domingo, 17 de julho de 2011

DESATENTOS

Fugimos do olhar de poucas pessoas que nos observam e sabem de cor e salteado nossa vida, nos escondemos na multidão da cidade. Aqui, ninguém dá conta de nossa existência. Todos olham para si, cegamente. Os edifícios nos dão as costas e olham o vazio da janela do vizinho o tempo inteiro. Somos nós, sozinhos, que entrecruzamos as ruas de olhos rastejantes nas calçadas. Vemos somente à altura de uma roupa que desejamos nas vitrines, um manequim que se veste elegantemente, mudo.

O lucro tange e aglutina as pessoas; e o medo e a timidez embalam cada uma, isoladamente; o supermercado é para onde todos vão comprar mantimentos para os dias de trincheira nos apartamentos. O cinema reúne multidões na penumbra – o mundo passa na tela e é tão distante. Depois nos retiramos das salas de exibição e vamos remoendo a ilusão dos enredos fantasiosos por dias e dias.

Os shoppings lotam de pessoas sozinhas, escorrem e transbordam os corredores como peixes nos rios; transitam o dia inteiro de um lado a outro, entram por onde há portas abertas, escarafuncham coisas, levam algumas para casa e no dia seguinte são outras levas que se desconhecem mais uma vez. Repetem as mesmas ocupações como uma obrigação, como um instinto, como um comando programado, como se fossem todas iguais. Chegam ao mesmo tempo, preenchem os espaços do mesmo modo, desejam as mesmas coisas. Encontram-se nos mesmos lugares e se vão à hora marcada. Os lugares coletivos são lugares onde menos se conhece alguém. Beijar, se beijam tantos, ao mesmo tempo, que nem precisa saber quem são.

As avenidas, as ruas têm sempre carros e pedestres o dia inteiro, trafegam e se postam como vigilantes que se prevenissem de uma invasão. É contra um inimigo que desconhecem e não se percebem em vigília. Um medo linear ocupa os espaços, ameaça as esquinas e perambula em seu silêncio ensurdecedor. Os jovens em festa fazem ruído para assombrar as noites caretas. Depois, retornam aos leitos, marcam de acordar tardios, diferenças que se forjam num parecer extremo.

Ninguém suporta lugares em que uns veem os outros e sabem o nome, conhecem a família e as idades, observam costumes e dão palpites na vida uns dos outros. Pouca gente, em grupos pequenos, dá nisso. O melhor mesmo é a multidão onde ninguém se apercebe, ninguém vê a quem está mais próximo, não se reconhece ninguém. Dá para pintar e bordar sem que haja recriminações. Depois, nem precisa limpar a sujeira. O tempo é o senhor da irracionalidade. Todo mundo esquece, ou melhor, ninguém precisa esquecer o que não viu.

Todos os dias estão chegando às cidades levas e levas de pessoas que desejam montar sua tenda e se esconder no seio da multidão. Este movimento de convergir para lugares públicos e depois os esvaziar sem deixar marcas ocorre em ondas, demarcadas pelo relógio, no ritmo dos compromissos e do lazer. Nunca nos perguntamos para que serve o trabalho individual de cada um. Costurar um bolso, pregar botões numa fábrica, serve para quê? Está certo: para ganhar um salário no final do mês. Onde e como gastar este salário? Melhor ainda, salário, para quê? Aonde vai o dinheiro que cada um gasta na mercearia da esquina?

Nos bares sorvem-se milhões de litros de cerveja, outros tantos quilos de carnes são devorados, verduras e frutas são consumidas nos restaurantes, nos lares todos. Ao redor das mesas derramam-se conversas sem qualquer matéria, substâncias fluídas, desatam-se nós, isolam indivíduos para o resto da vida.

Para gritar e botar os demônios para fora, as multidões acorrem a lugares como estádios, por exemplo. Cada indivíduo aguarda dar de cara com uma câmera de TV, para que possa provar ao mundo a sua existência. Seria tão bom se as pessoas que estão à nossa volta e não nos veem descobrissem, na televisão, que existimos, que estivemos com elas num determinado momento de suas vidas. A multidão é refúgio.

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