sábado, 12 de dezembro de 2009

VISAGENS




O jogo de cartas adormece a atenção ao tempo. De susto percebe-se que a noite avança pela madrugada. Um cuidado alfineta os sentidos e a lembrança de casa finaliza a última mão do relancinho.

A lua cheia reluz no caminho estreito de areia branca, madrugada alta. O passo largo avança rápido roçando o embainhado da calça nas ramagens de salsa que estreita a picada. Ruído marcado da respiração ofegante e do atrito da roupa no mato. A lua baixa alonga a sombra para trás.

Erguendo a cabeça com o olhar à frente percebe alguém que caminha adiante, pouco mais de duzentos metros. Acelera o passo, imaginando tratar-se de alguém conhecido. Chapéu de aba e roupa branca repercute o luar. No entanto, ao alcançar o cume do alto, a pessoa desvia-se e penetra a mata alta, à esquerda. Nenhuma suposição. Ignora o fato motivado pela preocupação com o avançado da noite.

Pouco mais adiante, ouve o ruído de algo que se projeta no ar indo, em seguida, chocar-se contra o chão, jogando poeira às margens do caminho. É um pedaço de galho de gameleira, de uns setenta centímetros, cortado em bico de gaita nas extremidades, num golpe só por vez. O comum é que houvesse escutado o barulho, mas nada foi ouvido. O estranho é que não há sentido aparente para o acontecimento.

Não há muito o que pensar. É continuar seguindo e apressar ainda mais a marcha.

Aos poucos começa a ouvir um choro angustiado e inteiriço. Vem a lembrança da esposa que está só em casa. Encontra-se grávida do primeiro filho e pode estar sentindo dores. Andar apressado, agora, já não basta. É necessário correr, pode ser que esteja precisando de ajuda. Marinheiro de primeira viagem, não consegue imaginar o que possa fazer ou, antes, o que possa estar havendo.

De relance, sente um remorso por estar jogando baralho enquanto a mulher, gestante, ficara só em casa. Em seguida, imagina que não há de ser nada, conforma-se. O choro vai ficando mais alto à medida que se aproxima de casa.

A roupa encharcada de suor parece limitar os movimentos. De vez em quando é necessário parar para respirar. O percurso parece que se espicha. Ao chegar, o choro para e o silêncio incomoda até mais. Salta a cerca do quintal e busca a porta da cozinha num movimento automático. Ela sempre está só, encostada, à sua espera. Entra em casa e com alívio percebe que a esposa dorme serenamente.

Suado e cansado, senta-se e se deixa ficar por bom tempo com os braços estendidos, o corpo recostado na cadeira. Recomeça o choro, mas desta vez parece distante.

Pela manhã, acorda com a voz de alguém que chama seu nome. Levanta-se, sente o cheiro do café novinho. A esposa, em sua atividade diária, parece desconhecer qualquer coisa a respeito do que aconteceu à noite passada, e, como se acostumada, nem pergunta mais onde esteve. Não parece aborrecida. Prepara a mesa do café no ritmo do esperado.

Continuam a chamar seu nome para além do cercado. Abre a porta e manda que se aproximem três pessoas, após identificá-las: são vizinhos que ficaram de acertar trabalho na roça.

Na mesa de café, ele conta o ocorrido e ninguém dá notícia de ter ouvido qualquer coisa estranha na noite anterior, muito menos choro. Mas um dos vizinhos relata que outras pessoas por ali já se referiram a algo parecido. Diz que se trata de recém-nascido, falecido e enterrado na porteira do curral, sem o devido batismo. Alguém tem que desenterrar e batizar para que o caso não volte a acontecer.

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