sábado, 13 de março de 2010

ENTRE


Há um espaço de fronteira, zona de litígio, que, ao mesmo tempo, une e separa os corpos no mundo. Este espaço aparentemente vazio intercede nas relações de várias ordens e pode ser preenchido pelos aromas dos amantes, no antecipar do encontro da matéria corporal, pelo sentido das palavras que medeia os des/entendimentos, pelos olhares que se interceptam e se atravessam na simplicidade da contemplação ou no toque ríspido da interpelação. Muitos outros tipos e modos de preenchimento podem se apor a este espaço nas diversas possibilidades de troca que orbitam os corpos.
A aura, dizem, irradiada dos seres vivos e só percebida por pessoas especialmente sensíveis intersecta-se com outras e estabelece contatos de harmonia ou desarmonia conforme o clima e o estado de espírito de um e outro. A interseção das auras preenche o espaço entre as pessoas e atua segundo regras de aceitação ou rejeição. Olhamos e quase nunca nos damos conta deste entorno posto ao meio; como extensão de cada um, ali está e revela sentidos que muitas vezes desejam ocultar-se.
Mesmo entre abstrações de diferentes níveis como, por exemplo, intenção e gesto, em que a distância reconhecida pelo poeta tem seu próprio preenchimento no contraditório, no perder-se ou desviar-se do percurso. Diz ele, “se trago as mãos distantes do meu peito/ é que há distância entre intenção e gesto/ e se meu coração nas mãos estreito/ desencontrado, eu mesmo me contesto”. Este conflito que se materializa em belíssimo poema não é restrito ao poeta ou aos poetas, todos temos este sentimento e nos defrontamos com a angústia de não poder materializar desejos e intenções em gestos.
Ficamos a imaginar que a transitoriedade da nossa existência é fato, que a matéria dos corpos evanesce e desvanece num espaço que permanece entre antes e após. A percepção de tal coisa não altera nada em nossas vidas. Ou, quase nada. Certamente que devemos ficar mais atento a isto, desde o instante mesmo em que nos pomos a refletir sobre. Mas o que pode mudar não está à vista de outros, e, se não materializamos de algum modo esta pequeníssima mudança, ninguém haverá de perceber.
Numa quadrinha meio ingênua, de domínio público, há o registro disso tudo que estamos a pensar. Diz ela, “da minha casa para a tua/ tem um riacho no meio/ tu de lá dá um suspiro/ e eu de cá, suspiro e meio”. O riacho que se posta ao meio do caminho, como uma pedra, é algo que representa o que estamos tentando dizer até agora. O sentido é particular e se posta também ao meio, e para percebê-lo havemos de considerar o “ângulo e o cristal com que se mira”. O entre de que falamos não é meramente linear e dicotômico. Linca-se com múltiplas possibilidades ao mesmo tempo: da esquerda para a direita (e vice-versa), de cima para baixo (e vice-versa), de um ponto a outro em diagonal e, assim, infinitamente.
O tecido plasmático e etéreo do entre não se dá a ser escudo, pelo contrário, é condutor tanto dos propósitos amorosos quanto das vis ofensas, e atravessam e nos atingem com a mesma intensidade. Tanto nos serve para nos fazer entender quanto para produzir desentendidos ou mal-entendidos. Une e reprocessa o perfume dos amantes ou mistura leite e sangue numa aurora colorida em que o equívoco e a precipitação desfazem a vida dos leiteiros.
Tudo o que foi dito será repetido. Tudo o que foi dito será repetido, como o que ainda não foi dito. Porque estas extremidades se confundem, se negam e se confirmam antes e depois. E será repetido, como tudo o que foi dito
Nós I Nós 0+A

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