domingo, 11 de setembro de 2011

MALA NA ESTRADA


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Levantara-nos há pouco tempo, estávamos ainda à mesa do café quando ouvimos uma voz feminina gritando, quase histérica, como se houvesse descoberto ouro. Depois de algum tempo, entendíamos que falava de estrada e de mala. Fomos às pressas ao alpendre, para ver do que se tratava. Sara, uma senhora que lava roupas para nós, enfrenta a areia do terreiro arrastando uma mala. Entra em casa e larga a mala ao chão como se quisesse desfazer-se do peso. Alegre e esbaforida, demora para conseguir esclarecer a cena.
Conta que encontrou a tal mala na estrada, quando vinha de sua casa. Lógico, alguém a deixara cair de algum carro. De princípio, ficamos sem saber ao certo o que fazer. Era uma mala simples, sem tranca ou cadeado. Pensamos em abrir para ver se encontraríamos alguma indicação de quem pudesse ser, mas pensamos melhor: era provável que quem a perdera estivesse a sua busca na estrada, e a demora em remexer as coisas poderia deixar passar a oportunidade de devolvê-la ao seu dono ou a sua dona.  Deste modo, achamos mais prudente pedir que alguém de casa a levasse à estrada e ficasse por lá até que aparecesse quem a procurasse. Claro, que não se iria oferecer ou perguntar por ali se alguém sabia de quem poderia ser, porque logo haveria de aparecer donos aos montes.
Até a hora do almoço ninguém reclamara a mala, assim também ao pôr do sol. Neste caso, achamos por bem abrir e ver se encontrávamos algo que pudesse indicar a quem pertencia. Todos em casa concordaram. Nada de surpreendente revelou o conteúdo, a simplicidade das coisas que continha já estava mais ou menos prenunciada na sua apresentação exterior.
Aquela tarefa nos despertou sentimentos contraditórios, mas somente daquele modo podíamos encontrar informações que nos permitissem saber a quem devolver. Mas, ao mesmo tempo, incomodava-nos a sensação de estar invadindo a privacidade de alguém que sequer sabíamos quem era. No entanto, distraia-nos aquele exercício exploratório: retiramos as peças de roupa e outros itens pessoais agrupando-os conforme nos pareciam pertencer a um ou outro grupo de objetos.
A dona daquelas peças e, provavelmente, da mala, é uma mulher jovem. Os vestidos demasiadamente curtos, as roupas íntimas ousadas revelavam também tratar-se de alguém da capital, com gosto bastante sensualizado. A simplicidade, no entanto, expressa no conjunto de coisas, inclusive, pelo tipo de mala, o gosto de alguém humilde, economicamente. Nada de sofisticação ou etiquetas de moda.
Também não parece se tratar de alguém de grande estatura. Uma mulher de 1,60m, talvez magra, jovem. Pela cor das roupas, predominantemente claras, pode indicar que seja também de pele morena ou mais escura. Não dá para ter certeza. Apenas uma hipótese. Uma caixa de sabonetes glicerinados, um estojo de maquiagem em cores discretas, ainda sem uso. Um perfume suave e um espelho com cabo, em formato elíptico. Nada de fotografias, agendas ou qualquer documento que revele alguma identidade.
No fundo da mala, o livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945, quando de sua primeira edição, tinha uma dedicatória que não revelava muita coisa, até porque, aparentemente, se não fora escrita no mesmo ano de publicação do livro foi próximo, e isto não batia com as impressões até ali acumuladas. Os outros indícios não remetiam para alguém com essa idade. Dizia a dedicatória, “Para o amor da minha vida, com a paixão que há de nos incendiar sempre que nos toquemos”.  Era assinada por um tal Hermano Carrasco. A data, borrada, aparentava ter-se borrado por efeito de algum líquido: água, perfume, lágrimas. Quem sabe?

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