domingo, 13 de junho de 2010

UM LUGAR NO PASSADO


Itarema-Ce. Cidadezinha litorânea, pouco mais de 20 mil habitantes, sem grandes benefícios de infraestrutura. Período de férias, fim de tarde. Conversam-se em grupos coisas próprias da infância do lugar: passeios, pescarias, banhos no lagamar, caça de preás, colheita de pipoca-do-rio e outras frutas silvestres entre tantas outras estripulias. Os passeios, em geral, passam pela praia de Almofala, distrito próximo onde se encontra uma igreja pequenina que, dizem, foi construída por índios escravizados a mando da princesa Izabel. Paredes de pedras, essa igreja passou 50 anos embaixo de uma dessas dunas movediças, comuns no litoral nordestino, que mudam de lugar ao sabor do vento.
As pescarias em riacho exigem a preparação de anzóis e iscas. Na maioria das vezes as iscas são minhocas escavadas no brechó dos baixios. Mas dizem que a isca de rã é a melhor delas. Contam até que os peixes mandam antes verificar qual o tipo de isca que oferecem os pescadores. Se for rã, despedem-se dizendo: “traga lá minha roupa nova, meus tamancos e até dia de juízo”. Cada pescador, com seu vasilhame fervilhando de minhocas, se posta à margem dos riachos e lança à água o anzol. O peixe belisca e, num leve puxão, é fisgado, é só erguer, então, o caniço e trazê-lo para si.
Os banhos no lagamar incluem navegação em canoas a remo, donde se salta em acrobacias variadas. Disputar travessias e tempo de imersão também faz parte. O lagamar enche com a maré. Somente com a maré alta é que se pode tomar banho. Por isto mesmo a programação tem que levar em conta o tempo certo.
A caça de preás em meio ao junco ou no plantio de coqueiros é feita com cachorro. Apenas os de focinho escuro são bons caçadores. Identificam-se as veredas por onde os preás caminham pela grama afastada e pelas fezes deles espalhadas nas trilhas. Põem-se os cães a farejar e eles buscam os preás embaixo dos balseiros ou no oco de árvores caídas e apodrecidas. Cercam-se o lugar e quando o preá “espirra” é pego. O cachorro bom de caça pega e não machuca a caça.
Muitas são as frutas silvestres que existem em épocas chuvosas na região litorânea: muricis a batipuçás, manipuçás, araçás, pipocas-do-rio, murtas, guabirabas etc.
As pipocas-do-rio são pequeninas, sabor agridoce e são colhidas em alagadiços. Dão em grande quantidade, e, para colhê-las, sobe-se nos finos galhos da árvore. Em geral, não há risco, porque as quedas na água não machucam, salvo os arranhões que se produzem na vã tentativa de evitar a queda.
Ficar conversando aos magotes também é parte da programação. Contam-se histórias e vantagens no relato do que se aprontou durante o dia. Neste fim de tarde e início de noite, em meio a conversas, ouve-se um assovio longo e fino ao longe. Depois, outro mais próximo. Olham-se entre surpresos e receosos, mas não há comentário. Segue a conversa. Dado que não se ouve mais nenhum assovio, alguém toma coragem e comenta que se uma pessoa repete tal assovio outros serão dados tão próximos e tão forte que a pessoa fica surda ou louca. Alguns completam dizendo tratar-se de um assobiador, figura conhecida na região. As histórias enveredam por esta temática. Muitas são as versões e os acontecimentos narrados. Todos, dizem, testemunhados. Alguém do grupo resolve, então, para surpresa geral, desafiar o medo e imitar o assovio. Todos riem um riso nervoso. No vácuo do silêncio que se segue, como que a esperar que algo ocorra, outro repete o feito: assovia mais forte ainda. Um longo silêncio se estabelece e parece que o medo desvanece.
Quando já se iniciam novas conversas, um forte assovio soa tão próximo que joga areia sobre a calçada. Uma indiscutível sensação da presença de algo desconhecido e invisível toca o grupo. A seguir, choro e reza balbuciada ocupam o lugar das histórias.

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