segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

MIMESE




O cenário em que me movo matiza-se dos meus gestos, das cores que gasto neste roçar cotidiano. E tudo toma feições de um personagem em que me reconheço. E me assusta verificar que o desgaste que se produz na vida estampa-se nos mínimos detalhes em tudo o que me rodeia. A experiência deixa fragmentos e se formam crostas invisíveis na superfície dos rostos à minha volta, no limbo dos dentes à mostra em risos cúmplices, nas vestes que vestem os corpos que circulam ao meu redor.
O tempo tem unhas e cardos que arranham e sulcam a minha pele marcando o rascunho dos dias repisados. Há gente que experimenta as minhas dores e sofre por coisas que não lhe pertencem como se fossem suas. Gente que me vela o sono sem que revele quaisquer intenções ou motivos. E no rosto e na alma de cada uma destas pessoas estampam-se resquícios de mim que resultam deste pegar-se, deste abraçar-se com unhas e dentes, na labuta. Ou, por outro lado, pela simples condição dos afagos e piscar de olhos que trocamos em nossas encenações diárias.
A camisa verde-musgo estendida no varal desbota-se ao sol verde-musgo que impregna a roupa dos meus. O muro esverdeado circunda a casa e, frio, resguarda a cor que, afinal, mimetiza. A grama prossegue esverdeando a camisa estendida no varal. Beija-flores estampam cores outras e dissimulam, simulam um verde gasto que contrasta com o vermelho vivo da Amapola recém beijada.
‘Enquanto se faz, o silêncio embaralha sons do seu fazer-se. Este é o meu silêncio aquele que silencio por mim e que se confunde comigo quando calo. Ou, quando falo, nos interstícios das palavras, no vazio da dúvida antes de pronunciar-me. Também este silêncio carrega sotaques em que me reconheço.
No mais, as ruas, as casas, o bairro perfazem o meu universo. Os monumentos erguidos em praça pública têm traços meus e sofrem o desgaste do tempo como eu. A sombra em que me deito quando cansado, quando busco os lastros amplos que devem amparar o meu corpo, ou a roda de amigos ao final da tarde, em conversas sobre amenidades, são a glória de minha história.
As calçadas guardam meus rastros no mais profundo de suas camadas, para além da superfície em cimento duro, por puro repetir-se. Os meus passos em trajeto de idas e vindas, no trançado das esquinas me conduzem a destinos diversos, cotidianamente. Cada fenda, cada falha, toda folha caída, os becos sem saída, tudo me tem na pele e nos sustos, sem muito custo. São espelhos em que, de tanto mirar-me, guardam imagens minhas sobrepostas e ofertam as opções em que devo escolher sobre como desejo me ver em cada um dos momentos.
O clima das estações que se vão e vêm, o início e o final dos dias: seus cheiros e cores. As datas comemorativas ou promocionais lembram-se de mim. O perfume que, mesmo depois de tanto tempo de esgotado o frasco, ainda anuncia minha presença. As narinas estão impregnadas destes odores e a boca, dos paladares que são meus.
A noite tem a minha cara caso atormente-se com o escuro e a solidão. Se a chuva encharca a noite e acarinha os lençóis, se o tempo frio pede alguém por perto. Se à mesa da sala de jantar põem um prato raso e sirvam peixe cozido. Se os jornais e as novelas da TV chamam atenção sobre si e exigem silêncio, atenção. Se, tarde ainda, se ouvir um riso que chama à vida que se apresente com bom humor. Traços que refaço como uma picada por onde transito a minha rotina, uma vereda longa, estreita e conhecida logamente.
Os livros carregam meu nome como marca de posse. Porém, mais do que isto, carregam minhas digitais, suas páginas embebem suores, lágrimas como mata-borrões de tempos vividos. Não são apenas meus, são eu. As mesas e cadeiras, além de cúmplices, conformam usos que outros não suportariam, apenas a mim se ajustam tão bem. As cenas que se apresentam neste cenário reconstituem o roteiro de uma experiência muito particular, cada vez se propondo nova. Apesar dos gestos gastos em se refazer, em guardar de mim o menor traço, de modo tão ostensivo e delineie comigo o percurso que faço, cada linha sua é minha em traço.

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