Noitinha, a luz tênue
mescla o verde-escuro das salsas com o branco da areia do terreiro da casa. As
conversas, após o jantar, estão ainda no seu início e todos nos damos conta de
que alguém se aproxima. Olhamos uns para os outros como a nos perguntarmos quem
seja. Os cachorros levantam-se, se espreguiçam e se agitam, mas não rosnam ou
latem, como se conhecessem o tal cavaleiro.
Encosta-se ao parapeito do
alpendre, retira o chapéu com reverência e dá boa noite. Um coro meio
desanimado e desafinado responde com “outro boa noite”. O rapaz explica que
soube de estarmos de posse de uma mala encontrada na estrada. Explica que a
referida mala é sua e que a deixou cair, quando a transportava na garupa do
cavalo, na manhã anterior Diz que percorreu léguas e léguas beirando a estrada
e tomando informação até saber que a havíamos encontrado.
Confirmamos ter encontrado
a referida mala e já alguém se ergue para ir buscá-la, quando tenho a ideia de
verificar se realmente ele é o dono, visto que os pertences encontrados no
interior da tal mala são femininos. E o rapaz não parece nem um pouco
afeminado. Perguntamos, então, se ele poderia nos dizer o que contém a mala.
Ele, a princípio, faz silêncio, como se pensasse. E a seguir, começa a reclamar
que estaríamos desconfiando de sua honestidade e coisa e tal.
À medida que resiste a
responder o que perguntamos, vou ficando mais convencido de que ele não conhece
o que tem a mala e, portanto, não pode ser o dono, como diz ser. O rapaz
mostra-se bastante irritado e até insinua algumas ameaças, sugere portar armas,
mas, em nenhum momento, apresenta qualquer ameaça ostensiva.
Resolvo, então, revelar
genericamente o que tem na mala, digo que na verdade as coisas não podem ser
dele porque se tratam de pertences femininos. Ao ouvir isto, ele começa a
sorrir, a gargalhar como se houvéssemos contado uma piada muito engraçada. Ri
que quase cai do cavalo. E sem dizer uma palavra, toca as esporas no cavalo e
sai dali em disparada.
Alguém reclama, então, que
eu entreguei a informação, e que, dali por diante, outras pessoas poderão vir
buscá-la, pois, desta vez, já saberão o que a mala contém. Eu explico, então,
que não é bem assim, porque a informação que eu dei foi muito imprecisa; em
“pertences femininos” podem se incluir muitas coisas. Naquela noite mesmo não
houve outro assunto. Também não apareceu mais ninguém.
No dia seguinte, cedinho,
quando abrimos a porta, havia uma mulher sentada em um dos parapeitos, como se
lesse um livro. Com todo o barulho de abrir a porta e o movimento que daí
decorre, ela não ergueu a vista. Fui até onde ela estava e a cumprimentei com
um bom dia, ao que ela responde olhando para mim e sorrindo. Diz que veio pegar
sua mala. Olho ao redor e não vejo nenhum animal, nenhum veículo. Pergunto,
então, como chegou até ali, e ela responde que alguém virá pegá-la depois.
Ela sorrindo me diz que
nem precisa perguntar sobre o conteúdo da mala porque ela mesma dirá. E vai
dizendo aos poucos, conferindo com o que de fato está lá. Por fim, fala do
livro do Carlos Drummond de Andrade. Contamos a ela o ocorrido da noite
anterior, ao que ela nos diz não saber quem seja o tal rapaz. Diz que soube que
a mala estava conosco por alguém que a teria contado, mas não teria sido,
certamente, o tal rapaz.
A respeito do livro, ela
nos diz que sua mãe teria estudado em Belo Horizonte, quando jovem, e recebido
o livro de presente do próprio poeta. Insinua ser filha dele, alguém de quem
ele nunca teve notícia. E que ela também nunca teve como conhecê-lo pessoalmente.
Sempre sorrindo, com ar de intimidade, se vai, e, antes de sair, diz que se
chama Rosa.
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