segunda-feira, 6 de junho de 2011

EM CADA LEITOR UM AUTOR DIFERENTE



A história das reputações é uma crônica de maiores ou menores discrepâncias. Há sempre uma brecha entre aquilo que alguém faz e aquilo que o mundo percebe que a pessoa fez. Algumas discrepâncias são temporais [...], outras são espaciais [...], mas poucas são tão grandes quanto os anacronismos e as ironias que caracterizam a carreira e a reputação de Mikhail Milakhalóvitch Bakhtin (1895-1975).
K. Clark e M. Holquist

O pensador reúne-se em torno de uma mesa com o seu grupo de interlocutores: amigos, igualmente, pensadores acerca das coisas humanas que, finalmente, são despejadas ao mundo como sentimento e reflexões, e que passam, então, a fazer parte do mundo também. Materializam-se e são discutidas, repartidas, esgarçadas, apropriadas e, por fim, disputadas em todos os seus aspectos, conceptuais originários.
Em torno daquela mesa, sob a luz de candeeiros, fica-se a noite toda a discutir acerca da alma, das dores, das vergonhas e dos dizeres. Um vinho aquece o corpo e alimenta as ideias. A fumaça entremeia aquelas figuras e provoca crises de tosse. Um deles, no entanto, concentra as atenções e, para ele, os outros se voltam ao simples gesto de pronunciar algo.
Noites e noites vão se passando com poucas alterações no cenário. Dali, pessoas, aparentemente simples, entram e saem, comem, fazem suas necessidades e retornam. Vivenciam naquele recinto as pressões dos tempos difíceis e ameaçadores que o País atravessa. As conversas sobre arte, literatura, filosofia da linguagem e outros temas, igualmente áridos, por vezes, são restringidos por conta do que poderão acarretar para o grupo ou para um de seus componentes, dado que tudo está vinculado ao contexto político e histórico.
Pouca coisa destas conversas tomou o destino das páginas e das edições de livros. Muito ficou restrito ao cenário das longas e cansativas discussões. Mas o pouco que foi publicado modificou e modifica, ainda hoje, o modo de pensar, o conhecimento, a literatura, a constituição de subjetividade e as relações identitárias, autoritárias e as teorias da linguagem.
Várias áreas do conhecimento, através de pesquisadores, estudiosos e outros autores, no mundo inteiro, tomam contato com os poucos produtos que conseguiram se materializar daquelas discussões. E em nenhuma destas áreas alguém consegue ficar indiferente. Os atuais métodos de pesquisa histórica, as modernas metodologias de pesquisa em comunicação, os mais avançados estudos de legislação apropriam-se de visadas bem particulares, recriam outras e lhe atribuem referência autoral.
Fundam-se núcleos de pesquisa e de discussão sobre todos os olhares. Em cada um deles é carimbada a marca confiável de sua autoria. Deste ponto de vista, exagera-se a ponto de parecer que alguém extremamente humano tenha adquirido a condição de um semideus, um gênio sem parâmetros de comparação.
A simplicidade de seus pensamentos e reflexões ganha em complexidade, e suas derivações são de tal ordem que ele próprio não se reconheceria nas citações que tentam dar legitimidade aos textos resultantes de pesquisas e observações científicas, com o mais exigente rigor. Daí as discrepâncias referidas na epígrafe deste texto.
O pensamento do autor, sua obra e sua imagem ganham uma elasticidade e uma diversidade que o fazem pairar sobre o tempo de lugares tão distantes e tão díspares, que mais se assemelha a uma rede de inter-relações infinitas. Ele já não se pertence. Não é mais como um homem simples, posto ao redor de uma mesa a beber, comer e a discutir, inclusive, amenidades, com seus pares.
O autor multiplica-se em títulos nas livrarias, alimenta a sanha produtiva da academia, a sanha comercial das editoras e dos livreiros a ponto de provocar cada vez mais leituras pelo mundo afora. O seu nome é uma garantia de interesse de leitores em número crescente. As ideias, que agora dizem que são suas, se multiplicam sem qualquer controle. No seu país, pesquisadores estrangeiros buscam aquelas páginas esquecidas no fundo de alguma gaveta, e tradutores empenham-se em lançar no mercado as últimas descobertas, textos inéditos. Daqui a pouco haverá necessidade de que tudo seja contraditado ou esquecido, e outros autores, saídos de lugares mais distantes, haverão de ocupar o seu lugar.

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