sábado, 27 de agosto de 2011

DIA APÓS DIA


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Há momentos em que histórias gravitam no espaço em que se vive. Parece que são épocas em que as antenas estão melhor conectadas com o entorno, na ânsia de aprender e apreender todos os movimentos e informações.
Pela manhã, desperta-se com o canto agudo da graúna, que, presumivelmente, projeta seu cantar do alto do maior coqueiro do quintal. O dia ainda é sombra e os cheiros da luz do amanhecer timidamente esgueiram-se nas telhas. Ao canto da graúna vêm-se somar outros alaridos: galinhas, perus, capotes, bem-te-vis, rouxinóis, sanhaços etc. Dentre os aromas do amanhecer, o do café é o mais forte e irresistível.
O cuscuz fumegante imerso no café com leite anima as primeiras histórias do dia. Diz que Ana Benta, garotinha de 8 a 10 anos saiu para pegar guabiraba e perdeu-se no capoeiral ouve-se na cozinha. Há dias, já não acreditam que ainda esteja viva. Comentam que encontraram suas roupas debaixo de um pé de pau-ferro. Mais nada. Os pais aflitos não perdem a esperança e continuam a procurá-la.
Cavalo de talo, sombra das mangueiras, o dia aquieta-se. Diz que há um cachorro louco solto nas redondezas, melhor voltar para casa. Diz que já mordeu muitos meninos que não souberam dar conta dos riscos e aproximaram-se demais. Primeiro morde os outros cachorros e depois o que encontrar pela frente. Melhor voltar para casa. De esquecido o tempo, esquece-se o assunto. À sombra da mangueira, a areia fresquinha e branca acaricia o corpo e fertiliza a imaginação.
Gritam que é hora do almoço. Fica-se mais um pouco e outros gritos ecoam até que alguém vem esbaforido e com ameaças. Se não for almoçar agora fica sem comer. Vai-se assim, em desembalada carreira. A cozinha mais parece uma feira. Gente de todo lugar. Uns comem em volta da mesa, outros sentados ao chão. Alguns ainda de pé experimentam a comida. Os mais velhos ralham: tem que comer direito, e respeitar a mesa. Deus está na mesa. Comer sem sossegar dá indigestão. Diz que seu Manuel teve uma congestão porque se aperreou na hora do almoço. Foi-se desta, não teve como salvar-se. Seu Manuel, aquele que contava histórias. Diz que esteve no Amazonas e foi encantado por uma cobra. Era seringueiro experimentado, mas neste dia ficou andando em círculos, atraído pelo feitiço da cobra. Só escapou porque se apegou à imagem de Nossa Senhora e rezou forte. Foi por pouquinho que a cobra não o engoliu.
Tem horas do dia que o sol esquenta até a sombra da mangueira, melhor ficar como todo mundo, espiando o nascente, sentado no alpendre, sem perceber nada. Só os que pitam cachimbo esmorecem naquele espiar agudo, o sol sobre a areia e a salsa a perder de vista. O caminho estreito, como se esperasse por quem não ficou de vir. Sonolência danada.
Diz que nestas horas os caiporas descasam debaixo das moitas e não toleram que ninguém atrapalhe seu descanso. Deve ser por isto que todos se ensombreiam no alpendre, sem se mexer nem dar um pio. Só o olhar alongado que silencia no avistar sem fim.
A tarde corre ligeiro, e depressinha já anoitece. O sol descamba feito doido até se pôr por trás da casa. Diz que de manhã até meio dia quem conduz o sol é um senhor de idade, com muito cuidado e responsabilidade. É por isto que as horas se arrastam e as manhãs são longas. Do meio dia para a noite, é um garoto peralta que desanda a brincar, a correr e rapidinho chega ao seu destino.
À noite caminham sacis, estrelas cambiam e vozes e silêncios enchem o mundo de histórias. Diz que, ao se adormecer, outras tantas povoam também os sonhos. O Coaxar do sapo, o pio da coruja, o piscar do vaga-lume carecem de imaginação para encenar as suas.

