domingo, 10 de janeiro de 2010

FLAGELADO




O sol de concreto arde à pele da terra. Uma concha de azul desbotado, emborcada sobre o cinza da paisagem incinerada, delineia o horizonte distante. Uma estrada de piçarra que vai do sertão ao litoral, riscando a monotonia da caatinga, estremece a extremidade distante. O vento quente redemoinha a poeira do meio dia. Pendurada à estrada, uma casa de taipa refugia-se à sombra rala de um cajueiro. No interior da casa esgueiram-se os moradores.
No cenário de sol saturado, alguém se desloca na piçarra aproximando-se lentamente mais e mais. Chega à casa e, emoldurado em contra-luz, à meia porta, bate palmas. Uma mulher vem atender e refuga os traços. Os traços, trapos do homem esmolambado que pede água, assustam.
Em tempos secos circulam estórias de pessoas que, a pretexto de pedir água, invadem as casas para saquear. O terror se interpõe. Mas, sob a proteção da luz do dia, a mulher retorna à cozinha para apanhar a água. Entrega-lhe o copo de alumínio, machucado, ao pedinte. Ele estende a mão direita para apanhar o copo e, ao mesmo tempo, estende a esquerda como se tentasse pegar o braço da mulher. De supetão, ela empurra o copo e recolhe o braço. O homem toma a água e guarda num saco sujo o copo, sob os protestos da mulher. Ele se vira e, com a mesma lentidão com que chegou, se afasta e retoma a estrada.
O sol declina e a tarde esvai-se à boca da noite.
Por essas épocas é comum que apareçam seres estranhos que tentam escapar à escassez da seca ou, simplesmente, perambulam sem rumo pelas estradas. Transitam como cometas que só retornam sob as mesmas condições. Mas também surgem outras estórias, as mais diversas. Abordam enredos em que estas pessoas que esmolam são representadas como personagens envolvidas em violência e mistério.
A noite avança e o movimento da casa vai se encaminhando para a dormência após o jantar minguado. Luzes de lamparina estremecem sob a brisa suave ao som dos grilos e, vez em quando, o canto de uma coruja. Enquanto armam as redes nos lugares marcados, ouvem que batem à porta. A mulher achega-se receosa e olha pela fresta, vê que se trata do mesmo homem em trapos que passara anteriormente, a pretexto de pedir água para beber, e levou consigo o copo. Ele está em pé, diante da porta, aguardando que o atendam. Visto que naquele dia apenas ela e as crianças estão em casa, resolve não abrir. O marido saíra para trabalhar numa frente de serviço do governo e só retorna no final da semana. Sem abrir a porta, ela pergunta o que ele deseja. O homem não responde e como se não a ouvisse volta a bater na porta.
Tomada de medo a mulher decide não alarmar para não assustar as crianças, pede que ele vá embora e que não abrirá a porta àquela hora da noite. Informa que adiante há uma mercearia com grande alpendre onde, geralmente, se arrancham caminheiros.
O homem insiste nas batidas, elas vão encurtando ficando mais insistentes e em intervalos cada vez menores. Ela, percebendo que as crianças se aproximam, resolve acalma-las, mas sem sucesso. Choramingam e pedem que ela não abra.
A mulher sabe da fragilidade da porta, no momento que quiser aquele homem entrará na casa. Ele pára de bater a porta. Ela sente um breve alívio e milhares de pressentimentos lhes vêm. Pode estar-se preparando para novas investidas. Pode estar tramando outras ações... Enquanto medita vai juntando ao pé da porta o que pode empurrar para dificultar que o homem entre. Olhando pela fresta observa que ele caminha à frente da casa de um lado para o outro, lentamente. Vez ou outra ele volta a bater forte a porta. Cada toque é um susto.
De tão distante a casa está de outras casas que não adianta pedir por socorro. Naquela estrada, àquela hora, ninguém caminha. Só raramente. Sem alternativas, resolve trancar-se no quarto com as crianças e deitar-se com elas numa mesma rede. Ali, juntinhos, adormecem.

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