terça-feira, 8 de setembro de 2009

COISAS QUE NÃO FALAM DIZEM COISAS



Um cheiro de tarde entra pela janela aberta, um vento frio agita as cortinas e esfria o tempo no interior da sala. Levanto-me com o intuito de fechar a janela, antes estico o olhar por sobre a grama amarelecida que o vento despenteia e que contorna a casa, antes que a vista alcance a areia da praia. Adiante, o mar encrespa-se. Penso que pode haver ressaca esta noite. Fico um bom tempo observando o agito da brisa e um pedaço de papel de jornal me chama a atenção: vem rolando sobre a grama, como se brincasse, ao sabor do vento frio. Para próximo à parede da casa, detido por um ramo seco fincado na areia.
De imediato, me dou conta dos movimentos diversos ali expressos: tudo o que move os procedimentos de fabricação do papel, os processamentos industriais de produção da notícia impressa nos jornais e, contrariamente, o tempo atuando sobre o papel até deixá-lo com aquele aspecto envelhecido; a primeira condição daquela página numerada, como parte de um caderno, até sua nova condição de fragmento solto e entregue ao vento; a origem, o seu lugar de partida (jornal O Povo, Fortaleza, Ceará, edição de 18 de abril de 2002), e sua trajetória até ali, sendo deslocado como se vida própria tivesse; o objetivo de tornar-se notícia, como novidade e atualidade, e o seu estágio atual de lixo urbano em decomposição. Neste aspecto, amanhã já não estará mais ali, o lixeiro há de catá-lo junto com as folhas e outros detritos.
Num arquivo do proprio jornal, de uma biblioteca ou de um museu seria memória, seria história, material para pesquisa para o interesse de vários cientistas: historiadores, sociólogos, comunicólogos, professores etc. Uma narrativa acerca da realidade de um lugar, num tempo determinado, com registro do tipo de fazer e pensar de alguém, de uma comunidade, de uma época. Problemas humanos observados sob diversos pontos de vista.
Por pura curiosidade, busco ver que notícias aquela quase folha de jornal traz. Deve ser pouco mais de meia página, rasgada irregularmente na parte anterior. O título de uma das matérias anuncia seguinte: “Placa com nome errado de avenida está exposta há 2 anos”. O texto fala sobre uma placa indicativa numa Rua de Fortaleza chamada 31 de abril. Nem me fixo muito em qual calendário a Prefeitura de Fortaleza pode ter encontrado o mês de abril com 31 dias ou mesmo no disparate que é uma placa de rua homenagear uma data que não existe. Que fato poderia ter ocorrido nesta data? Sim porque uma data não tem nenhum valor se não marca um acontecimento importante. De imediato, penso em quantas pessoas devem se orientar pelas placas das ruas sem ao menos refletir sobre do que tratam: datas ou nomes de homenageados.
Todos os dias passamos por placas nas esquinas das ruas e não nos perguntamos sobre a pertinência do nome da rua, da justeza da homenagem e nem sobre se estão corretos ou não os dados ali postos a nos servirem de orientação. Por que alguém agora se deu conta que há dois anos uma placa de uma Rua no Bairro Aeroporto, em Fortaleza, se chama 31 de abril? E por qual motivo este pedaço de jornal veio parar nesta praia, tão distante do Ceará?
Deixo em paz a página de jornal e estico a vista para mais adiante onde uma canoa balança, movida pelas ondas do mar. Não tem ninguém sobre si, fica-se a resvalar nas ondas e agitar-se mais ou menos a depender do tamanho de cada onda que lhe impacta. A pouca luz que ainda resiste à tarde mostra suas tábuas escurecidas e restos de cores vermelhas e azuis em faixas paralelas que lhe devem ter sido pintadas quando antes mais nova. Seu estado fala do tempo gasto ao longo de chegar até sua condição atual. Fala, talvez, do descuido do seu dono que não lhe renova as cores. Ou, quem sabe, da precariedade dos recursos que possui que não lhes permitem pinta-la novamente.
Fala de suas idas e vindas ao alto mar em busca do peixe para a venda e para a mesa do pescador: o atrito com a água deve ter-lhe esmaecido as cores. Não há dúvidas de que se trata de um pescador, nesta região não existem pescadoras que utilizem canoas para arriscar-se em mar aberto. Uma vez ou outra, vemos alguma mulher pescando à tardinha, mas de anzol, á beira do mar. Usam o caniço longo e arremessam o anzol distante, ficam-se ali até que algum peixe miúdo belisque, donde vão enrolando a linha até ter o peixinho à mão. É só um espécie de prazer que têm, o de fisgar peixinhos miúdos ao final das tardes com os pés fincados na pouca água que as ondas arremessam mansamente.
Agora, olhando para dentro de casa, a escuridão me diz para acender uma luz. A pele resfriada pede para eu fechar a janela e ir-me requentar no interior da casa ou na sopa quente que me espera à mesa.

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