domingo, 23 de maio de 2010

O JOGO DA CONVIVÊNCIA


No campo das chamadas relações entre casais há espaços de negociação e dissimulação que sustentam muitas vezes convivências longevas. Vamos acompanhar detalhes da rotina de um casal que se diz amar para sempre.
1. Manhã, o casal apronta-se para ir ao trabalho. O marido depende da carona da mulher e seu horário de chegar ao trabalho é às 8h e o tempo de percurso são 15 minutos, aproximadamente, quando não há engarrafamento. Ele termina de se trocar às 07h30, já faltam 30 para as 8h e a esposa ainda experimenta vestidos. Veste um após outro, depois de alguns tantos retorna ao primeiro: vai combinando com o sapato, o cinto, o brinco, a pulseira do relógio etc. E a cada experimento, confirma com o marido se aquele está bem ao que ele responde com um hanran meio chocho, igualzinho para todos. Os sentimentos de desencanto e dúvida crescem nela.
Se a mulher gasta tempo e exige paciência enquanto se produz, sob a alegação de que o marido deve ficar feliz, porque afinal vai sair com alguém que zela pela beleza etc. etc., colocam-se outras nuances que nem sempre ficam muito claras: por exemplo, a quem de fato ela deseja chamar a atenção, ao marido e por isto quer ficar mais bonita para ele? Às outras mulheres com quem certamente cruzará nos mesmos pontos a que se destinam, a quem lançará cabelos, muxoxos e olhares enviesados? Ou, desculpem-me a grosseria, a certos marmanjos que lhes lançarão olhares inconfessáveis à revelia da boa fé do maridão?
Ela sempre se chateia, acha que o marido tá nem aí. Não presta atenção e está ficando indiferente, que isto é sintoma da rotina etc. etc. O que não observa é que a rotina desgasta pela repetição. Se a cena é esperada, a encenação e todos os textos também.
E ai daquele que simplesmente achar de ajudá-la a escolher os vestidos e transparecer felicidade e compreensão, concordando com tudo, sendo educado e gentil e... Homem certinho é um horror, dizem. Dá até para pensar que o que vem de encontro ao tempo e à paciência do homem não é exatamente para irritá-lo, é apenas para que não se torne muito compreensivo e chato.
Depois, se a cena é recorrente e ela sabe que irrita um pouco o companheiro, a ponto de ele confirmar sem mais refletir, sobre as perguntas se este ou aquele vestido fica melhor? A seguir vem sempre a pergunta: você ouviu mesmo o que eu perguntei? Você prestou atenção no que eu lhe mostrei?


2. Volta um pouco a cena e vamos encontrar o marido saindo do banho, enxuga-se e, mecanicamente, joga a toalha molhada em cima da cama. A esposa sai do banho e, ao sentar na cama para passar o hidratante nas pernas, senta-se sobre a toalha. Dá um pulo e reclama com o marido pela enésima vez, segundo ela. Ele, de bom humor, aproxima-se dela e dá um selinho, pedindo desculpas a seguir. Jura, como das vezes anteriores, que aquilo não mais se repetirá.
3. Volta ainda mais um pouco a cena: a esposa ao entrar no banheiro dá de cara com o assento do vazo respingado, e de imediato identifica o motivo: o marido que acabara de deixar o banheiro simplesmente não levantara o acento no momento de urinar. Ela engole o dtalhe em seco e entra para o banho.
4. Ao chegar à cozinha para o café – marido lá, sentado, vendo as notícias do futebol na televisão enquanto espera –, a esposa vê cascas de banana dentro da pia. Sabe exatamente quem costuma confundir a pia com a lixeira. Olha meio atravessado para o marido que nem percebe enquanto espera vendo televisão.
5. São 10 para 8 da manhã, quando a esposa finalmente entra no carro faz menção de sair novamente porque esqueceu de fechar a caixa do filme plástico com que embalara um pedaço do mamão do café. O marido protesta e a convence que o mais importante era o mamão que poderia estragar, mas a caixa pode esperar até o meio dia, quando estarão de volta para o almoço. O carro arranca, sob a recomendação da mulher de que o marido vá devagar, não carece aquela pressa.
6. Voltando a cena mais uma vez, bem para o começo: uma das coisas que o marido detesta e que todos os dias acontece exatamente igual é ela deixar o creme dental sem a tampa e espremê-lo no meio. Naquele dia não foi diferente, ao retornar ao banheiro para uma última penteada, está lá a bisnaga do creme dental mais baixa no meio e sem a tampa. Um fiozinho de mau humor percorre-lhe o corpo e ele tampa a bisnaga pela última vez, mais uma vez.
7. Combinam, no carro, de sair à noite para jantar. Aquela cena dos vestidos se repete com pequenas diferenças: os vestidos são outros e o tempo para decidir é mais elástico. A cena da televisão também. Só que desta vez é a novela que ele assiste enquanto espera. Aliás, a cena da toalha, da pasta de dentes também. Tudo se duplica. Mas a noite é uma criança e os espíritos estão desarmados. Beijam-se e abraçam-se sob declarações e juras de amor eterno. Alguém que acompanhasse, desde o início, tantos modos diferentes de perceber o outro numa vida comum, poderia muito bem se perguntar: como é possível?
Ah, antes que esqueça: no retorno ao lar, a altas horas, embriagados da madrugada e de tesão, vivem uma noite de amor como nunca.
O nível de satisfação e prazer que alimenta cada um é pessoal e intransferível, meio mórbido, talvez.