domingo, 16 de outubro de 2011

VER O RETORNO

Foto do autor

Olhar o vale do alto da montanha ateia fogo na alma. A relva desenha um verdor que nos envolve por inteiro. A teia estremece ao roçar do vento no afago da luz matinal e arranha o nada com filetes de prata trançados. De dentro vem o calor que esquenta o dia e anima as ideias. Fica-se um tempão sob a copa do Jatobá, à sombra.
Caminhos desenhados e mal acabados oferecem múltiplos sentidos, e, a cada escolha, risos e guizos. Engana-se quem pensa que caminhar por entre malícias, descendo ou subindo, é simples. Na descida, lança-se o corpo sem grande esforço, mas a tensão é com os receios do que possa vir dos arbustos que encobrem as trilhas. Subir, além dos medos, tem-se que arrastar o peso do corpo por entre as árvores e suas raízes, as pedras e os deslizes dos desvios e desvãos.
Mas gratifica tanto a oportunidade de chegar ao cimo e olhar o vale sobre as copas das árvores mais abaixo quanto, depois, chegar em casa com as paisagens na memória. Tudo é chama que incendeia, tudo é motivo para ver novamente. Histórias vão se criando com a experiência de abrir caminho ou de caminhar por trilhas já abertas e mesmo assim cheias de surpresas.
O que antes parecia apenas um delírio de infância se consolida de modo muito mais belo e agradável. A luz tinge matizes no teto verde da floresta e recria cores e tons no solo de folhas férteis. Os brotos escancham nos galhos e renovam-se como experimentos de vida. Pássaros acompanham cantando e entoam cantos diversos na brincadeira de aparecer e esconder, em voos repentinos. É só mais um motivo para desviar a atenção do cansaço e esquecer o esforço da caminhada.
O rosto entre as mãos, os cotovelos repousam nos joelhos dobrados. Aos poucos, a sensação de fome lembra o estômago. Há tempo espera o instante de ser chamado; enquanto aguarda, observa a estampa da toalha de mesa à sua frente com a atenção necessária para esquecer o aborrecimento da espera. Depois, não é apenas o tempo arrastado de esperar que incomoda, mas também a possibilidade de precisar ter que operar. De vez em quando cai em si pela interferência da voz da atendente que chama por alguém desconhecido, ainda não é a vez. Logo depois muda o olhar e volta a acionar a imaginação por algum motivo ignorado.
A banda de música postada no quiosque da praça executa um dobrado, não consegue identificar qual seria. Logo depois da praça, enfileirados, dezenas de alunos ensaiam para a Parada de 7 de Setembro, o dia da Independência do Brasil. O sol escaldante lança-se sobre a criançada enquanto eles seguem pisando no ritmo da bateria em marcha militar. A sombra da torre da igreja matriz se projeta sobre as filas de alunos fardados e só por alguns segundos aliviam-se do calor solar.
As crianças entoam hinos patrióticos e esgoelam-se no afã de cumprir as determinações das professoras que caminham ao lado, e, vez ou outra, intervêm para ajustar o passo marcado de algum pirralho que desatina. Contornam a praça diversas vezes. Repetem os exercícios de parar e seguir, à exaustão. Renovam os hinos e a marcha várias vezes, sob o sol pegando fogo.
Um vento mais forte entra pela janela e move a cortina com força, desfazendo o eixo do olhar preso à imagem da estampa. A atendente chega mais perto e avisa que chegou o momento de entrar para a consulta. Ainda dolente, observa a cara da atendente e não a reconhece como parte de sua experiência recente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário