sábado, 24 de setembro de 2011

A ROSA DO POVO


Noitinha, a luz tênue mescla o verde-escuro das salsas com o branco da areia do terreiro da casa. As conversas, após o jantar, estão ainda no seu início e todos nos damos conta de que alguém se aproxima. Olhamos uns para os outros como a nos perguntarmos quem seja. Os cachorros levantam-se, se espreguiçam e se agitam, mas não rosnam ou latem, como se conhecessem o tal cavaleiro.
Encosta-se ao parapeito do alpendre, retira o chapéu com reverência e dá boa noite. Um coro meio desanimado e desafinado responde com “outro boa noite”. O rapaz explica que soube de estarmos de posse de uma mala encontrada na estrada. Explica que a referida mala é sua e que a deixou cair, quando a transportava na garupa do cavalo, na manhã anterior Diz que percorreu léguas e léguas beirando a estrada e tomando informação até saber que a havíamos encontrado.
Confirmamos ter encontrado a referida mala e já alguém se ergue para ir buscá-la, quando tenho a ideia de verificar se realmente ele é o dono, visto que os pertences encontrados no interior da tal mala são femininos. E o rapaz não parece nem um pouco afeminado. Perguntamos, então, se ele poderia nos dizer o que contém a mala. Ele, a princípio, faz silêncio, como se pensasse. E a seguir, começa a reclamar que estaríamos desconfiando de sua honestidade e coisa e tal.
À medida que resiste a responder o que perguntamos, vou ficando mais convencido de que ele não conhece o que tem a mala e, portanto, não pode ser o dono, como diz ser. O rapaz mostra-se bastante irritado e até insinua algumas ameaças, sugere portar armas, mas, em nenhum momento, apresenta qualquer ameaça ostensiva.
Resolvo, então, revelar genericamente o que tem na mala, digo que na verdade as coisas não podem ser dele porque se tratam de pertences femininos. Ao ouvir isto, ele começa a sorrir, a gargalhar como se houvéssemos contado uma piada muito engraçada. Ri que quase cai do cavalo. E sem dizer uma palavra, toca as esporas no cavalo e sai dali em disparada.
Alguém reclama, então, que eu entreguei a informação, e que, dali por diante, outras pessoas poderão vir buscá-la, pois, desta vez, já saberão o que a mala contém. Eu explico, então, que não é bem assim, porque a informação que eu dei foi muito imprecisa; em “pertences femininos” podem se incluir muitas coisas. Naquela noite mesmo não houve outro assunto. Também não apareceu mais ninguém.
No dia seguinte, cedinho, quando abrimos a porta, havia uma mulher sentada em um dos parapeitos, como se lesse um livro. Com todo o barulho de abrir a porta e o movimento que daí decorre, ela não ergueu a vista. Fui até onde ela estava e a cumprimentei com um bom dia, ao que ela responde olhando para mim e sorrindo. Diz que veio pegar sua mala. Olho ao redor e não vejo nenhum animal, nenhum veículo. Pergunto, então, como chegou até ali, e ela responde que alguém virá pegá-la depois.
Ela sorrindo me diz que nem precisa perguntar sobre o conteúdo da mala porque ela mesma dirá. E vai dizendo aos poucos, conferindo com o que de fato está lá. Por fim, fala do livro do Carlos Drummond de Andrade. Contamos a ela o ocorrido da noite anterior, ao que ela nos diz não saber quem seja o tal rapaz. Diz que soube que a mala estava conosco por alguém que a teria contado, mas não teria sido, certamente, o tal rapaz.
A respeito do livro, ela nos diz que sua mãe teria estudado em Belo Horizonte, quando jovem, e recebido o livro de presente do próprio poeta. Insinua ser filha dele, alguém de quem ele nunca teve notícia. E que ela também nunca teve como conhecê-lo pessoalmente. Sempre sorrindo, com ar de intimidade, se vai, e, antes de sair, diz que se chama Rosa.

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