sábado, 23 de janeiro de 2010

DESCARRILADO



O mundo gira e oscila em derredor. Os pés não encontram a visão das calçadas, as formas todas se deformam sem parar. É tudo um delírio que o estômago projeta para fora em fluxos espasmódicos. E o que mantém a repetição destas sensações incômodas é a necessidade do esquecimento dos problemas, pelo menos por alguns momentos. Nãobusca de causas nem dúvidas sobre qualquer coisa, o delírio se assenta na mais perfeita ordem do vazio.
O time ganhou, a aprovação no emprego é certa, o filho não tarda a nascer. É tudo uma festa . Motivos não faltam. O ritmo e o som da noite repercutem forte dentro da cabeça, sob o comando de caminhar sempre para frente. Luzes multicoloridas acompanham na mesma batida. Gargalhadas femininas aproximam-se e afastam-se lentamente, em meio à confusão de pessoas sem rosto, numa dança frenética. Uma fumaça densa confunde as linhas e exala um cheiro forte.
Vez ou outra uma buzina sobressalta e um palavrão alivia o coração, sem mais sentido. Noutros instantes, vozes se misturam num alarido sem nexo. Por vezes, silêncio sepulcral. O exterior traspassa e esvai tropegamente.
Não há calor nem frio e ninguém mais parece estar junto. A boca seca não é sede exatamente. O amaro da língua empesta as coisas todas. Um incômodo nos lábios renova-se com a sensação de estar queimando. Um na garganta e no peito um vácuo sem fim.
Parar não é possível, não há razão. Não se dimensionam os passos para mais ou para menos, enquanto as pernas cambaleantes imaginam traçar paralelas: se encontram no infinito. No entanto, os braços inertes e adormecidos abraçam paredes disformes. As mãos tocam a impenetrabilidade do depois. Alguém chama insistentemente por um nome que não encontra registro na memória. Parece que soluça um choro histérico e desesperançado. Por instantes, grilhões prendem os pés e as mãos e alçam o corpo em voo lento e rasteiro. Gritos de socorro vêm de todos os lugares.
A escuridão abafa todos os ruídos como se pusessem um tapa-ouvidos. Os sons abafados vêm de dentro e circulam nas veias num ir e vir acelerado. Medo e dúvida são agora os sentimentos predominantes: medo de quê? Dúvida de quê? Nada tem explicação. Embora não mais sinta que caminha, parece que o corpo projeta-se para frente de algum outro modo. Estremecimentos e impressões de paradas bruscas seguidas de arranque seguem-se após longo período de inércia. Pequenas réstias sucedem-se rapidamente como se quisessem arrancar os olhos. Não adianta cerrar, as lâminas de luz dissecam as retinas em dores agudas cada vez mais fortes.
Retorna a claridade e vozes indecifráveis. O corpo é novamente arremetido e esbarra sobre uma superfície irregular que também ganha movimento, sempre para frente. Bate um cansaço e um sono que aos poucos vai misturando as imagens chacoalhadas na cabeça. Um alívio profundo e uma alegria ímpar tomam conta. Não faltam motivos.

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