sábado, 26 de dezembro de 2009

EURICO FICOU RICO




Dizem que Eurico ficou rico sem mais nem menos, de uma hora para outra. Há quem diga que ele acertou na loteria, que ele recebeu uma herança ou, ainda, que ele arrancou uma botija com moedas de ouro. Só não falam que ele enricou trabalhando. O certo mesmo é que dizem que Eurico ficou rico.
Os que espalham que Eurico acertou na loteria juram de pés juntos que ele jogava a mesma série de números há bastante tempo. De tanto insistir, acabou por acertar e recebeu uma gorda bolada. Depois de assim se expressarem, riem com deboche: “Bem que uma gordinha destas vale a pena” — dizem. Não satisfeitos, dão nome e endereço da Loteca onde o jogo foi feito.
Os que divulgam que Eurico recebeu uma herança, dizem que, apesar de todos saberem que ele foi criado num orfanato e que nunca conheceu nenhum parente próximo, chegou para ele uma correspondência dando conta que alguém do estrangeiro, parece que um alemão, salvo engano, lhe havia deixado uma boa soma em conta bancária, conta aberta em seu nome. Comentam que o falecido se dizia pai de Eurico e deixou registrado em testamento que o resto de sua família não poderia tocar na parte da herança que cabia a cada um antes que encontrasse e entregasse, em mãos, o que cabia a Eurico. E assim foi feito. Até dizem saber nome e sobrenome do tal pai de Eurico, mas alegam que estes nomes em alemão são de difícil pronúncia e não conseguem falar assim, corretamente Franz alguma coisa... Nestes casos, é melhor evitar pronunciar errado — dizem.
Os que propagam que Eurico arrancou uma botija com moedas de ouro, contam uma estória um tanto fantástica. Aliás, arrancar botija já é um acontecimento fantástico. Mas, bom, contam que durante três noites seguidas Eurico recebeu a visita de uma visagem que lhe prometia entregar uma botija cheia de moedas de ouro enterrada sob uma raiz retorcida de uma gameleira, próximo de sua casa, sem precisar o local.
A primeira vez que a tal visagem apareceu foi logo prevenindo a Eurico que ele não poderia contar seu sonho a ninguém, sob pena de não encontrar mais o ouro na botija. Contou, inclusive, que outras pessoas já haviam recebido a mesma informação, mas acabaram desenterrando um pote velho cheio de casas de marimbondos-de-chapéu ao invés de ouro, porque não souberam guardar o segredo. Disse ainda que ele deveria aguardar o momento exato para arrancar a botija, que voltaria para dizer a ele quando.
A segunda vez, a visagem disse exatamente as mesmas coisas. A terceira vez acrescentou uma informação. Disse que, pela manhã, cedinho, ele deveria dirigir-se a uma vila conhecida como Vila do Arraial, procurar a Barbearia da vila e que, dentro da tal barbearia, observasse uma réstia de sol que , exatamente, às 10 horas estaria posta no chão da barbearia, em frente a ponta do sapato do barbeiro. Com o passar do tempo, a réstia de sol iria subindo até que coincidiria com a boca do barbeiro. Neste momento, ele ficaria sabendo onde e como arrancar o seu tesouro. Assim Eurico fez.
Chegou à Barbearia, ficou observando o chão. Durante algum tempo observando, não havia nenhuma réstia. Haviam algumas pessoas esperando a vez para cortar o cabelo ou fazer a barba. Eurico sentou-se no único lugar que estava vazio. Na hora marcada, percebeu a réstia no chão, exatamente em frente à ponta do sapato do barbeiro. Ficou quase olhando fixo, com receio de que ela sumisse. Havia um alarido de conversas dentro da barbearia, mas ele não se dava conta do que conversavam as pessoas. Aos poucos, a barbearia foi-se esvaziando e quando só restava ele, coincidiu que a réstia postou-se no rosto do barbeiro, iluminando a boca. Eurico estremeceu, sentiu as mãos suadas. No entanto, nada aconteceu que pudesse revelar algo sobre a botija.
Ele, um tanto desencantado, contou então a história para o barbeiro. Este riu e tentou consolá-lo. “É assim mesmo, estas coisas não existem. Uma época me aconteceu um caso parecido: uma pessoa, em sonho, dizendo que debaixo da gameleira, que fica na margem direita do riacho Pau D’óleo, na passagem do caminho que vai para a localidade da Cacimba de Beber, sob uma raiz retorcida, havia uma botija de ouro. Eu, embora não acreditando nestas coisas, fui lá e só encontrei um pote velho cheio de marimbondos-de-chapéu.”

sábado, 19 de dezembro de 2009

SONS DO POEMA QUANDO SILÊNCIO




Apenas gotas pingam na superfície da poça d’água em intervalos de silêncios marcados. Repetem o mesmo som ao tocar a superfície. Depois, o som se visualiza nas ondas que repercutem e se expandem às margens, circularmente. Sobre o silêncio ressoam aqueles sons, decalcam aquelas imagens. A poesia exaure o ritmo do tempo, recostada no vazio silencioso do poeta. Doem-lhe os dias passados na memória. E a poça à vista é água incômoda, é a imprevisão do teto fendido. É o incômodo do ruído repetido sobre a insistência da poesia indócil e a pele nervosa da água empoçada.
A respiração audível angustia-se em fundos suspiros. Ao redor, o silêncio reconforta-se no escuro, mostra-se no dégradé de luz frágil que emana de uma janela com cortinas transparentes. Divisórias põem limites ao espaço de intimidade que resguarda o trabalhador em seu ofício de esquadrinhar versos.
As dores da alma e as alegrias do corpo distendem-se para ocupar o espaço com o que há de vingar na superfície do papel esparramado, nu, sobre a mesa. A esferográfica debate-se entre os dedos até que a ansiedade ganhe forma em caligráficas animações. A rasura é o rasto de uma dúvida, uma insatisfação, algumas inseguranças.
Os versos desenham ritmos e sentidos. Uns se ajustam ao exato desejo do escritor, outros escapam completamente e negam-se a ajustes de qualquer ordem. Riscam-se, borram-se, vão-se, mas não aceitam imposições, sob nenhum pretexto. Um verso ao lado de outro, um verso contra outros. Põem-se, repõem-se, alteram-se, alternam-se indiferentes ao sofrimento do poeta.
Um pingo após outro, em intervalos de tempo constante, pinga na poça e seus sons parecem idênticos, diluem-se no silêncio com um ruído chocho. Sem nenhum propósito, cada ocorrência chama a atenção e fazem-se ver as ondas que repercutem na superfície, empurradas para a margem da poça. A memória resgata lembranças de filmes sobre torturas em que o torturado é obrigado a suportar durante dias, preso em uma cela, a constante repetição de gotas d’água que lhe caem sobre a cabeça com insistência.
Difícil não prender o olhar naquela poça e observar durante longo tempo o seu estremecimento ante as gotas que lhe caem uma a uma. Impossível não admirar que não transborde. Está sempre no limite das margens. O som das gotas, a própria gota, tudo tão semelhante e, no entanto, acontecimentos diferentes em tempos diferentes. A gota na poça perde-se em sua condição de gota e adquire outra: a pele da poça em frêmito.
A telha fendida, o percurso da gota do teto ao chão, o atravessamento da luz sem atrito aparente. A repetição, mais uma vez uma vez mais. O silêncio importunado, o papel pacientemente pousado sobre a mesa, a esferográfica entre os dedos, a luz branda que se projeta da janela e as cortinas transparentes levemente tocadas por rajadas de vento: tudo suspira profundamente, com um soluço que parece findar uma busca de séculos.
Cada detalhe tem o seu silêncio. A poça espera a gota d’água, o poeta espera o próximo verso enquanto observa a queda do som sobre tempo, as coisas todas esperam em silêncio o poema que há de riscar o papel. O silêncio resulta do repouso das palavras no lugar donde haverão de pronunciar-se.
Um soneto singular reponta entre todos os potenciais poemas, como a permitir que desponte a cada instante, ante as condições prevalentes no cenário, um poema novo. A palavra simples, estável, regular, e simétrica se porá como limite para continuidade paralisante das gotas projetadas em suspenso, donde se observa o seu trajeto — parada em cada instante do percurso — e o restabelecimento da instabilidade do silêncio contínuo. Goteja na memória o final de um poema, como a latejar o que aqui ainda não esteja: “o vivo e puro amor de que sou feito, como matéria simples busca a forma”.

sábado, 12 de dezembro de 2009

VISAGENS




O jogo de cartas adormece a atenção ao tempo. De susto percebe-se que a noite avança pela madrugada. Um cuidado alfineta os sentidos e a lembrança de casa finaliza a última mão do relancinho.

