sábado, 3 de setembro de 2011

DIA COMUM


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O dia amanhece com o mesmo sol dos dias anteriores. Algo de menos no tecido da esperança. É assim que se vislumbra adiante pelas frestas dos olhos incrédulos: a rede cerzida, o lençol puído e o chão batido sob as sandálias pela metade. Gentis inocentes esbaldam-se em ressaca moral. Uma nação inteira engana-se de lado a lado nas explicações amarelecidas sem explicação.
De resto, erguer o corpo no torpor do antes como um nada e vestir as vestes remendadas e comer o pão dormido há dias. Que não se atrevessem à sua frente quaisquer slogans ou mensagens de paz. É duro arrastar o tempo esticado e ainda aguentar os sorrisos e as bandeiras desfraldadas a custa de tanta insensatez. É difícil pensar nos mortos, nos vivos sem memória e no quanto uns e outros têm em comum. Nada mais a fazer, enganos ditos e repetidos como um eco sem paradeiro. Afora os sem sentidos, os dentes em falta, tudo o mais é promessa, como esses prometidos que nos sustentam e sobre os quais não se dá notícia.
Consciências carcomidas, bandas podres erguem-se arma em punho contra sombras em debandada e perseguem uma a uma como parte obrigatória do entretenimento. Multidões aplaudem torturadores confessos e vangloriam-se de ganhos insubsistentes. Solo fraturado, rasgos estonteantes sob a negação do viés vesgo e desnorteado.
O sol desloca-se lento e ardido. A pele esfumaça a última esperança sepultada, narinas dilatadas absorvem o calor corrente enquanto a sola dos pés incrusta vagos rastros no asfalto. É um dia comum, como outro qualquer. A diferença é que antes caminhavam ao lado de mais da metade dos que agora soslaiam-se pelas esquinas. Uma manhã comum certamente conduz a uma tarde comum, que, por sua vez, deve levar a uma noite comum e a uma madrugada igualmente comum. Tudo numa lógica de cavilação que não leva em conta a razão despida e alojada noutro extremo.
Ninguém muda, a cena irrequieta acena muda. O silêncio vergonhoso perde-se no alarido dos festejos sem graça alguma. Todos se admiram, miram-se e retornam ao estado letárgico do sono profundo. Espera-se que outros dias possam vir com sóis novos e luzes novas. O tecido esgarçado da esperança é o único pano, encardido, desbotado, a se erguer em bandeira. Apelo de senhas resguardadas a pelo.
O vento morno sopra sobre a tarde afeita ao vazio de ninguém mais. Grama esmaecida salta o fio vermelho do caminho por trás das grades. Olhar é longe, sombrio. Rios escorrem esquálidos, esgueiram-se fragilmente sobre os bancos de areia e ameaçam com a sequidão de verões cada vez mais longos. Não há como retornar ao terreno firme do passado. Barcos assombrados e recostam-se fincados no abandono enquanto lastreiam ratos a bordo.
Falta imensa no espaço, falta convicção e fé. Armam-se de argumentos até os dentes na comuna dos senhores da razão. A noite esconde os larápios e acalenta os corpos no descanso da fadiga. Mais um dia há de vir, Deus sabe a que preço. Farta e imersa no laço do lodaçal, a marca da ação litigante, em pele de cordeiro. Homens e mulheres consomem as últimas ofertas mostradas na televisão. Crianças esforçam-se para abrir os olhos, esticam o corpo e os braços e as pernas e bocejam.
Ao longe, canta o galo uma manhã sem sol e o canto ecoa no espelho preso à parede do quarto, fervilha no coador do café quentinho. Um dia comum como outros de antes, sem tirar nem por.

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