domingo, 31 de outubro de 2010

FARINHADA




A mandioca arrancada no braço, uma a uma quebrada e atirada nos caçoas escanchados no lombo dos jumentos. O tangedor desvia o olhar para a terra e enfileira-se atrás das cargas que seguem em procissão pela picada. À porteira, posta-se um responsável pela abertura quando o comboio se aproxima.
A carga é arriada e refeito o monte que já parecia findar. Mulheres raspam a mandioca, sentadas ao redor do amontoado. Algumas raspam a metade (capotes) e repassam para outras que completam a raspagem. Olham-se e cantam e contam histórias horas a fio por todo o dia e à noite, enquanto houver mandioca para raspar.
Na bolandeira, tange-se o burro que, paciente, caminha o mesmo caminho em círculo, acossado pelo som do chiqueirador e, vez ou outra, pelo ardor de seu contato com a pele, seguido de um gemido longo de advertência. Encolhe-se, agita a calda e segue na mesma batida. A correia de tração da bolandeira move a tarisca dentada que tritura a mandioca raspada transformando-a numa massa grossa, úmida e branca.
Da massa prensada se extrai a manipueira, um líquido denso que depois de secar será transformado em goma. Uma parte que permanece úmida, a carimã ou puba, é utilizada para fazer bolo. Outra parte da massa é levada ao forno e mexida até que seque e alcance a consistência de farinha. A crueira, fragmentos que não foram completamente triturados, é utilizada para ração animal.
A casa de farinha é um lugar de rituais sertanejos. Desde a apanha da mandioca no roçado até a sua transformação em vários produtos que se destinam ao consumo dos donos da farinhada e a comercialização, encenam-se muitos ritos da convivência humana.
A conversa dá lugar a observações de detalhes sobre tarefas distintas, solicitações diversas e a comentários de toda sorte. Anima-se e/ou questiona-se. Afaga-se ou repele-se conforme o momento e o lugar. Vez por outra, canta-se ou resmunga-se cantigas como desalento. Em geral, uma farinhada vira dias e noites. O contato permanente, principalmente, entre jovens, estimula a paqueras e namoros que ajudam a passar o tempo de modo mais animado.
Luiz Gonzaga, em uma de suas músicas (composição de Zé Dantas) fala de um destes momentos. Diz a cantiga: “Eu tava na peneira, eu tava peneirando / eu tava no namoro, eu tava namorando. Na farinhada, lá da Serra do Teixeira / Namorei uma cabôca, nunca vi tão feiticeira / A mininada descascava macaxeira / Zé Migué no caititú e eu e ela na peneira...”
Ruídos diversos atravessam o espaço, a voz gemida do tangedor que alerta o burro na bolandeira, a tarisca que soa mais forte ou mais leve, conforme o contato com a mandioca que se desfaz em massa, o rodo que espalha a farinha no forno em vai-e-vem nervoso, o alarido das raspadeiras de mandioca em conversas íntimas e gargalhadas que estalam como fruto de mamona, sem que se saiba os motivos. Nesse ritmo passam-se dias inteiros.
Não há idade definida para os freqüentadores das farinhadas. Como se diz, é igual ao jogo de São Severino: joga homem, mulher, menino e os velhos viciados. À noite alta, poucos ficam na lida. Além dos torradores de farinha e prenseiros, casais de jovens que, a pretexto do trabalho, arquitetam paixões.
Tempo de farinhada é tempo de fartura de tudo. Beijus de massa, tapiocas, bolos de goma, farinha e gente que não acaba. A comunidade inteira se mobiliza e se encontra no mesmo lugar, empenhada em participar dos ritos de produção de derivados de mandioca. Em torno da raiz da maniva, a planta que produz a mandioca, os agricultores fazem suas farinhadas, plenas de todos os sentidos que as relações de produção propiciam.
Conta uma lenda indígena que uma indiazinha muito diferente, diferente das demais, nascida em uma aldeia, recebe o nome de Mani. Pequenina, frágil e branca, Mani um dia vem a falecer. No local em que ela é enterrada nasce uma planta que passou a ser conhecida como Mani-Oca, ou seja, casa de Mani. De acordo com esta lenda é que surge o nome mandioca.