A lua cheia reluz no caminho estreito de areia branca, madrugada alta. O passo largo avança rápido roçando o embainhado da calça nas ramagens de salsa que estreita a picada. Ruído marcado da respiração ofegante e do atrito da roupa no mato. A lua baixa alonga a sombra para trás.

Erguendo a cabeça com o olhar à frente percebe alguém que caminha adiante, pouco mais de duzentos metros. Acelera o passo, imaginando tratar-se de alguém conhecido. Chapéu de aba e roupa branca repercute o luar. No entanto, ao alcançar o cume do alto, a pessoa desvia-se e penetra a mata alta, à esquerda. Nenhuma suposição. Ignora o fato motivado pela preocupação com o avançado da noite.

Pouco mais adiante, ouve o ruído de algo que se projeta no ar indo, em seguida, chocar-se contra o chão, jogando poeira às margens do caminho. É um pedaço de galho de gameleira, de uns setenta centímetros, cortado em bico de gaita nas extremidades, num golpe só por vez. O comum é que houvesse escutado o barulho, mas nada foi ouvido. O estranho é que não há sentido aparente para o acontecimento.

Não há muito o que pensar. É continuar seguindo e apressar ainda mais a marcha.

Aos poucos começa a ouvir um choro angustiado e inteiriço. Vem a lembrança da esposa que está só em casa. Encontra-se grávida do primeiro filho e pode estar sentindo dores. Andar apressado, agora, já não basta. É necessário correr, pode ser que esteja precisando de ajuda. Marinheiro de primeira viagem, não consegue imaginar o que possa fazer ou, antes, o que possa estar havendo.

De relance, sente um remorso por estar jogando baralho enquanto a mulher, gestante, ficara só em casa. Em seguida, imagina que não há de ser nada, conforma-se. O choro vai ficando mais alto à medida que se aproxima de casa.

A roupa encharcada de suor parece limitar os movimentos. De vez em quando é necessário parar para respirar. O percurso parece que se espicha. Ao chegar, o choro para e o silêncio incomoda até mais. Salta a cerca do quintal e busca a porta da cozinha num movimento automático. Ela sempre está só, encostada, à sua espera. Entra em casa e com alívio percebe que a esposa dorme serenamente.

Suado e cansado, senta-se e se deixa ficar por bom tempo com os braços estendidos, o corpo recostado na cadeira. Recomeça o choro, mas desta vez parece distante.

Pela manhã, acorda com a voz de alguém que chama seu nome. Levanta-se, sente o cheiro do café novinho. A esposa, em sua atividade diária, parece desconhecer qualquer coisa a respeito do que aconteceu à noite passada, e, como se acostumada, nem pergunta mais onde esteve. Não parece aborrecida. Prepara a mesa do café no ritmo do esperado.

Continuam a chamar seu nome para além do cercado. Abre a porta e manda que se aproximem três pessoas, após identificá-las: são vizinhos que ficaram de acertar trabalho na roça.

Na mesa de café, ele conta o ocorrido e ninguém dá notícia de ter ouvido qualquer coisa estranha na noite anterior, muito menos choro. Mas um dos vizinhos relata que outras pessoas por ali já se referiram a algo parecido. Diz que se trata de recém-nascido, falecido e enterrado na porteira do curral, sem o devido batismo. Alguém tem que desenterrar e batizar para que o caso não volte a acontecer.

sábado, 5 de dezembro de 2009

ETERNO RETORNO




Destinos. Cada cubículo, entre os cubículos todos sobrepostos em que se abrigam as pessoas numa grande cidade, sobram destinos. Cada pessoa é um fragmento que se destina a um lugar diferente, por motivos também diferentes. Portas fechadas dão de cara para o muro do corredor estático, há tempos. É próprio de uns ir à feira, outros ao banho. Há quem fique em casa e os ganhem a rua. Os que nunca mais retornem por opção própria ou de outros. Há os que recebem: visitas de entes há muito não vistos, do cobrador, do leiteiro, do médico, do vizinho, do amante ou da amante, por aí afora.
Conflitos. Ninguém que se saiba concorda com os cães do apartamento de cima que ladram durante a madrugada. Mas eles se mantêm impassíveis: ladram, simplesmente. Um mundo de gente mora em condomínios, experimentando viver em harmonia — uns contra os outros. Enfrentam os mesmos conflitos: separar elevador social de elevador de serviço – em qual deles pode-se descer ou subir com os cachorros que dividem o espaço minguado dos apartamentos? Até que horas pode-se ficar com o som ligado a todo volume? Nos elevadores, baixa-se ou ergue-se a cabeça? E conversar com vizinhos e visitas, pode? Jogar bola nos corredores tem problema?
Máquinas e humanos. O desenho dos espaços urbanos foi definido pela tecnologia dos automóveis, que funcionam como extensões das pernas humanas, no dizer de McLuhan. Mas a verdade é que, embora sejam conduzidos por pessoas, os rituais todos e as marcações de reverência esquecem este detalhe. Todos os traços e faixas nas ruas e avenidas comunicam que se deve dar a preferência aos seus usuários. Quando o poder público institui a faixa de pedestre como observação obrigatória para os motoristas, eleva a importância da pessoa contra as máquinas, dá uma alguma racionalidade e desperta um certo espírito de civilidade. O problema é que a exacerbação do sistema acaba pondo em risco pessoas e máquinas: instalar faixas em vias expressas, sem sinal luminoso, por exemplo, é uma temeridade.
Tempo dos sinais. A pressa das pessoas antes e após a jornada de trabalho destoa do tempo dos semáforos nos cruzamentos das avenidas. Os sinais piscam para as filas que crescem, sem solução. Os humanos que administram as máquinas de controle hibernam faz tempo, não percebem que há urgência em se atualizar esta relação defasada. O ruído do caixa e das moedas abafa as lamúrias de descontentamento e o ranger de dentes de indignação.
Janela de fora. Os olhos enquadrados na tela da TV vêem a paisagem se afastar ou se aproximar em zoom, pela janela do automóvel. As cores e os movimentos assemelham-se. Até mesmo o encanto e o deslumbramento diante dos acontecimentos e dos personagens que pontuam em fragmentos de segundos a composição enquadrada. Há uma estética audiovisual que contamina as paisagens, impregnada que está pelas tecnologias do ver. As dimensões se achatam contra o vidro da janela e não perturbam o viajante em sua dormência demente.
Coração vazio. Falam-se em revitalização dos centros urbanos. É uma tristeza caminhar pelos centros das velhas cidades, o que prevalece é imagem do abandono. Estacionamentos multiplicam-se no lugar de prédios demolidos. Prédios de pintura carcomida e envelhecida denunciam os cuidados que lhes faltam. Os shoppings deslocaram os centros para outros centros instalando o clima de vazio. Transeuntes perambulam em cores desbotadas. Autoridades planejam dar vida novamente aos centros urbanos, estabelecer novos horizontes. Horizontes encarcerados em pequenos cubículos, em cada um deles sobram destinos.

