e repete apenas “Possuir”.
Tantas coisas podem ser ditas com relação a este mito. Aqui, por enquanto, queremos apenas falar deste diálogo entre nós, em que parecemos estar voltados para nosso próprio umbigo, ou, noutro momento, não conseguimos falar tudo o que sentimos porque não temos tempo ou porque temos limitações na capacidade de expressão ou, ainda, porque sequer sabemos o que desejamos dizer.

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