sábado, 19 de setembro de 2009

AMPARO E DESAMPARO




O coveiro Antonio Gaspar recebeu a ordem para que desocupe o túmulo que era da família Ferreira. Aquele túmulo que ele cuida com muito cuidado e que lhe traz tantas lembranças. Foi ali que ele conheceu Amparo. Várias e várias vezes ela contou para ele a história que acabou, como conseqüência, unindo os dois, ao menos, por uns tempos.
Amparo chegou a sua casa naquele dia, após o trabalho, e soube que o marido havia saído com o filho para dar um passeio, de bicicleta. Era hábito de Teobaldo, o marido, fazer aquele passeio à tardinha. Mas, justo naquele dia ela havia saído do trabalho mais tarde e esperava encontrá-los em casa, naquele horário já haveriam de ter retornado, como faziam sempre. Vendo que não haviam ainda chegado, passou-lhe um mau pressentimento. O tempo foi passando e ela ficando cada vez mais aflita. De repente, lembrou que no caminho do trabalho para casa, ali próximo, viu que havia um movimento como se algum acidente houvesse ocorrido. Todos que vinham no coletivo viram. E, de relance, lembrou que alguém comentou alguma coisa sobre um ciclista. Na hora, não ligou. Mas agora imagina que pode ter sido seu marido quem estava lá, acidentado.
Decidiu procurar então nos hospitais próximos e acabou encontrando o marido e o filho, mortos, no hospital municipal de atendimento de urgência.
Ela sofreu muito, como é natural. E, para aliviar o sofrimento, começou a ir ao cemitério todos os dias para visitar o túmulo do marido e do filho. Foi, então, que Antonio Gaspar a conheceu.
Em sua recordação, ele reconstitui o dia em que logo ao chegar para trabalhar viu aquela mulher se desmanchando em lágrimas por causa da morte do marido. Uma cena muito comum, não fosse pelo exagero com que a mulher chorava e lamentava o falecimento do esposo e do filho de sete anos.
Ele não entendia por que depois de tanto tempo presenciando cenas iguaiszinhas àquela, se comoveu tanto a ponto de se aproximar da mulher para oferecer ajuda. Sua oferta era, a princípio, desinteressada, apenas para acalmá-la e para ver a retirava daquele lugar e daquela situação. Mas as cenas foram se repetindo todos os dias dali por diante e o tempo em que ele passava com ela foi se alongando dia após dia.
Ficaram amigos, passaram a sair juntos nos finais de semana. Num certo dia, depois de um final de sábado repleto de festinhas e comemorações, ele acordou e percebeu que havia dormido na casa dela. Não lembrava como chegara até ali. Dormira fora de casa pela primeira vez na vida. A esposa deveria estar muito preocupada. Saiu dali, procurou um telefone e inventou uma história qualquer como desculpa.
Depois disto, foram ficando juntos dias, semanas e, como era de se esperar, ela engravidou. Não era para engravidar, mas engravidou. De modo algum ela quis tirar o menino. Gaspar também não insistiu. Tinha outra família com três filhos, mas Amparo não lhe cobrava nada, disse que assumiria a gravidez até sozinha se fosse necessário, ele ficou descansado.
Mas as coisas complicaram quando a esposa soube do que estava ocorrendo. E para piorar, Amparo foi reclamando mais tempo para os dois e, depois, os três. Com o nascimento do filho, não deu mais para conciliar as duas casas porque as cobranças se multiplicaram de ambos os lados. A esposa ameaçava sair de casa com os filhos. Ficou de tal modo insuportável que Gaspar e Amparo tiveram que se separar.
Ele soube depois, pela boca dos outros, que Amparo havia tomado a decisão de vender o túmulo da família. Dizia que era para poder juntar o dinheiro da venda com a parte de outra venda, a da casa em que morava, desejava comprar uma casa melhor. Mas Gaspar sempre achou que, na verdade, ela não queria mais o túmulo porque sempre que fosse lá teria de encontrá-lo. Não considera correto que ela tenha deixado que os restos mortais do filho e do marido ficassem sem abrigo, pelo simples capricho de um amor desfeito. No entanto, nada pode fazer, não tem onde guardá-los.
Agora está ali, com aquela ordem na mão. Terá que cumprir, afinal é o seu trabalho, mas entende que aquela tarefa é para ele como se estivesse desenterrando a si próprio e o seu passado.

Um comentário:

  1. Vc já leu um capítulo do livro "temportais" de Khalil Gibran, que se não me engano, e chama "O Coveiro"? Comoveu tanto quanto...
    :)

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