sábado, 28 de novembro de 2009

PROVISÓRIO, PARA SEMPRE



Acompanha-me desde sempre um sentimento de que preciso buscar algo que me falta. Este sentimento me conduz a estar sempre em movimento de um lugar para o outro. Uma amiga me observou certa vez de que eu pareço estar sempre de partida mesmo quando acabo de chegar. Ainda assim, dou comigo há anos vivendo no mesmo lugar. Há uma espécie de contradição, a inquietação move-me para longas viagens e me arremete de volta ao lugar de origem onde permaneço.
       Ainda que entre partir e retornar signifique alguns poucos anos, a certeza de que retornarei me põe outro tipo de sensação, a de provisoriedade. Nenhum traço do que pode ser definitivo, por isto mesmo não finco raízes, não estabeleço vínculos permanentes. Nada deve ter marca do ficar. A saudade “de casa” é então aliviada por esta impressão de que logo estarei de volta. Os dias contados, os compromissos parcelados até a data do retorno. O que é provisório não ata laços.
A provisoriedade é real, estamos, como se diz, de passagem na vida. E a sua sensação em mim é uma espécie de equívoco porque pressupõe a idéia de permanência. Cada estada breve só se justifica porque hei de estar sempre onde estou: em lugares diversos e, ao mesmo tempo, definitivamente, no mesmo lugar. Pode ser que este ir e voltar se faça em função do sentimento de falta, da busca de preencher esta incompletude. Pode ser que este retornar ao mesmo ponto de partida se dê porque os pontos de busca apontam para o mesmo destino. Pode ser tanta coisa.
Quem está em busca de algo e não sabe exatamente o que é não sabe também quando ou se encontrará. Pode ser que este não saber traga junto a surpresa como atrativo, pode ser que também seja acionado para não produzir decepções. Mas, ao mesmo tempo, produz uma espécie de cegueira que nos leva a lugares em que nada há para se buscar, ou, pelo menos, onde nada se encontra.
          Há quem diga que este sentimento deve ser preenchido pela presença de Deus, que quem tem Deus ou uma religiosidade firme não precisa andar em busca de outras coisas que tragam felicidade. Mas é também o caso de se perguntar se já não é a fé que nos remete ao mundo e nos impõe a tal busca.
O crescimento de uma pessoa se processa, basicamente em duas direções: a primeira é o crescimento físico acompanhado pelos hábitos sociais. Este crescimento conduz a que cada um se projete do seio da família onde goza de segurança para a constituição de sua própria realização, o que quase sempre leva à constituição de novas famílias que esta pessoa passa a prover, assumindo responsabilidades que mais a fragilizam que lhes dão estabilidade.
A segunda direção é produzida pelo desenvolvimento do conhecimento e a ampliação do nível de consciência sobre si e a sua condição no mundo. Esta nova perspectiva arremessa o ser num emaranhado de dúvidas e descobertas que também produz incerteza e instabilidade, embora possa produzir sentimento de prazer e satisfação.
O que traz novamente a impressão de solo firme nas duas situações pode ser realmente a religiosidade. Mas é por crer em algo que nos arremessamos ao mundo e nos consideramos capazes de vencer desafios e superar limites. Novamente, se impõe a necessidade de ir à busca de objetivos e metas e de se chegar a destinos que não parecem se efetivar nunca. Tenho trabalhado, neste sentido, a idéia de que todo lugar de chegada é, antes, um ponto de partida.
Outro aspecto desafiador é que os percursos se bifurcam e os destinos se multiplicam, o que nos leva a ter que fazer escolhas, a optar. Escolher é necessário, mas nem sempre é fácil. Consideramos que temos direito a escolher, no entanto, quanto mais opções mais difícil é a escolha. Escolher um destino é excluir outros. Estes podem depois nos faltar.

sábado, 21 de novembro de 2009

TERCEIRO MOVIMENTO




O apartamento é um cenário bastante confuso: objetos pessoais e roupas se espalham por todos os lugares. Esta situação provoca inquietação, principalmente, pela obrigação que daí advém de por aquilo tudo em ordem. Esta obrigação é contrariada pela indisposição para iniciar esta tarefa. A aflição provocada por estes dois pontos em contrariedade tem a força de provocar uma ação que parece fora de qualquer controle, uma vontade desmedida de sair dali imediatamente. Olha ao redor, apanha uma camisa e uma calça, entre as que estão espalhadas por sobre os móveis, põe um tênis sem cadarço e sai batendo a porta. De primeiro instante, não reflete aonde deseja mesmo ir naquele momento.
De repente, vem à lembrança de onde esteve na noite anterior. Não consegue lembrar com clareza de muita coisa, bebera além da conta. Mas uma imagem é recorrente em suas lembranças: a casa de Gina, sua ex-namorada. Estivera por lá algumas vezes com a intenção de falar com ela, mas sem sucesso.
Pensando nisto, toma a mesma direção. Apanha um ônibus e senta-se próximo a uma das janelas. Por longo tempo, fica olhando as casas que passam, as pessoas paradas nos pontos, os outros ônibus e os carros em sentido contrário. Aproxima-se o seu ponto, dá sinal, o ônibus pára e ele desce sem muita pressa.
De pé, parado, fica imaginando se deve mesmo ir, já recebera algumas reclamações da ex-namorada, pedidos para que não fique rondando sua casa.
Começa a chuviscar e, por falta de uma decisão, acha melhor passar num bar que sabe estar próximo para beber alguma coisa e poder clarear as idéias. Até que chegue ao bar a chuva torna-se mais intensa. Corre, tentando proteger a cabeça com a camisa.
Entra de uma vez, fica a limpar a água da roupa como se pudesse com isto enxugar-se. Embora chova, o tempo está abafado e quente. Pede uma cerveja para retirar o amargor da língua. Entorna o primeiro copo e o engole quase de um fôlego só. O balconista olha-o fixamente, mas sem qualquer expressão. O restante daquela garrafa ele vai espaçando, encostado no balcão, com o olhar dirigido para fora como se esperasse alguém.
A chuva pára, o tempo refresca um pouco. O balconista sai de detrás do balcão e vai enxugar as mesas e as cadeiras postas na calçada. Ele observa tudo sem interesse. Enquanto isto, vai ingerindo outras garrafas de cerveja sem se decidir se vai ou não à casa de Gina. Enquanto pensa isto, vê com incredulidade que Gina vem na direção do bar. Completa o copo, toma-o de uma vez. Enche outro, olha atentamente e o repõe sobre o balcão.
Quase não acredita quando vê que ela se aproxima do bar, por impulso vai ao seu encontro. Cumprimenta com um sorriso, mas ela parece contrariada. Rosto fechado, quase não fala com ele. De repente, ela passa a reclamar porque ele anda rondado sua casa. Ele vai mudando de humor e passa a retrucar com raiva e a falar cada vez mais alto. Gina pede que ele se acalme, mas isto o deixa ainda mais irritado. De repente, apanha a garrafa de cerveja e a joga no chão com violência. Depois disto, sai dali colérico.
Mais adiante, pára e volta-se para olhar o bar, lembra que não pagou as cervejas, mas não quer voltar com Gina ainda lá. Pensa que pode ser mal interpretado, depois, não está mesmo a fim de vê-la novamente tão cedo. Tem sido desprezado, humilhado mesmo, não deseja mais continuar se sentindo assim.
Mas, ao voltar-se vê que ela está sentada em uma das mesas dispostas na calçada do bar e um homem se aproxima dela. Toma interesse e fica observando a cena. Logo em seguida, o homem senta-se também à mesa. De longe, não dá para saber o que conversam. Daí, pensa que deve voltar para pagar a conta e, quem sabe, poder observar de mais próximo. Neste instante, os dois levantam-se e saem dali devagarzinho.

