sábado, 30 de janeiro de 2010

URBANÂNIMA


Foto do autor

  A felicidade que anima a urbe não tem nada a ver com a felicidade de cada um dos personagens que lhe dão alma e vida. Cada um está na luta pela conquista de seus projetos. E se é necessário que outros acudam, que lhes deem uma força é porque os fragmentos se completam como nos quebra-cabeças. Cada um desses também está envolto com seus próprios desejos.
Pela manhã, os ônibus transitam transbordantes de vazios. Olhos espiam o nada que traspassa as calçadas, de dentro para fora. A cidade fervilha o dia inteiro. Máquinas e papéis esbaldam-se às mãos de tanto trabalho. Depois é verter a cerveja numa latrina, no intervalo da euforia embriagada. Dentes à mostra, um beijo após outro e o vômito seguido de gozo. Ninguémnotícia do outro: o prazer é solitário e único. Anoitece e as gentes refugiam-se olhos pregados na TV. Cada um na sua. Os perfumes mesclam-se, mas não se misturam, findo o papo, acompanham seus corpos embevecidos em busca de outros leitos. É a regra: entornam-se e escorrem lentamente sem destino.
Os automóveis velozes e ferozes disputam corridas sozinhos, resguardam noturna solidão. Os rios fatiam a cidade. As pontes ultrapassam itinerários, alongam sinais para além das esquinas. No contorno das casas, as ruas desertam-se, ausentam-se como um tempo ido sem testemunha. No âmago, famílias desencontram-se no cotidiano hábito de dividir do pão.
Café da manhã. Deixam-se os quartos em busca da mesa no tempo marcado do dever, sob a orientação do cronômetro. O tempo da mesa é individual. Quando dois esbarram-se, sorriem como se compartilhassem o rompimento do planejado. Em seguida dão-se a vez ao outro. A roupa trocada após o banho, o tênis calçado sem meia e depois pés perseguem os rastos dos dias anteriores e somem para os lados de costume. As tarefas aguardam como assim fosse necessário, vital.
Almoço. Resvalam-se nos restaurantes sem perda de tempo. O descanso fica para as férias. É urgente que retornem ao trabalho. A cidade tem suas expectativas.
Jantar. Como ontem, uma parada num bar antes de retornar a casa. Como antes de ontem, corpos descontínuos e impessoais arremetem-se pelas vias todas em direções múltiplas, inconstantes e continuamente. A comida está no fogão.
Alguns hão de dormir, outros não. Pregar o olho é o desejo, mas a insônia não se vai nem sob a ingestão de soníferos. A memória teima em repassar o dia nos mínimos detalhes, e a ausência preenche a noite plenamente. Falta um corpo a mais, falta um cheiro, uma pele, falta uma palavra, uma boca. A cidade amanhece cantando.
Café da manhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário