sábado, 12 de setembro de 2009

ÓCULOS E DISCURSOS PERDIDOS.


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Tenho que viajar amanhã cedinho e, apesar das altas horas da madrugada, ainda estou aqui revisando um discurso que acabei de redigir. Os olhos parecem trocados e, vez em quando, fico um pouco confuso, as letras mexendo-se no teclado do computador. Na verdade, não é amanhã cedinho que eu devo viajar, é daqui a pouco, às 6:30h da manhã.
O dia desfaz a noite e eu tento imprimir o discurso enquanto a impressora encrenca. Não imagino por qual motivo. Começa a me bater certo sentimento de que talvez não consiga imprimir o texto e depois tomar banho, tomar café, trocar de roupa e depois de tudo, chegar a tempo de tomar o avião para a Bahia. Acho que eu esqueci de por nesta ordem de tarefas a mala que ainda tenho de fazer. Isto se a impressora resolver colaborar. Ah, finalmente. O texto impresso, sem problema.
O que é mesmo agora que eu tenho que fazer? Volto ao parágrafo anterior, bom, tenho que tomar banho. Ligo o chuveiro e deixo a água ir esfriando o cérebro (ou quase isto). A sensação do banho me reanima e as coisas parecem menos problemáticas. Confira a lista acima e veja as outras coisas que eu vou fazendo. Claro, ponha antes de tudo a mala.
          Desço arrastando a mala pelas escadas porque não tenho tempo para ficar esperando o elevador que, por desconto de pecado, acaba de passar reto no andar que estou agora, não atendendo ao meu chamado. Chego, finalmente, à portaria, comigo, os passageiros do elevador que ignorou o meu chamado, que chegam junto.
Tomo o táxi e comunico ao motorista para baixar o pé, sem dó. Ele me olha desafiador e segue em marcha lenta. Peço para ele parar, quero apanhar um táxi que respeite a minha pressa. Resmunga algumas coisas indecifráveis e vai adiante. Protesto, mando que pare, ele não escuta. Acelera um pouco mais e vai adiante, calado. Percebo que me observa pelo retrovisor, com cara de poucos amigos. Xingo, comigo, ele e várias gerações dele.
          No aeroporto, nenhum aviso de atraso de vôo. Pelo menos isto me alivia. Em pouco tempo, estou acomodado olhando, sem escutar, o discurso cheio de gestos que uma comissária de bordo faz diante de mim. Depois disto, a aeronave já está pousando no aeroporto de Salvador. Dormi pesadamente, concluo.
Vou para o Centro de Convenções e lá encontro o grupo de recepcionistas que estavam me aguardando. Falam dos procedimentos, me comunicam que a minha participação é a primeira. Entre eles, uma jovem que me convida para sentar num quiosque enquanto não inicia. Sentamos numa mesa afastada, ela pede uma cerveja. Conversamos amenidades, não quero retirar a surpresa da fala que está no meu discurso depois de ter atravessado a noite em claro pensando e escrevendo cada palavra, caprichosamente.
Retiro os óculos para limpar a lente e, como que por hábito, guardo no envelope que está sobre a mesa, junto com o texto do improviso. Bate uma chuva repentina e nos retiramos da mesa às pressas. A garota tem um papo interessante e a cerveja a deixa cada vez mais atraente. Ou seria a carência? Discutir isto agora não faz o menor sentido. O que é certo é estamos nos dando muito bem. Vejo que nos chamam, é um dos caras que me recebeu quando cheguei ao Centro de Convenções. Avisa que temos que ir para o Auditório, serão iniciadas as atividades do evento e eu serei o primeiro a falar.
          Chamam-me para a mesa e a garota senta-se ao meu lado. Sinceramente, não ouvi ninguém anunciando seu nome, mas também não vou polemizar, não me cabe. Até gosto que ela esteja ali, ao meu lado. O presidente da mesa me anuncia e me passa a palavra. Acho estranho que eu não consiga distinguir com clareza as pessoas á minha frente, sentadas naquele auditório. Param de aplaudir, procuro o envelope que deve estar comigo e que tem o texto do discurso. E os meus óculos, também. Entendo porque tenho dificuldades para distinguir as pessoas. Não encontro o tal envelope.
Resmungo uns impropérios, enquanto um silêncio pesado cai sobre o tempo. Sem o discurso e sem os óculos, agradeço o convite, a presença de todos, cumprimento os ocupantes da mesa e fico sem saber mais o que dizer. Passa pela minha cabeça uma solução estapafúrdia e, sem que eu mesmo me controle, passo a palavra à jovem ao meu lado alegando que ela é baiana e que, certamente, tem mais o que dizer do que eu. Para o meu espanto, a garota se levanta, toma o microfone e dana-se a falar asneiras, coisas sem sentido. Surge um ensaio de vaia, mas não prospera. Não sei o que faço aqui, sem meu discurso e sem meus óculos.

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