sábado, 14 de novembro de 2009

SEGUNDO MOVIMENTO




Nos finais de semana, ela costuma sentar-se próximo à porta que dá para a rua, mas nem presta atenção ao que ocorre lá fora. Fica um tempão com a serrinha aparando os cantos das unhas. Aqui e acolá, pára e estende o braço: olha as costas da mão espalmada, de longe, com os dedos fechados. Inclina a cabeça para um lado e para o outro, depois recomeça friccionando a serrinha contra os cantos das unhas. Primeiro, as mãos e, depois, os pés. Algumas vezes, mesmo percebendo que o trabalho está concluído, reinicia como se não soubesse. Fica assim um tempão. É um gosto que não tem nenhuma explicação a não ser que não gosta de ficar na frente da televisão e nem sem fazer nada, prefere cuidar de si.
Levanta-se para ir à cozinha, ajeita uma almofada no sofá, apanha o copo no chão e sai murmurando uma canção destas da moda. Enquanto está na cozinha, verifica a geladeira para ver se tem algum refrigerante. Na falta, toma um copo d’água e retorna ao seu lugar próximo à porta. Olha a rua sem se deter em qualquer detalhe. Hoje, no entanto, percebe que chovera recentemente. Há ainda fios correntes de água da chuva.
Agora, já finalizando mais uma vez o trabalho com as unhas, alguém vem avisá-la de que há uma ligação para ela no telefone da esquina. Nem imagina de início, quem poderia ser. Mas, sem surpresa, levanta-se e sai apressada para atender ao chamado. Quando atende escuta a voz de um homem que reclama de sua demora. Ela lembra que havia combinado com um alguém, um caso recente, para saírem. Na verdade, ela havia concordado muito mais para não encompridar o papo. Não estava a fim de ficar com ninguém. Dissera a ele algumas vezes que gostava dele, mas sem muito entusiasmo. Anda tão cheia de trabalho que nem se anima a namorar. Homem é o que não lhe falta.
Ela, então, para não deixar barato pergunta pelo dinheiro. Isto o irrita ainda mais. Mesmo assim ela insiste e faz voz de ofendida. Percebendo que aquela discussão não adianta nada, ela, simplesmente, deixa o telefone pendurado e vai conversar com a pessoa que a foi chamar. Agradece e pede para que após 15 minutos ela reponha o telefone no gancho. As duas sorriem. Ela retorna para casa.
Apanha dinheiro sobre a mesa de centro e resolve ir à esquina do outro lado da quadra para comprar um refrigerante, sente vontade de beber algo gelado. Caminha pela rua molhada e vai desviando das poças, como se fosse divertido. Ao chegar à esquina, entra no bar e dá de cara com um ex-namorado que ultimamente vive rondando a sua casa.
Assim que a vê ele vai ao seu encontro. Entram no bar e ela não parece nem um pouco feliz com o encontro. Reclama da atitude dele de ficar rodeando a casa dela, feito peru, de asa baixa. Ele, já com algumas cervejas na cabeça, começa a falar alto e vai-se alterando cada vez mais. Ela percebe que está chamando a atenção das poucas pessoas que estão no bar naquele momento. Pede que ele se acalme, tenta contemporizar, mas não consegue de modo algum acalmar o homem. Ele, colérico, joga uma garrafa de cerveja próximo aos pés dela e, em seguida, retira-se do bar, arrebatado.
Ela pede o refrigerante e sai para uma mesa que está afastada. Senta-se e fica tomando o refrigerante devagarzinho. Sem mais por que, dá uma vontade enorme de chorar. Deita a cabeça sobre os dois braços e deixa-se ficar assim e desfaz em lágrimas. Enquanto chora, vai lembrando da noite anterior e do telefonema que acabara de atender. As imagens vão-se sucedendo em sua imaginação até lhe vir à mente o rosto do homem que lhe propusera sair.
Semelhante a um sonho, começa a ouvi-lo perguntando se ela não lhe quer fazer companhia, conversar um pouco. Ela ergue a cabeça lentamente, como se sob efeito de sonolência. Não sabe ao certo se está mesmo vivendo aquilo ou se é apenas um sonho. Mas se surpreende quando vê diante de si, em pé, estático e boquiaberto o tal homem.
Nem pensa direito, sua reação é quase que automática, a pergunta lhe escapa quase que contra a sua vontade: — Trouxe a grana?

sábado, 7 de novembro de 2009

PRIMEIRO MOVIMENTO





Ele meteu a mão no bolso lentamente, como se diz, como se dentro houvesse um escorpião. Puxou sem muita vontade um pequeno bolo de cédulas amarrotadas. Pôs uma por uma em cima da mesa, uma sobre a outra. Olhou demoradamente e, depois de algum tempo, resolveu somar a quantia que tinha ali. Fez uma expressão de insatisfação, olhou para o teto longamente depois e pegou as cédulas e, num bolo só, meteu no bolso novamente.
Antes de sair de casa, ruminou a frase que não lhe descia bem: “não custo caro para você, só vou cobrar porque não é correto trabalhar de graça”. Ele, em seguida, murmurou como se respondesse: “mas você diz que me ama, nunca ouvi falar que se pagasse pelo amor de alguém”. Não ouvindo qualquer tipo de réplica, meteu mão esquerda no bolso e assim saiu, batendo a porta.
Caminhou pela rua molhada até a pracinha. Não havia ninguém no orelhão. Dirigiu-se para lá. Retirou o telefone do gancho, botou o cartão e discou o número olhando a caligrafia dela no papel. Não demorou muito alguém atendeu. Ele disse que queria falar com a Gina, a outra pessoa pediu que esperasse, ia chamar.
Demorou um tempão. Várias vezes pensou em desligar e ligar pouco depois, mas desistiu com receio de que ela chegasse para atender e encontrasse o telefone desligado, retornasse para casa sem esperar que ele ligasse novamente. Lembrou que não havia se identificado pra quem atendeu – a pessoa não perguntou e nem ele se lembrou de falar. Também, não era necessário.
Mas quando ela chegou e atendeu, ele estremeceu. A primeira reação foi meter a mão no bolso e se certificar de que ainda estava lá o dinheiro. Reclamou da demora só para não começar a conversa falando da inconveniência de pagar a ela para saírem. Ela fez de conta que não era com ela e foi direto ao assunto: “Trouxe a grana?”.
Ele também não quis responder que sim ou que não, voltou a reclamar da demora e a conversa foi ficando meio torta. Cada um falava ao mesmo tempo de uma coisa diferente. Ele começou a tomar como questão fechada a história da demora, da perda de tempo. Ela começou a questionar por que ele havia se preocupado em telefonar para ela se não estava disposto a arcar com os custos que sabia existirem.
Depois de algum tempo, só ele falava e do outro lado silêncio completo. Nem mesmo um pequeno ruído. Ele não se importou porque lhe veio uma vontade de falar e disse coisas que não tinham nada a ver com aquela história. Coisas de outros momentos que estavam ainda atravessadas, como repetira várias vezes. Falou, falou, falou. Nada em resposta. Como o telefone não emitiu nenhum toque de desligado, imaginou que ela o houvesse deixado fora do gancho. Botou o aparelho no gancho e saiu dali caminhando sem direção.
Puxou as cédulas do bolso, contou novamente. Dividiu ao meio sem se preocupar se isto importava dividir o valor em metades. Contou as cédulas, botou metade no bolso da camisa e a outra metade voltou a por no bolso direito da calça. Não havia nenhuma explicação racional para tal feito, não estava conseguindo raciocinar. Deu vontade, só isto. Ainda sem vontade de tomar qualquer decisão, dirigiu-se ao bar mais próximo, na direção que apontava o nariz.
Não havia quase ninguém àquela hora, umas poucas mesas ocupadas com uma ou duas pessoas em cada uma delas. No balcão, um casal discutia alto. Ele ficou ali, olhando, mas sem juntar as palavras que soavam daquela discussão. Depois de alguns minutos, o barulho de uma garrafa atirada ao chão o trouxe a si. Olhou aquele lugar com estranheza, mas mesmo assim pediu uma cerveja enquanto puxava a cadeira para sentar-se. Do casal que estava discutindo, apenas a mulher continuou no bar – ficou sentada, com a cabeça sobre os braços numa mesa mais afastada.
Ele aproximou-se dela e perguntou se ela não queria fazer-lhe companhia, conversar um pouco. Ela ergueu a cabeça e os dois entreolharam-se surpresos. Ela não conseguiu se segurar, a pergunta saiu mecanicamente: — Trouxe a grana?.

