sábado, 12 de fevereiro de 2011

A IMAGEM NOSSA DE CADA DIA


Eu pretendo falar sobre um tema que gosto muito, que é a imagem. Este conceito é bastante presente e também multifacetado – imagem pode ser uma escultura. Esculturas de valor estético, nas galerias, nos logradouros públicos ou nos museus têm sentidos mais ou menos comuns; outras, de valor religioso ou de homenagem a algum vulto histórico, têm outros sentidos com diferenças mais marcadas.

Imagem pode também significar algo fluido que se produz na imaginação: os sonhos e os delírios são desta ordem. As imagens que resultam de construções literárias passam um pouco pelo viés da imaginação, mas se consolidam nas leituras sustentadas nas experiências comuns, fazendo-se cristalizar no contato com os textos. Em qualquer lugar do mundo, imaginamos, concretizam-se do mesmo modo, por isto consideramos que seus níveis de abstração são menores.

Imagem pode ainda significar, no campo visual, uma sombra, uma mancha, um desenho, uma pintura ou uma fotografia. Na fotografia, então, as possibilidades de afeto e, portanto, de sentidos se ampliam imensamente. É a esta imagem do cotidiano das pessoas, que existe desde os primórdios, que nos referimos, e que nem sempre nos damos conta. Diante da imagem no interior das cavernas, das igrejas, das salas de projeção ou no interior dos lares, onde a televisão se apresenta, estabelece-se todo um clima de ritos próprios, que se diferenciam muito mais segundo os lugares e os períodos, do que mesmo em função das diferenciações de elaboração técnica da imagem. Vamos ao cinema como vamos à missa. Preparamo-nos, arrumamo-nos e programamos afazeres para antes ou depois – demarcando e respeitando os rituais de cada um dos momentos em que estaremos diante das imagens, em tempo e condições adequados. Do mesmo modo que se imaginam os rituais dos grupos em torno da imagem no interior das cavernas, vemos se reproduzirem também em torno da televisão, por exemplo.
A imagem transcende em seu significado, independente de suas técnicas ou de seus materiais, porque permanece o seu sentido e a sua origem. A imagem existe primeiro dentro do homem, quer como forma de percepção de fatos do real, quer como imaginação mítica. É ela que lança âncora à esperança de salvação do homem. Salvação de sua condição de desamparo, de corpo solitário arremessado ao mundo, diante do qual não compreende porque não conhece a sua origem. "O debate sobre a natureza das imagens internas movimenta hoje vastos setores do pensamento científico, num espectro que vai da neurobiologia à psicanálise" (MACHADO, 1994).
O tempo marcado é a ilusão da superação. A cada dia ocorre a farsa da novidade, porque, de fato, é o retorno, o eterno retorno que repete o ciclo dos dias, semanas, meses anos... como um impasse e não como uma superação. “É como se a contemporaneidade trouxesse consigo todas as eras do passado no seu âmago. A visão do homem contemporâneo permanece em larga escala determinada por modelos formativos do passado e as imagens técnicas jogam um papel fundamental na manutenção desse impasse" (Idem, 1994). A consciência da imagem nos dias atuais e a consciência perceptiva correspondente, embora se diferenciando radicalmente quanto à intenção, têm uma matéria impressional idêntica em outras épocas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

MISSIVA


Toca a campainha com insistência. Ergo-me cambaleante ante o sono pesado. Ziguezagueando, entramelo as pernas finas por entre cadeiras, sofás, cantos de parede no corredor. Chego à porta e, ao abrir, cerro os olhos, por causa do sol que invade a casa, àquela hora da manhã. O carteiro, diante de mim, estende um envelope em minha direção e pede para eu assinar um papel. Rabisco qualquer coisa e fecho a porta quase raspando a mão do carteiro.
O carteiro finda ali. O sol tenta entrar pela janela. Jogo o envelope sobre uma mesa, fecho as cortinas e volto a deitar-me. O sono que me incomodava a ponto de deixar-me trôpego parece que desistiu de mim. Rolo para um lado, rolo para o outro, nada. Levanto-me e vou dar com aquilo que me tira o sono, o tal do envelope. Nem olhei direito sobre o que ele trata. Como hoje em dia me correspondo por e-mail, não levei em conta a possibilidade de se tratar de uma carta. Ainda mais, quem me enviaria uma carta a esta altura das coisas? Penso mais tratar-se de uma destas malas diretas de cartão de crédito. Conta não deve ser, não é data para isto.
Pego o envelope e, sem abri-lo, abro as cortinas e as janelas, deixo que entre o sol e tome conta da casa. É uma carta com envelope aéreo e tudo. Tem destinatário, mas não tem remetente. Neste momento, lembro de uns versos de uma canção, que dizem “Quanta verdade tristonha ou mentira risonha uma carta nos traz (composição de Aldo Cabral e Cícero Nunes e interpretada por Isaura Garcia, Vanusa e Maria Bethânia, entre outras).” De repente me bate uma dúvida: eu devo abrir ou não aquela carta? O que poderia eu precisar saber que tivesse de ser através de uma carta anônima?
Mas a curiosidade bate mais forte e decido abrir o tal envelope. Começo observando que tem um estilo formal, com todas as marcações de uma carta pessoal: nome da cidade de origem e a data de sua escritura. Interpelação respeitosa ao destinatário e leitor. Inclusive, o início do texto, “Espero que quando esta chegue às suas mãos o encontre gozando de perfeita saúde, juntamente com os seus...”
Concluo a leitura da carta e fico um tempão tomado pelo que acabo de ler. Aquele modo antigo de escritura revela um autor (ou seria uma autora?), com boa experiência de vida. Talvez, por isto mesmo, tenha preferido me escrever uma carta ao invés de me enviar um e-mail, como seria mais adequado aos dias atuais. Bom, pode ser também que quem a escreveu receie a característica que um e-mail tem de se espalhar em rede, independentemente do cuidado que se tenha ao remetê-lo a apenas um destinatário. Informações tão sérias e graves não interessam, mesmo que se espalhem irresponsavelmente pela rede. Mais do que isto, informações de caráter tão íntimo e pessoal. Corre-me pela espinha um calafrio.
Aquela carta, definitivamente, me desperta para a vida naquela manhã ensolarada. Ainda zonzo, preparo o meu banho e lavo a cabeça como se quisesse limpá-la dos pensamentos que me azucrinam. É impensável que alguém se dê ao trabalho de escrever uma carta com tantas minúcias, dirija-se a uma agência dos correios e ainda pague pela remissão de uma carta que sabe poderá mudar completamente a vida de uma pessoa, gratuitamente.
O desejo de entender os motivos do remetente, ou da remetente, mistura-se com o peso das informações que a carta traz. Parece que quanto mais eu me lavo, mais me sinto contaminado com a sujeira que as palavras, as letras, o texto da carta impregna. Não sei por que, mas à medida que lia o texto, vinha a minha mente uma pessoa, de cuja boca aquelas palavras pareciam estar sendo pronunciadas, de modo bastante apropriado.
Não sei por que aquele estilo circunspeto e incisivo me parece masculino.