sábado, 16 de janeiro de 2010

NA SEXTA



Quando Regina vai morar no Rio de Janeiro imagina que o sofrimento provocado pela adaptação de viver sozinha será por pouco tempo. Pensa: “logo, logo me acostumo e tiro de letra”. Mas ela descobre que, à medida que o tempo passa, vai ficando mais só. Não entende como antes, quando não conhecia ninguém no prédio onde mora, nem no trabalho, nem no supermercado, nem em lugar algum, sofria menos. Hoje, Regina continua com medo de circular sozinha pelas ruas de Copacabana e até, de vez em quando, tem umas paranóias de se sentir seguida. Várias vezes tem sentido esta sensação. Mas agora, já conhece a família que mora no apartamento vizinho ao seu. Já chama os porteiros pelo nome e, vez ou outra, pede a um deles para ajuda-la a subir com as compras. Depois de muito resistir, até aceitou ir ao cinema com um colega de trabalho que vive dando em cima. Deixa-lo ir ao seu apartamento está fora de cogitação, mesmo se decidir namorá-lo um dia, pensa.
Para sua insatisfação, parece que quanto mais passa o tempo, mais se esgarça sua resistência. E isto porque, pelo menos duas vezes por semestre, viaja à sua terra para encontrar a família. Nessas viagens, já sente, curiosamente, que depois de dois dias começa a sentir falta do seu apartamento, do trabalho, em fim, do Rio de Janeiro. Isso a deixa ainda mais confusa. Agora é uma mulher dividida e tomada de saudade onde quer que esteja: se no Rio, sente falta da terra e da família. Se com a família, sente falta do Rio, inclusive, da companheiro de pano que arranjou para si e com quem mais conversa quando está em casa, especialmente, à noite.
Nesta sexta-feira, Regina acorda sentindo oco, um vazio impreenchível, difícil de suportar. Levanta-se meio sem disposição, estranhando o frio de agosto. A pele arrepiada incomoda de maneira incomum. Pega o fósforo sobre o fogão, em câmera lenta, e quase não consegue girar o botão que libera o gás do aquecedor. Espera a água esquentar. Testa com a ponta do pé, depois com a palma da mão. Nada. Continua fria demais. Decide, então, escovar os dentes enquanto a água do chuveiro aquece. Para não desperdiçar, deixa chuveiro fraquinho. Assim esquenta mais depressa.
Não se reconhece no espelho, os cabelos desgrenhados, os olhos cheios de saudades, a boca sem graça. Definitivamente, acordara a pessoa errada. Em meio a confusão de sentimentos, passa pela cabeça momentaneamente tratar-se do seu amigo de pano. Imagina ser um sonho, ridiculariza o pensamento anterior. Mas seu cabelo está de tal modo desalinhado que, ao abrir a porta do armário para apanhar, finalmente, a escova de dentes, apanha o pente ao invés da escova, retira-o e fecha o armário. Ao se dar conta daquela situação, irrompe uma vontade sem controle de chorar, ao mesmo tempo em que uma gargalhada arrebenta nervosa.
Depois de algum momento sem saber se ri ou chora, afinal, acalma-se. Devolve o pente ao seu lugar, apanha a escova e o creme dental. Olha para o espelho, faz caretas como se a zombar dele. Começa a escovação, lentamente. Aos poucos chega aos seus ouvidos o ruído da água do chuveiro que deixara ligado para aquecer a água. Junto com o ruído da água, o frio sobre pele. Sente como se estivera dormente aquele tempo todo. Sexta-feira, repete para si. Sente uma necessidade enorme de entender o que este dia pode significar dito daquele modo, de si para consigo.
Uma avalanche de lembranças recupera as sextas-feiras em sua vida. Desde a promessa do pai de levá-la ao circo no domingo, os encontros marcados e desencontros imprevistos, porém, marcantes. O café engolido as pressas, a visão antecipada do percurso dentro de um ônibus até o trabalho, as ruas, os prédios, Botafogo, Aterro, Flamengo etc. Sexta-feira repercute no inconsciente, ainda sem saber ao certo o significado deste dia naquele momento de sua vida. O onibus avança com o dia levando Regina consigo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