sábado, 31 de outubro de 2009

REGINA & CIA


Regina prestou concurso para a Petrobrás e vem cumprir estágio no Rio de Janeiro. Nordestina, estremece de medo com as notícias de violência. Aluga um apartamento no décimo andar de um edifício da zona sul e lá, sozinha, com saudades dos seus, verte suas lágrimas e penitencia-se, franciscanamente. Aos poucos, vai aprendendo como se mover na cidade e como se abastecer de mantimentos semanalmente, num supermercado próximo.
Detesta a solidão. Com o primeiro salário, compra uma TV e liga numa extensão, sobre um carrinho com rodas metálicas. Deste modo, a qualquer parte do apartamento que vá, lá vai também a televisão. Ah, sim, Regina não é apenas nordestina, vem do interior, de arejados espaços: casa alta, de cômodos grandes, com lugares para armar várias redes e abrigar muita gente, quando necessário. Talvez por isto, sem qualquer outra explicação, mesmo morando sozinha aluga um apartamento de três quartos.
Quando Regina entrava no apartamento a primeira coisa que fazia era ligar a TV. Ia para a cozinha e para lá empurrava o carrinho, com a TV ligada. Ia tomar banho, deixava a porta do banheiro aberta para ouvir a TV.
Mas, mesmo com esta presença tagarela, Regina sentia-se sozinha. Não tinha empregada por que, alegava, tinha pouca coisa para fazer e ainda mais distraia-se lavando roupas e as louças, arrumando a casa e preparando ela mesma a comida com cardápio típico de sua terra. Reclamava que a carne de criação nos supermercados da cidade era muito cara, mas fazer o quê? Era assim ou teria que aumentar ainda mais as faltas que sentia. Na verdade, não queria empregada porque não confiava ainda deixar suas coisas com alguém desconhecido. Vivia sob tensão. Na rua, cumprimentava as pessoas e procurava ser gentil. No prédio, falava com um ou outro quando havia oportunidade, mas em casa, não abria a porta para ninguém, sem o pega-ladrão.
Um dia, enquanto aprontava-se, tomou um susto, enxugava o cabelo, de cabeça baixa, e quando levantou e abriu os olhos percebeu como que um corpo sobre sua cama. Esfriou por dentro. Mas logo deu por si e viu que ela mesma tinha posto a roupa de sair sobre a cama: uma calça comprida com a blusa, um conjunto combinado. Riu, ainda trêmula e foi a cozinha tomar água. Teve então uma idéia: pegou uma calça e uma camisa de mangas compridas, costurou uma na outra e encheu com o recheio de alguns travesseiros que comprou para este serviço. Depois costurou algo como que fosse uma cabeça, pintou olhos e boca e pôs peruca.
Alguém, no seu local de trabalho havia comentado sobre um filme em que um náufrago dava nome a uma bola e conversava com ela como se fosse gente, enquanto permaneceu naufragado. Não conseguia lembrar o nome do filme. Pensou: se uma bola pode fazer companhia para alguém, por que não um boneco bem feito?
Assim, Regina nunca mais almoçou sozinha. A partir de então, depois de ligar a TV, pegava no guarda-roupa o Hermano, sentava-o numa cadeira e ia contando para ele as novidades do dia. Só conseguia almoçar conversando com o Hermano. Comprou-lhe roupas novas, chapéus e outros enfeites. Uma vez, observou no ônibus, de volta do trabalho, um rapaz que tinha um peircing na orelha, imediatamente pensou se também não ficaria legal comprar um para o seu novo companheiro.
Muitas vezes, quando a insônia mais a incomodava, pensava em convidar Hermano para dormir com ela, mas a seguir concluía que não ficava bem uma moça sozinha chamar um homem para a sua cama, mesmo sendo um grande amigo: a única pessoa em quem confiava plenamente naquela cidade.

sábado, 24 de outubro de 2009

CORRESPONDÊNCIAS




A natureza é um templo onde vivos pilares deixam filtrar não raro insólitos enredos. Pequenos casos em que se contam as ocorrências tantas que o semeador expande seus sonhos e, tresloucado, abate os troncos fixos, os caules firmes e os deita a folhagem vencidos, à terra incinerada, pele cinza: templo denso e fértil. Era uma vez.
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos que ali o espreitam com seus olhos familiares. E desde então atravessado, alargam-se expiações antevistas e visadas no olhar vesgo desapercebido. Templos e tempos como fardos desde há muito e penosamente suportados nos intervalos imensuráveis da alma ao corpo. Para além do que já não mais se aguarda o ouvido atento ausculta o chão, a terra fria.
Como ecos longes que à distância se matizam numa vertiginosa e lúgubre unidade. Sons que reverberam na defasagem dos espaços cavalgados. Assimilam tensões e cavilações das gentes outras confundidas no âmbar da iluminância eterna. Das bocas sem palavras, de mãos sem amor. Não alcançam os olhos o horizonte alongado para longe, só o palmilhar da areia fina enrijecendo os músculos da panturrilha define bem a determinação do abraço. Longos, intermináveis braços. Matizes emanam odores em tênue e ampla pradaria.
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Ambivalências e contraditos erguem-se e apresentam novas cobiças. A imperfeição da única matriz esfacela-se em múltiplas miragens pela simples ameaça da proximidade. Baudelaire corre a pena em vão. Sudoreses em bicas estremecem em versos de festim e espasmos. Uma música deixa-se estar o tempo inteiro nos sentidos. Ora parece ouvidos da infância como saudade perdida, ora uma sinfonia que se deve compor na imensa e necessária falta que denuncia. Ora o estremecer do contato com a pele, como um frenesi, um frisson de olhares a desnudar a alma.
Há aromas frescos como a carne dos infames, doces como o oboé, verdes como a campina. A madrugada, enfim, tece a manhã no canto harmônico de todos os galos e a poesia refaz a sinfonia por todo o dia os dias todos. Olhar a natureza e degustar os frutos frescos postos sobre a mesa significa mais do que absorver os aromas maturados dos enredos sob o templo. Alguns passantes vasculham veredas como a querer transpor desejos e decretar modos mais estáveis de sentir. São poucos mais se consideram, por assim dizer, aqueles ainda duvidosos que têm esta missão, uma tarefa a cumprir por destino.
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, como a fluidez daquilo que jamais termina. O rio acautela-se entre as margens e se compraz inteiro no seu ir-se. Toca-lhe o contato dos que à distância observam seu jamais voltar absoluto. Ao que está determinado quem há de contrariar? O eixo desnivela o leito e empurra-o para o mar. Este é o itinerário que não finda e que pertence aos rios. Aos ricos, a impressão dissimulada das posses contra a dor no estômago vazio dos famintos.
Como o almíscar, o incenso e as resinas do oriente, que a glória exala dos sentidos e da mente. Resta ao poeta pensar e devolver ao mundo seu contributo à poesia. De tal modo que o tecido das palavras a acoberte e a dissimule. O mundo, para além das aguçadas mentes criativas, permanece sob sol nos desnivelados matizes que colorem as planícies e as cordilheiras. A mente centrífuga adormece em meio aos aplausos e aos encantos que os sentidos aguçam. Muitos outros poemas florescem, certamente, por entre as trepadeiras. Em nenhuma delas se instala a determinação de estancar a florescência ou o canto que o pássaro repercute no silêncio das tardes, no limo das paredes de pé sobre o tempo. Os sonetos alardeiam timidamente seus versos e nós os colhemos como se donos fôssemos. A natureza é um templo sob o qual recitam-se preces e poemas.

