sábado, 26 de fevereiro de 2011

NA OUTRA LINHA, PARÁGRAFO


CIGARRO

Olho a noite pela
vidraça. Um beijo, que passa,
acende uma estrela.

Guilherme de Almeida

O ruído da chuva me desperta, mas retira a disposição de me levantar. É contra a vontade que saio da cama em direção ao banheiro. Ligo o chuveiro e a água fria dói na pele da alma. A preguiça aos poucos vai embora e o sono resistente apazigua o corpo molhado. Após o ritual do banho e do banheiro, sento à mesa para tomar café. O café quentinho reanima a manhã chuvosa. Olho a chuva intensa que lava a cidade inteira. Novamente sinto vontade de voltar à cama.
Empurro-me para o carro, ligo o motor e o rádio, que chora uma canção encharcada. O carro em marcha lenta sabe bem o caminho. Tomo a avenida enevoada e vou adiante. Muitos outros carros vão devagarzinho numa procissão metálica. Ninguém parece ter pressa, nenhuma pressa. De vez em quando o locutor da emissora de rádio gagueja umas notícias sem importância.
Primeira marcha, segunda, freio. Primeira marcha, segunda, freio. Assim vão-se arrastando por um longo tempo as filas paralelas de carros. Eu sempre escolho a faixa mais lenta. Angustia-me que as outras consigam ir adiante enquanto a fila em que estou amorrinha-se. O limpador de parabrisa inquieta-se num vai e vem frenético. Em dias de chuva, as músicas no rádio não têm a menor graça. Nem a gagueira do locutor do noticiário. É tudo aborrecido, entediante.
Primeira marcha, segunda. Freio. Primeira marcha, segunda, freio. Ligo o desembaçador e estranho, porque não parece fazer qualquer efeito. O vidro embaçado acinzenta ainda mais a paisagem.
Faz tempo que percorro a casa ao lado. Tudo se alonga além das medidas. O locutor gagoconta que a chuva que molhou a noite e encharca a cidade desabrigou famílias na zona norte, na região das olarias. Vem à memória o drama recente em que autoridades governamentais discutiam nas TVs, com repercussão nos jornais da cidade, sobre de quem seria a responsabilidade de restituir a tranquilidade de famílias desabrigadas no inverno passado. Não sou eu quem repete esta história, é a história que adora uma repetição, diz a canção popular.
Primeira marcha, segunda, freio. Primeira marcha, segunda, freio. Eu sempre escolho a faixa mais lenta. Ouço que os rios que atravessam a cidade ameaçam transbordar. A água busca os céus e não mais em forma de vapor, mas em estado líquido. O rio de carros se arrasta há horas. A chuva aumenta e o limpador de parabrisa agita-se ainda mais. Os semáforos apagados denunciam a falta de energia. Os cruzamentos ficam confusos e o caos se instala de vez. Paciência e muito cuidado. Segunda marcha, primeira. Freio.

3 comentários:

  1. Um instante, o "é" da coisa, como diria Clarice Lispector.Eu digo: "em um instante qualquer. A chuva, o despertar, o cheiro do café, o carro, as águas, o homem!" e você, Laerte, com a alma inundada de poesia! Cheiros, Rita de Cássia.

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  2. Há quem diga que a leitura é um processo de recriação de textos. Neste sentido, muito do que sentimos ao ler um texto parte da nossa própria sensibilidade. Eu só posso agradecer a Rita, a Samara e a todas as pessoas que, gentilmente, comentam meus textos com tanta generosidade, por tudo o que as suas leituras acrescentam a eles.

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