CIGARRO
acende uma estrela .
Guilherme de Almeida
O ruído da chuva me desperta, mas retira a disposição de me levantar . É contra a vontade que saio da cama em direção ao banheiro . Ligo o chuveiro e a água fria dói na pele da alma . A preguiça aos poucos vai embora e o sono resistente apazigua o corpo molhado . Após o ritual do banho e do banheiro, sento à mesa para tomar café . O café quentinho reanima a manhã chuvosa . Olho a chuva intensa que lava a cidade inteira . Novamente sinto vontade de voltar à cama .
Empurro-me para o carro , ligo o motor e o rádio , que chora uma canção encharcada. O carro em marcha lenta sabe bem o caminho . Tomo a avenida enevoada e vou adiante . Muitos outros carros vão devagarzinho numa procissão metálica . Ninguém parece ter pressa , nenhuma pressa . De vez em quando o locutor da emissora de rádio gagueja umas notícias sem importância .
Primeira marcha , segunda , freio . Primeira marcha , segunda , freio . Assim vão-se arrastando por um longo tempo as filas paralelas de carros . Eu sempre escolho a faixa mais lenta . Angustia-me que as outras consigam ir adiante enquanto a fila em que estou amorrinha-se. O limpador de parabrisa inquieta-se num vai e vem frenético . Em dias de chuva , as músicas no rádio não têm a menor graça . Nem a gagueira do locutor do noticiário . É tudo aborrecido , entediante.
Primeira marcha , segunda . Freio . Primeira marcha , segunda , freio . Ligo o desembaçador e estranho, porque não parece fazer qualquer efeito . O vidro embaçado acinzenta ainda mais a paisagem .
Faz tempo que percorro a casa ao lado . Tudo se alonga além das medidas . O locutor gago dá conta que a chuva que molhou a noite e encharca a cidade desabrigou famílias na zona norte , na região das olarias . Vem à memória o drama recente em que autoridades governamentais discutiam nas TVs, com repercussão nos jornais da cidade , sobre de quem seria a responsabilidade de restituir a tranquilidade de famílias desabrigadas no inverno passado . Não sou eu quem repete esta história, é a história que adora uma repetição , diz a canção popular .
Primeira marcha , segunda , freio . Primeira marcha , segunda , freio . Eu sempre escolho a faixa mais lenta . Ouço que os rios que atravessam a cidade ameaçam transbordar . A água busca os céus e não mais em forma de vapor , mas em estado líquido . O rio de carros se arrasta há horas. A chuva aumenta e o limpador de parabrisa agita-se ainda mais . Os semáforos apagados denunciam a falta de energia . Os cruzamentos ficam confusos e o caos se instala de vez . Paciência e muito cuidado . Segunda marcha , primeira. Freio .
Poesia nas entrelinhas. Belo.
ResponderExcluirUm instante, o "é" da coisa, como diria Clarice Lispector.Eu digo: "em um instante qualquer. A chuva, o despertar, o cheiro do café, o carro, as águas, o homem!" e você, Laerte, com a alma inundada de poesia! Cheiros, Rita de Cássia.
ResponderExcluirHá quem diga que a leitura é um processo de recriação de textos. Neste sentido, muito do que sentimos ao ler um texto parte da nossa própria sensibilidade. Eu só posso agradecer a Rita, a Samara e a todas as pessoas que, gentilmente, comentam meus textos com tanta generosidade, por tudo o que as suas leituras acrescentam a eles.
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