sábado, 10 de outubro de 2009

UMA HISTÓRIA DE AMOR




O casal apronta-se para ir à festa, cada um em quarto diferente. Uma festa de família, um casamento entre amigos, numa localidade próxima. Ele, em sua magreza, tem que ficar subindo as calças porque o cinto não aperta a cintura e deixa a calça folgada, insistentemente. A blusa branca, a calça preta em pano passado.
Ela veste uma saia pregueada na cintura e solta na barra, pano fino feito cetim. Blusa de manga, com botões abundantemente enfileirados de cima a baixo. Batom leve e mais nada no rosto. Olha-se no espelho, pela última vez, mais uma vez. Um respingo de perfume na articulação de braço e antebraço, no avesso da mão e na ponta da orelha. Ergue o nariz e tenta colher no ar se não se deixou exagerar. Confirma seu gosto e dirige-se à sala onde ele a espera com impaciência. Ao perceber que se demorara além do devido, baixa a cabeça e comenta alguma coisa sem que se possa ouvir claramente o que seja. Ele se esquece que está aborrecido e pergunta o que ela teria dito ao que ela responde com um “nada não”, já risonho.
Ao chegarem ao local da festa, casa de sítio com amplos alpendres e o espaço invadido com a música alta e luzes enfileiradas até depois dos limites do terreiro. As mesas espalhadas parecem todas ocupadas. Ela suspira fundo a olhar para um grupo de rapazes postos logo adiante. Num olhar, ele a censura e, ao mesmo tempo, indaga onde poderiam se instalar. Ela, embora sentindo aquele olhar, minimiza, diz que não veio à festa para ficar sentada, quer dançar. Puxa-o para o salão onde o sanfoneiro rasga o fole e os dançantes gastam os sapatos no piso encerado.
Dançam até cansarem-se. Saem do salão e buscam algum lugar aonde possam conversar e ficar à vontade. Sentam-se num tronco de árvore afastado do burburinho e põem-se a conversar. Logo, ela percebe que o lugar ganha movimento e, mais ainda, movimento de mulheres. Observa que as moças que por ali passam voltam a agruparem-se adiante e ficam rindo, conversando e a olhar para onde está o casal. Sem mais nem menos, ela pede a ele a aliança. Ele, a princípio, não entende. Ela diz que quer, simplesmente, que ele entregue a aliança e vá conversar com as moças que não fazem questão de esconder o interesse nele. Afinal, diz ela, elas o estão paquerando desde que saíram do salão de dança.
Ele entrega a aliança, beija as mãos da mulher e vai ao encontro das moças que estão logo ali, em pé, falando e sorrindo, ao tempo em que olham para onde o casal está.
Ela sai caminhando devagarzinho em direção a casa aonde a festa vai animada. Encontra-se com alguns conhecidos que perguntam pelo marido. Ela responde que ele foi a algum lugar e prossegue seu destino. Mais adiante encontra umas amigas, cumprimentam-se, trocam algumas palavras e aos poucos um grupo maior está formado. Passam a botar o papo em dia, há muito não se vêem.
Sem que se dêem conta, as primeiras luzes do dia começam a surgir. Ela olha para onde havia vindo e não vê o marido e nem as moças que estavam com ele. Resolve então, ir a busca dele com o objetivo de irem para casa, a festa está quase terminando e ela não se agüenta mais de sono. Percorre quase todo o espaço aos arredores da casa e não o encontra. Resolve procurar dentro de casa e nada.
Quando já estava quase decidida a tomar o caminho de casa sozinha, vê um casal afastado, bem afastado da casa. Ao se aproximar ela o identifica. Caminha, então, na direção do casal e chegando ao local, percebe que os dois estão bastante à vontade em afagos e carícias. Ela para junto e eles nem percebem. Ela, sem alarme, pega na mão do marido e o puxa para si. Ele também não reage. Com calma, ela mostra para o dia que está nascendo e diz que está na hora de irem para casa.
A moça adota uma expressão de surpresa e desapontamento. Sem entender nada, vê como ele cede ao convite da mulher que acabara de chegar ali. Olha para as suas mãos no momento em que ela repõe a aliança no dedo do marido. Desesperada, corre aos prantos em direção a casa. O casal vira-se de costas e se vai impassível.

sábado, 3 de outubro de 2009

O PASSADO É O QUE CONTA




Emília é uma mulher muito interessante. Diz que seu gosto na vida é conhecer pessoas, lidar com gente é seu passatempo favorito. Conversa com desenvoltura e dá conta de suas tarefas no atendimento a clientes de uma clínica onde trabalha, sem problemas. Apesar de gostar de conversar, não perde tempo ao usar o telefone. Explica que, neste caso, o importante é atender a um número maior de pessoas e não falar além do necessário com uma única pessoa. Mas é atenciosa, educada e extremamente hábil ao lidar com isto que faz o seu gosto.
Mas Emília tem uma característica, no mínimo, curiosa: o passado exerce um fascínio muito forte sobre ela. Perde-se nas horas ao contar qualquer acontecimento do passado, especialmente, suas histórias de amor. De vez em quando ela pergunta ao atual namorado: — Você lembra-se de quando nos conhecemos? Ai, mesmo que ele não estimule, ela desfia todos os detalhes do primeiro encontro: a cor da roupa que ela e ele vestiam, as palavras trocadas, o lugar e a hora certa... tudo tim, tim por tim, tim.
Outra pergunta freqüente é: — Você se lembra do nosso primeiro beijo? Do mesmo modo, não sossega enquanto toda a cena e o cenário não são recuperados. As sensações que sentiu, o conflito que a deixou em desespero etc. etc. Bom, esta história de conflito, então, é típica de outras coisas igualmente recorrentes e que estão ligadas ao seu passado.
A começar por um casamento desfeito. Diz que o seu ex-marido a maltratava, a deixava sozinha e ia a passeios em lugares distantes, só com os amigos. Finais de semana ele só queria saber de jogar bola. Só retornava pra casa tarde da noite, bêbado. Sem contar que nestas situações, algumas vezes ele chegou mesmo a espancá-la. No entanto, ela conta tais agruras com certo tom de permissão. Diz que o entende e que não tem raiva dele, pelo contrário, é um amigo necessário, tanto que às vezes fica a conversar com ele horas e horas lembrando os bons momentos em que viveram juntos. Não declara, mas dá a entender que têm ficado juntos e se amado loucamente.
Outras vezes, lembra passagens do passado com sua família. A infância com os pais, os irmãos, os passeios e os lugares onde morou. O passado é, certamente, o lugar em que ela mais fica à vontade. É como se o presente só servisse virar passado e, por isto, tema preferido de suas conversas pessoais. Como se todas as suas experiências do presente fossem planejadas para se transformar em lembranças.
Além das histórias da sua vida de casada, conta também a história que aconteceu depois com um namorado de quem gostava muito. Aliás, demonstra que gosta até hoje. Diz que este foi seu primeiro namorado, após a separação. Diz que apesar de estarem namorando firme, ele saiu com uma amiga dela. Esta amiga armou uma situação da qual Emília nunca esquece: ligou pra ela e deixou o celular ligado enquanto transava com o tal namorado. Emília não teve reação, sua única saída foi chorar. Apesar disto, não guarda mágoa dele. Até tem saído com ele algumas vezes só para lembrar as coisas boas que passaram juntos e, também, para alimentar coisas novas para lembrar com ele, futuramente. Ela se delicia contando suas histórias do passado.
Ultimamente, diz que namorava um cara casado e que viveu com ele momentos inesquecíveis: muitas vezes iam para um Motel e não faziam amor, ficavam lá só conversando e brincando como se crianças fossem. O cara, um figurão da política local, prometia e jurava que iria descasar para ficar com ela.
Ele tinha tanto ciúme dela que às vezes a seguia pelas ruas. Quando ela menos esperava ele aparecia para abordá-la, sob qualquer pretexto. Outras vezes, não aparecia, mas ela o percebia estacionado numa rua próxima como se a observasse. Ao mesmo tempo em que isto lhe provocava riso de convencimento, a incomodava pela desconfiança demonstrada. Mas, também, não reclamava com ele.
Num certo dia, o rapaz apareceu com uma história de lhe pedir um tempo, um ano exato. Precisava tomar umas decisões na vida dele e o tal tempo seria fundamental. Nunca voltou, mas faz questão de deixar sinais de que está vivo e muito próximo, como se alimentasse alguma esperança. É um fantasma que a alimenta e é por ela alimentado. Ela sofreu muito, conta, mas não pode fazer nada. Diz ela que, dada a sua decepção, jurou que, desde aquele dia, nunca mais aceitaria a corte de homem algum. Fala isto com um sorriso malicioso, como quem diz: quem quiser que acredite.
A clínica, onde trabalha, é um lugar por onde passa muita gente com as mais diversas histórias, inclusive, algumas delas, dolorosas. Emília faz amizades com médicos, outras atendentes e sabe de cor a data de aniversário de cada um, endereço, telefone e a constituição familiar. Mas o que mais a deixa feliz é contar como, onde e quando, conheceu cada uma dessas pessoas.

