sábado, 3 de outubro de 2009

O PASSADO É O QUE CONTA




Emília é uma mulher muito interessante. Diz que seu gosto na vida é conhecer pessoas, lidar com gente é seu passatempo favorito. Conversa com desenvoltura e dá conta de suas tarefas no atendimento a clientes de uma clínica onde trabalha, sem problemas. Apesar de gostar de conversar, não perde tempo ao usar o telefone. Explica que, neste caso, o importante é atender a um número maior de pessoas e não falar além do necessário com uma única pessoa. Mas é atenciosa, educada e extremamente hábil ao lidar com isto que faz o seu gosto.
Mas Emília tem uma característica, no mínimo, curiosa: o passado exerce um fascínio muito forte sobre ela. Perde-se nas horas ao contar qualquer acontecimento do passado, especialmente, suas histórias de amor. De vez em quando ela pergunta ao atual namorado: — Você lembra-se de quando nos conhecemos? Ai, mesmo que ele não estimule, ela desfia todos os detalhes do primeiro encontro: a cor da roupa que ela e ele vestiam, as palavras trocadas, o lugar e a hora certa... tudo tim, tim por tim, tim.
Outra pergunta freqüente é: — Você se lembra do nosso primeiro beijo? Do mesmo modo, não sossega enquanto toda a cena e o cenário não são recuperados. As sensações que sentiu, o conflito que a deixou em desespero etc. etc. Bom, esta história de conflito, então, é típica de outras coisas igualmente recorrentes e que estão ligadas ao seu passado.
A começar por um casamento desfeito. Diz que o seu ex-marido a maltratava, a deixava sozinha e ia a passeios em lugares distantes, só com os amigos. Finais de semana ele só queria saber de jogar bola. Só retornava pra casa tarde da noite, bêbado. Sem contar que nestas situações, algumas vezes ele chegou mesmo a espancá-la. No entanto, ela conta tais agruras com certo tom de permissão. Diz que o entende e que não tem raiva dele, pelo contrário, é um amigo necessário, tanto que às vezes fica a conversar com ele horas e horas lembrando os bons momentos em que viveram juntos. Não declara, mas dá a entender que têm ficado juntos e se amado loucamente.
Outras vezes, lembra passagens do passado com sua família. A infância com os pais, os irmãos, os passeios e os lugares onde morou. O passado é, certamente, o lugar em que ela mais fica à vontade. É como se o presente só servisse virar passado e, por isto, tema preferido de suas conversas pessoais. Como se todas as suas experiências do presente fossem planejadas para se transformar em lembranças.
Além das histórias da sua vida de casada, conta também a história que aconteceu depois com um namorado de quem gostava muito. Aliás, demonstra que gosta até hoje. Diz que este foi seu primeiro namorado, após a separação. Diz que apesar de estarem namorando firme, ele saiu com uma amiga dela. Esta amiga armou uma situação da qual Emília nunca esquece: ligou pra ela e deixou o celular ligado enquanto transava com o tal namorado. Emília não teve reação, sua única saída foi chorar. Apesar disto, não guarda mágoa dele. Até tem saído com ele algumas vezes só para lembrar as coisas boas que passaram juntos e, também, para alimentar coisas novas para lembrar com ele, futuramente. Ela se delicia contando suas histórias do passado.
Ultimamente, diz que namorava um cara casado e que viveu com ele momentos inesquecíveis: muitas vezes iam para um Motel e não faziam amor, ficavam lá só conversando e brincando como se crianças fossem. O cara, um figurão da política local, prometia e jurava que iria descasar para ficar com ela.
Ele tinha tanto ciúme dela que às vezes a seguia pelas ruas. Quando ela menos esperava ele aparecia para abordá-la, sob qualquer pretexto. Outras vezes, não aparecia, mas ela o percebia estacionado numa rua próxima como se a observasse. Ao mesmo tempo em que isto lhe provocava riso de convencimento, a incomodava pela desconfiança demonstrada. Mas, também, não reclamava com ele.
Num certo dia, o rapaz apareceu com uma história de lhe pedir um tempo, um ano exato. Precisava tomar umas decisões na vida dele e o tal tempo seria fundamental. Nunca voltou, mas faz questão de deixar sinais de que está vivo e muito próximo, como se alimentasse alguma esperança. É um fantasma que a alimenta e é por ela alimentado. Ela sofreu muito, conta, mas não pode fazer nada. Diz ela que, dada a sua decepção, jurou que, desde aquele dia, nunca mais aceitaria a corte de homem algum. Fala isto com um sorriso malicioso, como quem diz: quem quiser que acredite.
A clínica, onde trabalha, é um lugar por onde passa muita gente com as mais diversas histórias, inclusive, algumas delas, dolorosas. Emília faz amizades com médicos, outras atendentes e sabe de cor a data de aniversário de cada um, endereço, telefone e a constituição familiar. Mas o que mais a deixa feliz é contar como, onde e quando, conheceu cada uma dessas pessoas.

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