FLAGELADO




O sol de concreto arde à pele da terra. Uma concha de azul desbotado, emborcada sobre o cinza da paisagem incinerada, delineia o horizonte distante. Uma estrada de piçarra que vai do sertão ao litoral, riscando a monotonia da caatinga, estremece a extremidade distante. O vento quente redemoinha a poeira do meio dia. Pendurada à estrada, uma casa de taipa refugia-se à sombra rala de um cajueiro. No interior da casa esgueiram-se os moradores.
No cenário de sol saturado, alguém se desloca na piçarra aproximando-se lentamente mais e mais. Chega à casa e, emoldurado em contra-luz, à meia porta, bate palmas. Uma mulher vem atender e refuga os traços. Os traços, trapos do homem esmolambado que pede água, assustam.
Em tempos secos circulam estórias de pessoas que, a pretexto de pedir água, invadem as casas para saquear. O terror se interpõe. Mas, sob a proteção da luz do dia, a mulher retorna à cozinha para apanhar a água. Entrega-lhe o copo de alumínio, machucado, ao pedinte. Ele estende a mão direita para apanhar o copo e, ao mesmo tempo, estende a esquerda como se tentasse pegar o braço da mulher. De supetão, ela empurra o copo e recolhe o braço. O homem toma a água e guarda num saco sujo o copo, sob os protestos da mulher. Ele se vira e, com a mesma lentidão com que chegou, se afasta e retoma a estrada.
O sol declina e a tarde esvai-se à boca da noite.
Por essas épocas é comum que apareçam seres estranhos que tentam escapar à escassez da seca ou, simplesmente, perambulam sem rumo pelas estradas. Transitam como cometas que só retornam sob as mesmas condições. Mas também surgem outras estórias, as mais diversas. Abordam enredos em que estas pessoas que esmolam são representadas como personagens envolvidas em violência e mistério.
A noite avança e o movimento da casa vai se encaminhando para a dormência após o jantar minguado. Luzes de lamparina estremecem sob a brisa suave ao som dos grilos e, vez em quando, o canto de uma coruja. Enquanto armam as redes nos lugares marcados, ouvem que batem à porta. A mulher achega-se receosa e olha pela fresta, vê que se trata do mesmo homem em trapos que passara anteriormente, a pretexto de pedir água para beber, e levou consigo o copo. Ele está em pé, diante da porta, aguardando que o atendam. Visto que naquele dia apenas ela e as crianças estão em casa, resolve não abrir. O marido saíra para trabalhar numa frente de serviço do governo e só retorna no final da semana. Sem abrir a porta, ela pergunta o que ele deseja. O homem não responde e como se não a ouvisse volta a bater na porta.
Tomada de medo a mulher decide não alarmar para não assustar as crianças, pede que ele vá embora e que não abrirá a porta àquela hora da noite. Informa que adiante há uma mercearia com grande alpendre onde, geralmente, se arrancham caminheiros.
O homem insiste nas batidas, elas vão encurtando ficando mais insistentes e em intervalos cada vez menores. Ela, percebendo que as crianças se aproximam, resolve acalma-las, mas sem sucesso. Choramingam e pedem que ela não abra.
A mulher sabe da fragilidade da porta, no momento que quiser aquele homem entrará na casa. Ele pára de bater a porta. Ela sente um breve alívio e milhares de pressentimentos lhes vêm. Pode estar-se preparando para novas investidas. Pode estar tramando outras ações... Enquanto medita vai juntando ao pé da porta o que pode empurrar para dificultar que o homem entre. Olhando pela fresta observa que ele caminha à frente da casa de um lado para o outro, lentamente. Vez ou outra ele volta a bater forte a porta. Cada toque é um susto.
De tão distante a casa está de outras casas que não adianta pedir por socorro. Naquela estrada, àquela hora, ninguém caminha. Só raramente. Sem alternativas, resolve trancar-se no quarto com as crianças e deitar-se com elas numa mesma rede. Ali, juntinhos, adormecem.