sábado, 26 de setembro de 2009

O BRILHO DA FESTA





Hoje é dia de festa. Daqui a pouco, a empresa em que Antonio trabalha vai oferecer uma festa para todos os seus funcionários, parentes, amigos e fornecedores. Todas as providências estão sendo adotadas e está quase tudo pronto. A cidade é cruzada por centenas de ligações telefônicas onde cada um dos convidados quer saber informações, as mais diversas, do outro. Desde sugestão de salão para fazer o cabelo, comentário sobre expectativas para logo mais, até a necessidade de saber se há quem tenha um convite sobrando. Sempre chega alguém de última hora e a cidade inteira desejaria ir a tal festa. Comida e bebida garantida, e de graça.
A festa é oferecida a pretexto do aniversário da empresa que coincide com as fastas de final de ano. Mas, na verdade, ela serve de palco para a satisfação pessoal do dono da empresa que conduz as atrações contratadas, realiza os sorteios de prêmios e as efetivas premiações aos seus funcionários mais destacados, com presentes até de carros. Todas as decisões, todos os acontecimentos passam pelo dono da empresa e, consequentemente, o dono da festa.
Tudo, antes, fica a cargo de um organizador que goza da confiança do dono da empresa. A ele é entregue a responsabilidade de controlar o acesso, distribuir senhas para ocupação dos espaços e até para comprar a bebida e o churrasco. Para cada item um número com uma cor que informa a que cada um dos convidados tem direito naquele momento. Um batalhão de segurança controla o acesso ao estacionamento e a distribuição das categorias de convidados: políticos e empresários vão pelo corredor A, ficam sentados nas mesas próximas ao palco; os funcionários e suas famílias pelo corredor B e ficam nas mesas mais afastadas.
O roteiro de apresentações é conferido e os artistas são alojados em hotéis da cidade com traslado garantido pelo organizador. Agora, sim: tudo checado, tudo pronto.
Antonio olha no espelho seu porte avantajado naquela roupa comprada especialmente para a festa. Um detalhe no perfume aqui, uma penteada de leve. Um último olhar e a conclusão de que está melhor do que o planejado. Põe os sapatos e, pela última vez, vai ao espelho confirmar sua impressão. Confirmado, ganha o destino do local de realização da festa, um sítio na saída da cidade.
Segue para lá na maior felicidade. Ao chegar ao local, quase todos os convidados já estão devidamente acomodados. Sente-se como se estivessem todos a esperar por ele. Ergue o queixo, olha o horizonte das mesas estendidas e caminha a pessos largos, porém lentos, pelo corredor do meio. De longe, o seu chefe que, não por acaso, é o responsável pela organização da festa o avista: aquele homenzarrão imenso, vindo por entre as mesas, avançando com o silencio dos que o observam enquanto passa, vestido de camisa social branca, de mangas compridas, gravata vermelha e calça de listas verticais, meio largas, em preto e branco.
Ao chegar próximo ao chefe cumprimenta-o com um sorriso como se não houvesse observado ainda seu semblante contrariado. Percebe que naquele momento as luzes do palco se apagam como a anunciar que serão iniciadas as atrações da festa. Ele está sob o efeito dos olhares nada discretos que lhes são lançados experimenta uma sensação bastante particular. É a mais pura satisfação pessoal que sequer consegue dissimular.
O chefe, de cara amarrada, retribui ao cumprimento e o convida a um lugar um pouco afastado dali, meio na penumbra, onde não há mais ninguém. Ele concorda e, ainda sem se dar conta da situação, desloca-se ao lado do chefe para o tal lugar. Sem olhar no rosto do chefe, conduz o semblante de felicidade motivada pela visível manifestação do público que, na verdade, tinha como expectativa. O chefe quebra o seu encanto com um pedido, no mínimo, inesperado: — Antonio, quero que você vá para casa trocar esta roupa. E Complementa: Nesta festa ninguém pode chamar mais a atenção do que o dono dela.
Antonio perdeu o chão, perdeu o prazer, perdeu a graça. Saiu dali desolado pra nunca mais retornar. A única coisa que ainda o alimentava era que, ninguém que o viu chegar, o viu ir embora.

sábado, 19 de setembro de 2009

AMPARO E DESAMPARO




O coveiro Antonio Gaspar recebeu a ordem para que desocupe o túmulo que era da família Ferreira. Aquele túmulo que ele cuida com muito cuidado e que lhe traz tantas lembranças. Foi ali que ele conheceu Amparo. Várias e várias vezes ela contou para ele a história que acabou, como conseqüência, unindo os dois, ao menos, por uns tempos.
Amparo chegou a sua casa naquele dia, após o trabalho, e soube que o marido havia saído com o filho para dar um passeio, de bicicleta. Era hábito de Teobaldo, o marido, fazer aquele passeio à tardinha. Mas, justo naquele dia ela havia saído do trabalho mais tarde e esperava encontrá-los em casa, naquele horário já haveriam de ter retornado, como faziam sempre. Vendo que não haviam ainda chegado, passou-lhe um mau pressentimento. O tempo foi passando e ela ficando cada vez mais aflita. De repente, lembrou que no caminho do trabalho para casa, ali próximo, viu que havia um movimento como se algum acidente houvesse ocorrido. Todos que vinham no coletivo viram. E, de relance, lembrou que alguém comentou alguma coisa sobre um ciclista. Na hora, não ligou. Mas agora imagina que pode ter sido seu marido quem estava lá, acidentado.
Decidiu procurar então nos hospitais próximos e acabou encontrando o marido e o filho, mortos, no hospital municipal de atendimento de urgência.
Ela sofreu muito, como é natural. E, para aliviar o sofrimento, começou a ir ao cemitério todos os dias para visitar o túmulo do marido e do filho. Foi, então, que Antonio Gaspar a conheceu.
Em sua recordação, ele reconstitui o dia em que logo ao chegar para trabalhar viu aquela mulher se desmanchando em lágrimas por causa da morte do marido. Uma cena muito comum, não fosse pelo exagero com que a mulher chorava e lamentava o falecimento do esposo e do filho de sete anos.
Ele não entendia por que depois de tanto tempo presenciando cenas iguaiszinhas àquela, se comoveu tanto a ponto de se aproximar da mulher para oferecer ajuda. Sua oferta era, a princípio, desinteressada, apenas para acalmá-la e para ver a retirava daquele lugar e daquela situação. Mas as cenas foram se repetindo todos os dias dali por diante e o tempo em que ele passava com ela foi se alongando dia após dia.
Ficaram amigos, passaram a sair juntos nos finais de semana. Num certo dia, depois de um final de sábado repleto de festinhas e comemorações, ele acordou e percebeu que havia dormido na casa dela. Não lembrava como chegara até ali. Dormira fora de casa pela primeira vez na vida. A esposa deveria estar muito preocupada. Saiu dali, procurou um telefone e inventou uma história qualquer como desculpa.
Depois disto, foram ficando juntos dias, semanas e, como era de se esperar, ela engravidou. Não era para engravidar, mas engravidou. De modo algum ela quis tirar o menino. Gaspar também não insistiu. Tinha outra família com três filhos, mas Amparo não lhe cobrava nada, disse que assumiria a gravidez até sozinha se fosse necessário, ele ficou descansado.
Mas as coisas complicaram quando a esposa soube do que estava ocorrendo. E para piorar, Amparo foi reclamando mais tempo para os dois e, depois, os três. Com o nascimento do filho, não deu mais para conciliar as duas casas porque as cobranças se multiplicaram de ambos os lados. A esposa ameaçava sair de casa com os filhos. Ficou de tal modo insuportável que Gaspar e Amparo tiveram que se separar.
Ele soube depois, pela boca dos outros, que Amparo havia tomado a decisão de vender o túmulo da família. Dizia que era para poder juntar o dinheiro da venda com a parte de outra venda, a da casa em que morava, desejava comprar uma casa melhor. Mas Gaspar sempre achou que, na verdade, ela não queria mais o túmulo porque sempre que fosse lá teria de encontrá-lo. Não considera correto que ela tenha deixado que os restos mortais do filho e do marido ficassem sem abrigo, pelo simples capricho de um amor desfeito. No entanto, nada pode fazer, não tem onde guardá-los.
Agora está ali, com aquela ordem na mão. Terá que cumprir, afinal é o seu trabalho, mas entende que aquela tarefa é para ele como se estivesse desenterrando a si próprio e o seu passado.

sábado, 12 de setembro de 2009

ÓCULOS E DISCURSOS PERDIDOS.


Foto do autor

Tenho que viajar amanhã cedinho e, apesar das altas horas da madrugada, ainda estou aqui revisando um discurso que acabei de redigir. Os olhos parecem trocados e, vez em quando, fico um pouco confuso, as letras mexendo-se no teclado do computador. Na verdade, não é amanhã cedinho que eu devo viajar, é daqui a pouco, às 6:30h da manhã.
O dia desfaz a noite e eu tento imprimir o discurso enquanto a impressora encrenca. Não imagino por qual motivo. Começa a me bater certo sentimento de que talvez não consiga imprimir o texto e depois tomar banho, tomar café, trocar de roupa e depois de tudo, chegar a tempo de tomar o avião para a Bahia. Acho que eu esqueci de por nesta ordem de tarefas a mala que ainda tenho de fazer. Isto se a impressora resolver colaborar. Ah, finalmente. O texto impresso, sem problema.
O que é mesmo agora que eu tenho que fazer? Volto ao parágrafo anterior, bom, tenho que tomar banho. Ligo o chuveiro e deixo a água ir esfriando o cérebro (ou quase isto). A sensação do banho me reanima e as coisas parecem menos problemáticas. Confira a lista acima e veja as outras coisas que eu vou fazendo. Claro, ponha antes de tudo a mala.
          Desço arrastando a mala pelas escadas porque não tenho tempo para ficar esperando o elevador que, por desconto de pecado, acaba de passar reto no andar que estou agora, não atendendo ao meu chamado. Chego, finalmente, à portaria, comigo, os passageiros do elevador que ignorou o meu chamado, que chegam junto.
Tomo o táxi e comunico ao motorista para baixar o pé, sem dó. Ele me olha desafiador e segue em marcha lenta. Peço para ele parar, quero apanhar um táxi que respeite a minha pressa. Resmunga algumas coisas indecifráveis e vai adiante. Protesto, mando que pare, ele não escuta. Acelera um pouco mais e vai adiante, calado. Percebo que me observa pelo retrovisor, com cara de poucos amigos. Xingo, comigo, ele e várias gerações dele.
          No aeroporto, nenhum aviso de atraso de vôo. Pelo menos isto me alivia. Em pouco tempo, estou acomodado olhando, sem escutar, o discurso cheio de gestos que uma comissária de bordo faz diante de mim. Depois disto, a aeronave já está pousando no aeroporto de Salvador. Dormi pesadamente, concluo.
Vou para o Centro de Convenções e lá encontro o grupo de recepcionistas que estavam me aguardando. Falam dos procedimentos, me comunicam que a minha participação é a primeira. Entre eles, uma jovem que me convida para sentar num quiosque enquanto não inicia. Sentamos numa mesa afastada, ela pede uma cerveja. Conversamos amenidades, não quero retirar a surpresa da fala que está no meu discurso depois de ter atravessado a noite em claro pensando e escrevendo cada palavra, caprichosamente.
Retiro os óculos para limpar a lente e, como que por hábito, guardo no envelope que está sobre a mesa, junto com o texto do improviso. Bate uma chuva repentina e nos retiramos da mesa às pressas. A garota tem um papo interessante e a cerveja a deixa cada vez mais atraente. Ou seria a carência? Discutir isto agora não faz o menor sentido. O que é certo é estamos nos dando muito bem. Vejo que nos chamam, é um dos caras que me recebeu quando cheguei ao Centro de Convenções. Avisa que temos que ir para o Auditório, serão iniciadas as atividades do evento e eu serei o primeiro a falar.
          Chamam-me para a mesa e a garota senta-se ao meu lado. Sinceramente, não ouvi ninguém anunciando seu nome, mas também não vou polemizar, não me cabe. Até gosto que ela esteja ali, ao meu lado. O presidente da mesa me anuncia e me passa a palavra. Acho estranho que eu não consiga distinguir com clareza as pessoas á minha frente, sentadas naquele auditório. Param de aplaudir, procuro o envelope que deve estar comigo e que tem o texto do discurso. E os meus óculos, também. Entendo porque tenho dificuldades para distinguir as pessoas. Não encontro o tal envelope.
Resmungo uns impropérios, enquanto um silêncio pesado cai sobre o tempo. Sem o discurso e sem os óculos, agradeço o convite, a presença de todos, cumprimento os ocupantes da mesa e fico sem saber mais o que dizer. Passa pela minha cabeça uma solução estapafúrdia e, sem que eu mesmo me controle, passo a palavra à jovem ao meu lado alegando que ela é baiana e que, certamente, tem mais o que dizer do que eu. Para o meu espanto, a garota se levanta, toma o microfone e dana-se a falar asneiras, coisas sem sentido. Surge um ensaio de vaia, mas não prospera. Não sei o que faço aqui, sem meu discurso e sem meus óculos.