sábado, 8 de maio de 2010

VAGO ENSAIO SOBRE O VAZIO


“Nós somos nada, temos nenhum valor, nenhum significado. Nada é o que somos”. O poeta embora não reconheça num desabafo assim a voz de Nietzsche, toca-lhe o niilismo que por aí se vai. No vácuo dessa compreensão, fita sua interlocutora e estranha que seja ela quem diz o que diz: o que justificaria estar ali uma pessoa que tem a bravura de enfrentar a vida como se acreditasse nas vitórias, como se vislumbrasse um futuro, uma realização pessoal prometida para um dia, nos planos que expõe?
Fecha Plano. Os lábios estremecem com as palavras proferidas, reafirmam a certeza do dizer, e se oferecem ou simulam se oferecer aos beijos mais ardentes. Flashback de outras histórias marcadas na boca. O sorriso leve presume malícias e mais ainda aciona novas interrogações. Como nada? E os desejos que emanam dos gestos, e os motivos que a trouxeram até ali naquela noite? Há muita materialidade na escolha da roupa, no combustível gasto, na decisão de vir ao encontro. Nem a cena, nem o cenário parecem ter a ver com o niilismo extemporâneo, pronunciado de modo tão enfático.
Nós somos algo um para o outro, do contrário não nos arremessaríamos ao mesmo lugar, para um encontro em que nos damos tempo longo de contemplação. Aguçamos as narinas para apreciar o perfume que emana da pele, do tecido, do corpo um do outro. Ficamos presos a detalhes do olhar, dos olhares, do sentar-se e ela pedir uma água no lugar do chope, jogar os cabelos para trás e sorrir como que percebendo que o poeta está a olhá-la.
Escolhemos as brincadeiras de entrada: crie uma personagem completa, diz ela, com todos os detalhes do corpo. Ponha no balão, à sua direita, algo em que ela não consegue deixar de pensar, uma frase que ela disse e depois se arrependeu profundamente. Num balão à esquerda...
Em uma história deste tipo, há tal concretude que não combina com nada. Isto é muito. É tudo. É a condução da situação, é a ocupação do lugar de regente: fala quem dirige a cena, dá as cartas, se impõe, domina naquele momento a relação. Bom, é evidente que a percepção do que ocorre incomoda, mas o desejo de que tudo corra bem exige concessões até que, num outro momento, os lugares sejam trocados, o poeta passa então a formular as regras da mesa. Você vai fazer uma viagem, diz ele. Pense num lugar para onde você está indo. Pensou? Ocorre que, logo de partida, surge um problema que faz você parar e sem resolvê-lo não pode prosseguir com a viagem. Que problema é este?...
O mundo mobiliza-se nas proximidades. Um garçom se aproxima para trazer uma nova tulipa com chope, ela decide trocar a água por um suco de fruta, escolhe limão. Um casal, ao lado, pede a conta e retira-se em seguida. A música em background acende a noite. É possível tocar cada momento, experimentar cada sensação com a certeza de que tudo tem significado real para cada um de nós e todos que ali estão. O texto do princípio não consegue eco a não ser por instantes.
Bom, pode ser que, por um feitiço qualquer, por um sonho, talvez, tudo isto não esteja de fato ocorrendo. Que uma feiticeira ou, talvez, uma fada os tenha feito delirar, e cada um, do seu lugar de inexistência, imagine o tal encontro como uma coincidência que se efetiva sob vários pontos de vista: o mesmo casal, o mesmo lugar, os mesmos textos por onde os dois entrecruzam olhares, o reconhecimento das histórias particulares de cada um, para os dois, enfim, a mesma ilusão do encontro que nunca houve.
O vazio do nada que somos se refaz na expectativa do seu esvaziamento sobre a plenitude do mundo vazio. Os desejos derramados, os encantamentos enunciados, os prazeres que, por acaso, possam se ter experimentado em nada se constituem. O que mais assombra são as impossibilidades de uma conquista que se projeta para o vazio. A casa, o quarto, a cama, a boca, tudo estará vazio. Ou, como diz a música de Gilberto Gil e Chico Buarque: “É sempre bom lembrar /Guardar de cor /Que o ar vazio de um rosto sombrio /Está cheio de dor /É sempre bom lembrar /Que um copo vazio /Está cheio de ar”. Todo poderoso amor.

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