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O dia amanhece com o mesmo
sol dos dias anteriores. Algo de menos no tecido da esperança. É assim que se
vislumbra adiante pelas frestas dos olhos incrédulos: a rede cerzida, o lençol
puído e o chão batido sob as sandálias pela metade. Gentis inocentes
esbaldam-se em
ressaca moral. Uma nação inteira engana-se de lado a lado nas
explicações amarelecidas sem explicação.
De resto, erguer o corpo
no torpor do antes como um nada e vestir as vestes remendadas e comer o pão
dormido há dias. Que não se atrevessem à sua frente quaisquer slogans ou mensagens de paz. É duro
arrastar o tempo esticado e ainda aguentar os sorrisos e as bandeiras
desfraldadas a custa de tanta insensatez. É difícil pensar nos mortos, nos
vivos sem memória e no quanto uns e outros têm em comum. Nada mais a fazer,
enganos ditos e repetidos como um eco sem paradeiro. Afora os sem sentidos, os
dentes em falta, tudo o mais é promessa, como esses prometidos que nos
sustentam e sobre os quais não se dá notícia.
Consciências carcomidas,
bandas podres erguem-se arma em punho contra sombras em debandada e perseguem
uma a uma como parte obrigatória do entretenimento. Multidões aplaudem
torturadores confessos e vangloriam-se de ganhos insubsistentes. Solo
fraturado, rasgos estonteantes sob a negação do viés vesgo e desnorteado.
O sol desloca-se lento e
ardido. A pele esfumaça a última esperança sepultada, narinas dilatadas
absorvem o calor corrente enquanto a sola dos pés incrusta vagos rastros no
asfalto. É um dia comum, como outro qualquer. A diferença é que antes
caminhavam ao lado de mais da metade dos que agora soslaiam-se pelas esquinas.
Uma manhã comum certamente conduz a uma tarde comum, que, por sua vez, deve
levar a uma noite comum e a uma madrugada igualmente comum. Tudo numa lógica de
cavilação que não leva em conta a razão despida e alojada noutro extremo.
Ninguém muda, a cena
irrequieta acena muda. O silêncio vergonhoso perde-se no alarido dos festejos
sem graça alguma. Todos se admiram, miram-se e retornam ao estado letárgico do
sono profundo. Espera-se que outros dias possam vir com sóis novos e luzes
novas. O tecido esgarçado da esperança é o único pano, encardido, desbotado, a
se erguer em bandeira. Apelo de senhas resguardadas a pelo.
O vento morno sopra sobre
a tarde afeita ao vazio de ninguém mais. Grama esmaecida salta o fio vermelho
do caminho por trás das grades. Olhar é longe, sombrio. Rios escorrem
esquálidos, esgueiram-se fragilmente sobre os bancos de areia e ameaçam com a
sequidão de verões cada vez mais longos. Não há como retornar ao terreno firme
do passado. Barcos assombrados e recostam-se fincados no abandono enquanto
lastreiam ratos a bordo.
Falta imensa no espaço,
falta convicção e fé. Armam-se de argumentos até os dentes na comuna dos
senhores da razão. A noite esconde os larápios e acalenta os corpos no descanso
da fadiga. Mais um dia há de vir, Deus sabe a que preço. Farta e imersa no laço
do lodaçal, a marca da ação litigante, em pele de cordeiro. Homens e mulheres
consomem as últimas ofertas mostradas na televisão. Crianças esforçam-se para
abrir os olhos, esticam o corpo e os braços e as pernas e bocejam.
Ao longe, canta o galo uma
manhã sem sol e o canto ecoa no espelho preso à parede do quarto, fervilha no
coador do café quentinho. Um dia comum como outros de antes, sem tirar nem por.
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