sábado, 12 de março de 2011

NON ULTRA


Fim de tarde, a artista pinta sua obra mais perfeita. Trêmula, empunha grosso pincel. Os pelos embebidos chicoteiam em fúria a pele calma da tela. A tinta impregna-se em lanhos, ganhos de alma e cor. A obra rascunhada se transforma, arrisca-se, revela com habilidade o dom da criação. A imaginação dá a senha, e o resto se desenha no toque de suas mãos mágicas. De tal modo executa seu trabalho, que nem se dá conta do quanto de si já migrou para as cores das tintas.
O corpo se contorce e se debate, ora para um lado, ora para o outro. Boca seca, pele seca, tempo úmido. Coisas ditas entre os dentes, sussurros desconexos. Pela segunda ou décima vez, repete o movimento com o mesmo ímpeto incontrolável. É assim que surpreende e parece óbvia demais.
A tarde queima. Um soluço intermitente. O desejo pulsa dentro da escuridão, eriçado, hirto. Cala a vez do próximo e as mãos deslizam pelo corpo em pelo. A pele hirsuta ilha-se em meio ao mundo posto ao alcance. A boca fria ofega em delírios.
Divino, maravilhoso, estado de grande excitação. Cada gesto é novo, é inesperado, mas enche o mundo de grandeza. Parece que canta enquanto pinta a tarde, parece que chora em seu murmúrio de êxtase. Parece que tem anos de ensaios, porque cada gesto é preciso, embora perturbador.
Às vezes é fúria, por outras, é simples e suave como se regesse uma sinfonia. E sua alma transparece no movimento do corpo como um frenesi de um prazer extremo. Afetos afeitos ao ríspido açoite vão se impregnando de tensão, pela frequência com que ocupam espaço e tempo, inexoravelmente. O que parece brusco se converte em delicadeza. Seu talento renova a arte em tudo àquilo que parece conhecido de há muito.
Resplandece um jardim formoso como um lugar pleno de felicidade. O centro dos olhares, o gozo iluminado em que se contemplam todos os detalhes do trabalho até ali empreendido. A aparência do instante materializado traz também uma dualidade contraditória ou paradoxal: conforta e desestabiliza. Conforta porque atende as expectativas e demonstra segurança, mas desestabiliza porque é única e irreversível.
No meio da tarde, uma pergunta se põe como inevitável: depois de tudo, então, o que será das outras tardes que se enfileiram em sua necessária trajetória, mas que não contam com o mesmo furor criativo? Nem bem se delineiam os traços conclusivos e já se há de perguntar pelo que virá depois. Como se o acontecer acontecendo nos fizesse vislumbrar uma saudade, uma ausência. Ou, talvez melhor, uma falta.
A artista não se dá conta deste ponto de fuga que se interpõe ante seu furor de perfeição. Subjaz ao tempo um lugar como cenário e suas cenas, a despeito do que nos damos conta. O início, que principia o fim (em toda a sua ambivalência), ainda é expectativa, mas o final em curso já manifesta sua falta. Pode até ser que tal falta, logo depois, nem seja tão importante assim. É, ainda, no correr do término que esta defasagem se manifesta com maior força.
A tarde em tela se concretizará como narrativa para quem tiver a oportunidade de contemplar a pintura. Mas, de verdade, jamais será a mesma tarde. No momento mesmo em que arde o dia, a pintora faz parte de um detalhe a mais, compõe o cenário com sua cena de pintura. Isto a obra não recupera. Também esta ausência estará sempre presente. Mas talvez a obra mais viva e forte seja aquela que a memória guarda. Esta, junto com todas as emoções de vida, prescindirá da tela porque é outra obra.
O pintar reacende o desejo da pintura para a pintora, porque ela mesma é a realização da sua obra, única e admirável. Aperta o pincel entre os dentes como a senti-lo lâmina sem retorno.