sábado, 15 de maio de 2010

SEMEADURA




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A areia fina e branca acarinha os pés que quase se escondem no caminhar ritmado, cedinho da manhã. À frente, as sandálias do avô espalham pó e barulham no mesmo ritmo. O roçado fica logo depois da cerca, depois de um caminho puxado e percorrido com prazer. No percurso, calangos espiam os passantes e confirmam com a cabeça num gesto de aprovação. Lagartixas e outros rastejantes não têm a mesma opinião, fogem apressados para o refúgio da mata que comprime o caminho.
Hoje é um destes dias de plantio. O solo cinza respinga negrume de tocos queimados na pele toda do roçado. Terreno comprido, largo no meio da mata verde. Gaviões espiam de cima e anunciam-se com sua cantilena insistentemente monótona. Outras aves vez em quando abrem o bico no vazio do tempo.
Traspassada a cerca, o avô organiza seus apetrechos: cuias de cabaças para as sementes, água de beber à sombra, enxadas para cavarem-se as covas e, em fim, as sementes de feijão retiradas de um saco que deita ao chão. É quase um ritual, ele vai à frente, abrindo as covas com a enxada, e vamos atrás, pondo as sementes e enterrando-as com os pés. Vão-se desse modo longas horas. Sem conversa. Não há necessidade.
O sol desloca-se e esquenta tudo. A areia, depois de algum tempo, já não tem mais a mesma sensação gelada da manhãzinha. O suor percorre o rosto e o fio da espinha, abundantemente. Uma parada para descanso aqui outra ali, no final de cada leira. Pouco tempo, bebe-se um pouco d’água e puxa-se mais a respiração. Olhar o quanto falta é aflitivo e constrangedor.
À hora do almoço, para-se por tempo maior. Hora de pegar o soim: um pouco de carne frita, farinha, rapadura e água. Dizem que água de beber não tem sabor, só quem não conhece esta experiência. É um sabor de corpo e alma, não apenas na boca. O friozinho da água desce pela garganta e resfria a brisa e o sol na pele. Um pouquinho, sentados à sombra, algumas palavras, e retomamos de onde paramos, na mesma pegada. O sol descamba e ameniza.
Final de tarde, muito ainda há o que percorrer naquela arrumação, mas amanhã será outro dia e a noite já se avizinha. Hora de inverter os gestos da chegada e iniciar o caminho de volta. As aves emudecidas por certo se aninham em seus leitos. Os outros animais também se ausentam. Só o murmúrio da noite chegando e o barulho das sandálias do avô argumentam.
O corpo cansado, mas feliz se enternece com o cenário e a possibilidade de daqui a pouco entregar-se à rede espichada e ao lençol envolventemente cheiroso. Aos poucos, as estrelas vão surgindo aos montes, no firmamento. O escuro da noite infiltra-se em todos os lugares. Caminhar mais próximo do avô é melhor, por via das dúvidas. A decisão exige passos mais apressados. O avô percebendo os motivos estende a mão. O gesto esperado oferece um prazer a mais e uma segurança inquestionável.
A casa se anuncia primeiro por pequenos pontos de luz que estremecem ao sabor da brisa. Depois, vai crescendo, crescendo até que o alpendre e suas linhas de definição se configurem completamente. Cachorros latem e vêm ao encontro. Ao se aproximarem, vão substituindo os latidos por ganidos suaves e abanos de calda. Enroscam-se nas pernas do avô, pulam sobre ele, que ralha com carinho. Os cachorros nos escoltam até que cheguemos ao batente da casa.
As lamparinas quebram o negrume da noite. A avó vem ao encontro e pergunta alguma coisa. Os dois penetram casa adentro. Os apetrechos do trabalho do dia são postos de lado. Sinal de que o trabalho adormece, dando vez ao relaxamento das conversas amenas e às histórias do dia. Contam-se tantas coisas que pequenos olhos não dão notícia nem há ouvidos suficientes para tanto. À mesa nos aguarda o jantar.

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