domingo, 21 de agosto de 2011

UM ASSUNTO PUXA OUTRO


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Regina levanta-se de sua mesa de trabalho e se dirige à lanchonete que serve aos empregados da empresa. Pede um suco de goiaba com laranja e vai se sentar com outras colegas de trabalho, ao redor de uma mesa, em descoberto, um pouco distante donde se concentra o maior número de pessoas naquele horário. Senta-se a tempo de ouvir alguém que fala das contradições que estão presentes na vida atual, no cotidiano de todos. Ouve dizer, por exemplo, que um carro, dos mais simples, tem potência no motor para desenvolver velocidade de até 180 km por hora, no entanto, a legislação limita a velocidade nas estradas entre 80 e 100 km.
Outra pessoa argumenta que, recentemente, passando pelo centro da cidade, presenciou a apreensão, por agentes federais, de CDs e DVDs vendidos nas calçadas por agentes federais. Ora, a própria tecnologia facilita a reprodução de CDs e DVDs em série. Certamente existem aí outros aspectos, como, por exemplo, a questão dos direitos autorais, a pirataria etc. Mas é contraditório. Fabricam-se produtos que não podem executar boa parte das funções que potencializam.
Alguém aproveita para reclamar do modo como se organizam a distribuição e o consumo de produtos e serviços derivados do uso de computadores. Além de toda uma gama de acessórios, periféricos, softwares e mais não sei o quê, o usuário tem que pagar a um técnico que cobra em média 50 reais a hora, se não quiser ou não puder levar o computador à assistência técnica. Existe uma rede de entrelaçamentos que movimenta muito dinheiro, por conta de cada um que se aventura a ingressar no mundo da informática, ao adquirir um PC.
Argumentam que, do mesmo modo como quem dirige carro não tem, necessariamente, de aprender mecânica, quem usa um computador também não tem que saber mexer na parte física da máquina. Enquanto isto, o dinheiro vai saindo pelo ralo.
E essa história de antivírus?! A cada dia infestam a rede dezenas ou centenas de vírus. Alguns deles são espiões que, uma vez instalados em sua máquina, podem enviar informações suas para um computador ou para vários, que controlam e utilizam tais informações para acessar contas, números e senhas de cartões de crédito e por aí afora.
Regina, já terminando de tomar o suco, comenta por comentar: ah, mas com um bom antivírus instalado não tem problema. As colegas se entreolham e riem, zombando do comentário. Ah, não me diga que você acredita nisto. Tenha dó, Regina!
Alguém entra na conversa e completa: há quem diga que as próprias companhias que desenvolvem antivírus alimentam esta situação. Se criarem um sistema de proteção com garantia total, não haverá mais necessidade de desenvolver novos antivírus e, rapidinho, todo mundo, de um modo ou de outro, estará com o seu na máquina. Elas teriam que fechar. Não há sistema completamente seguro.
A mesma coisa acontece, dizem, com as empresas de segurança. Nenhuma delas tem interesse em que se acabe com a violência. Se a sociedade conseguir adotar um sistema completamente sem chance de assalto ou ameaça ao patrimônio, elas perdem a razão de existir. Vocês já pensaram sobre o que sustenta tantas guerras no mundo?! A indústria bélica, claro. Se não houver guerra, como vão desovar seus estoques de armas? É triste que precisemos do emprego que tem por finalidade garantir que as sociedades continuem violentas. Mas não dizem que é o desemprego que gera violência?
Por falar nisto, um destes órgãos de combate ao uso de drogas fez veicular recentemente uma campanha cujo slogan dizia mais ou menos assim: “Quem usa droga alimenta a violência”. Ora, claro, se ninguém usar droga, a quem os traficantes vão vender? De onde vão tirar dinheiro para comprar armamento pesado e carrões? É verdade, concluem, em coro.
Já saindo da mesa, para retornar ao trabalho, alguém comenta: mas vcs já perceberam o que estamos consumindo no mundo da informação e do entretenimento? A verdade mesmo é que a própria programação dos meios de comunicação, em especial das TVs, principalmente, nos finais de semana, é uma verdadeira droga. E depois querem uma sociedade sadia. Por falar em drogas...