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Levantara-nos
há pouco tempo, estávamos ainda à mesa do café quando ouvimos uma voz feminina
gritando, quase histérica, como se houvesse descoberto ouro. Depois de algum
tempo, entendíamos que falava de estrada e de mala. Fomos às pressas ao
alpendre, para ver do que se tratava. Sara, uma senhora que lava roupas para
nós, enfrenta a areia do terreiro arrastando uma mala. Entra em casa e larga a
mala ao chão como se quisesse desfazer-se do peso. Alegre e esbaforida, demora
para conseguir esclarecer a cena.
Conta que
encontrou a tal mala na estrada, quando vinha de sua casa. Lógico, alguém a
deixara cair de algum carro. De princípio, ficamos sem saber ao certo o que
fazer. Era uma mala simples, sem tranca ou cadeado. Pensamos em abrir para ver
se encontraríamos alguma indicação de quem pudesse ser, mas pensamos
melhor: era provável que quem a perdera estivesse a sua busca na estrada,
e a demora em remexer as coisas poderia deixar passar a oportunidade de
devolvê-la ao seu dono ou a sua dona. Deste modo, achamos mais prudente
pedir que alguém de casa a levasse à estrada e ficasse por lá até que
aparecesse quem a procurasse. Claro, que não se iria oferecer ou perguntar por
ali se alguém sabia de quem poderia ser, porque logo haveria de aparecer donos
aos montes.
Até a hora do
almoço ninguém reclamara a mala, assim também ao pôr do sol. Neste caso,
achamos por bem abrir e ver se encontrávamos algo que pudesse indicar a quem
pertencia. Todos em
casa concordaram. Nada de surpreendente revelou o conteúdo, a
simplicidade das coisas que continha já estava mais ou menos prenunciada na sua
apresentação exterior.
Aquela tarefa
nos despertou sentimentos contraditórios, mas somente daquele modo podíamos
encontrar informações que nos permitissem saber a quem devolver. Mas, ao mesmo
tempo, incomodava-nos a sensação de estar invadindo a privacidade de alguém que
sequer sabíamos quem era. No entanto, distraia-nos aquele exercício
exploratório: retiramos as peças de roupa e outros itens pessoais agrupando-os conforme
nos pareciam pertencer a um ou outro grupo de objetos.
A dona
daquelas peças e, provavelmente, da mala, é uma mulher jovem. Os vestidos
demasiadamente curtos, as roupas íntimas ousadas revelavam também tratar-se de
alguém da capital, com gosto bastante sensualizado. A simplicidade, no entanto,
expressa no conjunto de coisas, inclusive, pelo tipo de mala, o gosto de alguém
humilde, economicamente. Nada de sofisticação ou etiquetas de moda.
Também não
parece se tratar de alguém de grande estatura. Uma mulher de 1,60m, talvez
magra, jovem. Pela cor das roupas, predominantemente claras, pode indicar que
seja também de pele morena ou mais escura. Não dá para ter certeza. Apenas uma
hipótese. Uma caixa de sabonetes glicerinados, um estojo de maquiagem em cores
discretas, ainda sem uso. Um perfume suave e um espelho com cabo, em formato elíptico. Nada
de fotografias, agendas ou qualquer documento que revele alguma identidade.
No fundo da
mala, o livro A Rosa do Povo, de
Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945, quando de sua primeira edição,
tinha uma dedicatória que não revelava muita coisa, até porque, aparentemente,
se não fora escrita no mesmo ano de publicação do livro foi próximo, e isto não
batia com as impressões até ali acumuladas. Os outros indícios não remetiam
para alguém com essa idade. Dizia a dedicatória, “Para o amor da minha vida,
com a paixão que há de nos incendiar sempre que nos toquemos”. Era
assinada por um tal Hermano Carrasco. A data, borrada, aparentava ter-se
borrado por efeito de algum líquido: água, perfume, lágrimas. Quem sabe?
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